Apocalipse escrita por Natália Alonso, WSU


Capítulo 15
Capítulo 14 – Um novo aliado




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/772513/chapter/15

 

Uma fenda de brilho esverdeado se abre, por ela, Mefisto passa com a mão no peito, sangrando e tentando se escorar nas paredes antes de parar com o joelho no chão. Sua mão tinge a parede suja com o rubro que pinga no piso empoeirado.

— Marcas de garras? — questiona Mia, sentada na sala e rodeada de outros possuídos por goetias. — Parece que sua mulher não está mais sob controle, Mefisto.

— Tenho certeza que foi ela quem matou Baal, aquela vadia. Maldito dia que a encontrei...

— Quando devo começar?

— Agora! Pegue a Sedenta com o Caveira e me traga a cabeça dela... eu mesmo a colocarei em minha coleção!

Os Goetias brilham os olhos flamejantes em diversos pontos de escuridão da sala, do corredor, da rua, no bairro. A centena de olhos demonstram estar felizes e ansiosos para saírem das trevas e tomarem espaço na terra e infernos.

 

 

 

*********

 

Uma centopeia caminha no acrílico, as pequenas patas articuladas tocam a superfície transparente até chegarem no olho de Marcos. Irritado, ele fecha o olho e sacode a cabeça para tirar o animal da face parcialmente destruída pela sobrinha. O braço direito está contido pela corrente, o esquerdo mecânico está jogado em um canto da tenda ao lado. Uma coleira metálica também o prende ao fundo de sua jaula, enlodada.

O chão metálico está na parte pantanosa, fazendo com que insetos e terra lamacenta não o deixe em paz. São quarenta centímetros submerso, apenas o suficiente para que ele não possa deitar para dormir. As curtas correntes também não permitem que ele levante completamente, precisa ficar agachado ou sentado, no charque, é claro.

Ele chuta com sua bota parte da lama, um naurú o observa ao longe segurando uma lança ao lado. Daniele aparece e o avisa.

— Isso é muito pouco perto do que merece.

— Eu te entreguei tudo! A espada, a adaga... o que mais quer de mim?

— Não me pergunte isso, o que realmente quero não posso ter agora. — fala ela rancorosa. — Você tem visitas, eu não a chamei, vieram por que querem ver você com os próprios olhos.

Daniele vai embora, a luz das tochas ilumina o rosto de Elisa se aproximando, o movimento é oscilante pelo mancar de sua perna. O rosto fino de cabelos castanhos não carrega qualquer felicidade ao ver o pai de seus filhos. Esses que também a acompanham, Marcos Júnior de sete anos segura a mão da mãe, ao ver o prisioneiro ele vai para detrás das pernas dela. Vanessa não, a garota de 19 anos dá dois passos à frente da mãe e franze o cenho se inclinando a ele. Ela é o mesmo rosto da mãe, mas mais jovem, salvo pelos cabelos louros que ganhara do pai.

— Elisa... — Marcos fala mais baixo e sorri para ela. — Eu te procurei por tanto tempo... minha nossa como vocês cresceram! — Ele olha para os filhos. — Rá! Eu tô te vendo aí, nanico!

Assim que aponta para o filho, o garoto recua ainda mais, sussurra algo indecifrável que a mãe com excelente audição naurú entende.

— Não se preocupe, filho. Ele não vai sair daí.

O sorriso do Caveira se desfaz, um olhar frio acompanha a mão que se fecha e baixa para a água lodosa.

— Ainda agindo como uma bichinha, sua mãe não sabe como te criar mesmo... está acostumada demais com esses hippies e veados peludos da natureza.

— Os naurús apenas aceitam como somos, a natureza de cada um de nós. — responde Elisa.

— Natureza? — A mão sobe e aponta para a própria face ferida abaixo do acrílico. — A natureza mastigou minha cara, eu apenas estava educando meu filho para ser forte. Ser um caçador, não uma presa.

O menino começa a chorar, ao fazer isso, sua mão torna-se avermelhada com pequenos pelos crescendo pelo braço. Elisa faz um carinho em seus cabelos lisos de corte tigelinha e pede que ele vá para a tenda, o menino obedece e se afasta correndo.

— É... parece que contaminou minha cria com seu sangue vermelho... eu bem que desconfiava. Agora, além de bixa é também um cachorro.

— Cria? Nós viramos lobos gigantes, mas só há uma besta fera aqui. — fala Elisa com desdém. — Eu só vim lhe dizer que meus filhos não irão a lugar algum com você, que não me arrependo de ter ficado contigo, apenas por ter eles comigo agora. Quando isso acabar, vou me certificar de que a Batarra Naurú o execute como deve.

Batarra?! — Marcos berra enfurecido, balançando o corpo agarrado a jaula. — Agora a chama como um cachorro vermelho também? Vai usar tanga e enfiar uma pena na bunda do meu filho?

Ela se vira e avança com os olhos brilhando amarelados, seus dentes em presas quebradas rosnam para ele bem próxima à jaula.

— Não fale assim dele! Ele não é nada parecido com você, seu monstro nojento.

— Vejo que as presas não cresceram de volta... eu sempre tive dúvidas se isso acontecia, querida. — Marcos fala em um sorriso cínico.

Ela se acalma, rosna baixo para Vanessa que apenas observava ao lado da jaula, acenando que devem ir embora.

— Ele realmente não tem nada de caçador... — murmura Marcos. — Mas você... ficou apenas olhando, pronta para qualquer movimento em falso, segurando a faca que te dei nas costas... você é uma caçadora.

Vanessa nada fala, apenas guarda a faca tática na bainha presa na cintura e vai em direção da mãe. Na tenda, o garoto chorava sentado no chão, abraçando as próprias pernas, Elisa se aproxima o levantando.

— Vamos, eu não devia ter deixado você vê-lo, não se preocupe, ele não fará mais nada a nós.

— Por que ele é tão ruim, mãe?

— Ele só... ele começou a ouvir vozes e... eu não percebi quando se tornou perigoso. Mas vamos parar com isso, eu vou te proteger no que precisar.

Vanessa intervém.

— Ele devia aprender a caçar, treinar alguma luta pelo menos. Caíque teria sido um ótimo treinador para ele se...

— Seu namorado está morto! E eu não quero discutir isso de novo com você, Vanessa! Ele é uma criança ainda!

— Eu era uma criança, mas eram outros tempos. Agora ele está no meio de demônios, de vampiros... eu posso ensinar algumas coisas...

Elisa olha severa para a filha, que se cala imediatamente. Daniele se aproxima da família.

— Vocês estão bem?

— Sim. Quero saber quando você irá executá-lo.

Daniele suspira, Henrique olha confirmando a ela.

— Eu sei que prometi a você, tia. Mas eu não posso fazer isso agora, precisamos dele ainda.

— O que?

— Os Caveiras! — esclarece Henrique. — Eles são nosso auxílio contra os Cains, e eles não irão obedecer a nós, Marcos precisa liderar, foi esse o acordo para ele entregar as armas que precisávamos inclusive. Demos nossa palavra.

— Falam de honra para ele? — Elisa aponta para trás, em direção a onde está a jaula de Marcos, do lado de fora da tenda. — Esqueceu o que ele fez a todos nós? A Daniele? Ou só se esquece dos Vermelhos, e não de seus saqueadores?

— Isso não tem nada a ver, tia. — Daniele tenta acalmá-la. — Henrique só me lembrou que precisamos...

— Ele te lembrou. Sim, claro. Está deixando de priorizar os vermelhos para ter olhos só para os saqueadores.

— Isso não é verdade.

— Não? Deixou as tradições, Caíque era o comandante, ele quem devia estar... e agora... — Elisa olha em desdém para Henrique. — Pensa que não sinto o cheiro dele impregnado em você?

— É claro que sente, tia. Você é vermelha, eu deixei Caíque livre e ele também fez sua escolha. Com quem me deito não é da sua conta, e não deixarei os Cains matarem cada um de nós só para manter uma tradição inútil. Os saqueadores são nossos aliados a muito tempo, e agora, os Caveiras também serão, ao menos, por enquanto.

— Se ele chegar perto do MJ... — sussurra Elisa.

— Ele não vai, eu lhe dou a minha palavra, tia.

— Sua palavra de Batarra Naurú?

— Não, tia. Minha palavra de líder da Resistência.

 

 

 

*********

 

Os olhos voltaram a ficar opacos, com as pupilas completamente dilatadas tornando-se quase cega ao dia, ótima visão durante a noite. A falta de lua faz com que o meio da mata torne-se um completo breu, as mãos putrefatas de Sara se levantam cobrindo o rosto com a chegada de uma tocha. O buquê vermelho arde seus olhos, o calor a incomoda, ela rosna baixo sentindo o cheiro de carne fresca se aproximar.

Ao lado da tocha, o rosto de Daniele surge junto de Henrique e k3.316. Sara deixara de se alimentar, sua última refeição já faz quase vinte dias, um traficante no meio da luta com orobas, no dia da morte de Dominique. O jejum a faz apodrecer rapidamente, mas também faz com que seus olhos e ouvidos sejam sensíveis a outras coisas. A corrente em torno de seu pescoço impede dela sair da árvore marcada, caso perca o controle de sua insaciável fome.

— Pediu que me chamasse, Sara? — fala Daniele.

A morta repete em tom inaudível palavras de suas próprias profecias. O caderno com suas anotações e a bíblia tem folhas arrancadas e rasgadas, as páginas boiam manchadas na água pantanosa.

— Sara! — Levanta a voz, chamando a atenção da mulher.

— O escolhido, levanta-se no mar de espelhos. — fala a zumbi olhando ao nada. — asas douradas, guiará até o coração do mal... o escolhido...

As falas repetitivas tornam-se um murmuro, Henrique se incomoda com o cheiro exalado da mulher, muito mais forte do que antes.

— Ela está fora de si. — Henrique fala com asco no olhar. — Por favor, dê alguma coisa para ela comer pois...

— Eu mando comida todos os dias, ela se recusa! — esclarece a naurú. — Eu não sei mais o que fazer. Um dos seguranças disse que ela falou de forma consciente a pouco tempo, pedindo para falar com a alien que estava conosco...

K3.316 olha assustada e admirada para a zumbi.

— Talvez eu consiga falar com ela.

— Pode usar sua telepatia? — questiona Henrique.

— Não estou conseguindo, mas sei que consigo fazer um elo mais forte com o toque.

A clonada se aproxima devagar na magra e apodrecida mulher, os cabelos curtos e parcialmente caídos da zumbi revelam parte de seu couro cabeludo. Ela balança o corpo, imersa em suas visões e fala repetitiva. A loura de traje militar chega até seu ombro, quando está prestes a tocá-la a mão da morta se vira rapidamente segurando seu pulso. Daniele corre para conter o ataque, Henrique faz menção de gritar, a clonada inspira o ar para um berro, e tudo para.

 

 

 

— Olá, Karen. — fala o rosto jovem e belo de Sara.

A clonada olha ao redor, a casa tem as cortinas fechadas, as mobílias bem arrumadas, duas poltronas ficam frente a frente da sala ampla e decorada.

— Mas esse... que lugar é esse?

— Isso é sua casa. Bom, pelo menos foi assim, a Cidade Luz só durou quinze anos depois que você chegou, até bastante considerando de o quanto conseguimos durar outros refúgios depois disso.

— Minha casa? Do que você está falando?

Sara senta-se em uma das poltronas de tecido vermelho, sorri com as mãos nos braços estofados.

— Não te contaram como você veio para cá? — Sara a admira com seus belos olhos castanhos. — É, imagino que os militares não se preocuparam muito em contar como surgiu antes de um tubo de ensaio. Seu nome, por exemplo...

— Sou K3.316. Isso é apenas um número serial. A maioria de minhas irmãs sequer consegue falar de si mesma sem ser na terceira pessoa, não têm identidade.

— Sim, elas são apenas uma parte de você, não o todo. O “k” é de Karen, seu verdadeiro nome. Eu soube como você se chamaria assim que a vi em meus braços. Pobre Arthur... ele teve a responsabilidade de ser como seu pai, mas ele mal tinha dezenove quando você chegou. Eu era mais velha.

— O velocista? Aquele que morreu no laboratório?

— Ele foi um ótimo líder. Eu liderei tempo demais, e quando percebi que eu era mais útil em minhas visões, Arthur não hesitou... ele formou a Resistência, éramos muito unidos.

— Não é o que eu vejo. — fala K3.316 sentando-se na poltrona. — Os Vermelhos e Saqueadores parecem tão separados, fora os grupos que ficavam em outros pontos...

— Sim, isso foi depois que a Cidade Luz foi atacada. Foi uma falha, um único deslize e foi o suficiente para que os Cains descobrissem onde estávamos. Foram tantos mortos... um massacre, muitos foram levados para servir de alimento da rainha louca e você... você tentou ser o que era.

— Eu? Você está falando da alien original?

— Sim, Karen. Você mesma, pois é como ela. — A morta sorri com os dentes agora apodrecidos. — Você é esperta como ela era, é por isso que estamos aqui, graças a uma de suas habilidades mais poderosas que finalmente está se desenvolvendo, a telepatia.

— Eu consigo ver o que as pessoas pensam, ler o que...

— Karen, isso é muito pouco perto do que pode fazer... — A voz é interrompida por um grunhido e depois retoma. — Me desculpe por isso, eu não tenho muito tempo em sua mente, por favor, me escute.

Karen ouve atentamente a mulher que tem os cabelos caindo a sua frente.

— Eu me mantive por tanto tempo por causa de um composto, um dos cientistas da Aliança criou um tipo de tônico, tem poderes regenerativos, dão grande força. Eu roubei ele em uma de nossos ataques na Aliança. Eu vi o Major tomar o líquido, então o vi quebrar o maxilar de clones suas usando apenas as mãos, ele fez isso quando era um sargento ainda, ele fez isso apenas por diversão, é um sádico louco.

— Está falando do Major Manson? Ele comanda praticamente tudo militarmente na Aliança.

— Ele mesmo. Quando eu o vi fazer isso, eu não... não aguentei, o ataquei, e acabei matando o cientista dele no meio da luta. O Major usava o tônico para ter poderes, eu me alimento de... bom. Não preciso detalhar, não é?

— Não, e o que aconteceu?

— O tônico, eu trouxe para cá, com poucas gotas eu consegui me manter viva por tanto tempo... viva dessa forma. — fala Sara olhando para si mesma, os braços começam a transparecer a podridão. — Eu guardei, ainda tenho um pouco, talvez seja o suficiente para você regenerar tudo o que precisa para usar sua telepatia. Não apenas lendo, mas comandando. Tenho certeza que você saberá exatamente o que fazer para...

Sara para, olha para as paredes ao redor, seu rosto parece confuso.

— Para o que? — questiona Karen.

— Para liderar. Liderar você mesma... — A morta volta o rosto ausente de bochechas, um verme sai de um dos olhos e caminha pela lateral, entrando pelo ouvido. — Quando encontramos você na nave, pegamos tudo o que podíamos... tem até uma roupa, um pouco fantasiosa, mas acho que você pode gostar.

— Por que acha que uma roupa é importante para mim?

— Um uniforme te identifica como parte de um todo, dá um senso de coletividade. — Sara aponta para o traje militar da clonada. — Você mesma disse que a maioria de suas irmãs sequer falam “EU”, elas são apenas uma peça da Aliança.

Karen olha para si mesma e nota o bordado na camiseta de “K3.316”.

— Estranho, antes eu não notava isso, mas agora me incomoda a faixa vermelha da manga, que me lembrava que eu deveria ser a comandante delas. Me identificando como diferente delas.

— Você é. A roupa de sua terra natal irá mostrar quem você é, de onde veio.

— Quer que eu vire algum tipo de símbolo para a Resistência?

— Karen, quero que você se liberte. Seja exatamente o que desejar, e dê o troco que quiser a quem preferir.

Karen sorri para a morta que solta um rosnado visceral, a boa putrefata avança para o rosto da loura que recua segurando a mão de Sara. Ao piscar os olhos, ela nota Daniele contendo Sara por trás e o grito escapado da boca de Henrique.

— Minha nossa, você está bem? — Daniele indaga enquanto puxa a zumbi e Karen nota que tudo se passou em apenas o instante do toque. Ela está de volta à tenda, mas agora com o rosto brilhando em suor.

— Eu... — confusa, ela mal consegue falar.

— Ela falou com você, não é? — Daniele questiona, já sabendo a resposta. — Ela faz isso mesmo.

Enquanto a licantropa a segura Sara se mexe como se tentasse libertar-se. Ela abocanha o ar com os olhos dilatados, farejando e movendo-se pouco com seu corpo cadavérico.

— Eu estou bem. Só preciso encontrar o que ela me disse...

Daniele balança a cabeça concordando.

— Bem que ela me disse que isso aconteceria... ela sempre carregava algumas coisas, tem uma caixa no canto, deve estar tudo lá. Ela vivia arrumando essa... desculpe, eu não acreditava mais que tudo isso iria acontecer.

A clonada olha para o canto escuro da tenda e se aproxima da caixa de madeira, o pequeno baú range ao abrir e revelar a roupa branca de um brilho peculiar. Ao lado, dois pequenos frascos de um líquido esverdeado, uma Bíblia com diversas marcações e um caderno.

Folheando as páginas, Karen observava as diversas anotações que você está lendo agora. Como eu disse, eu queria deixar tudo isso registrado de como começou e de como irá terminar.

 

 

 

*********

 

Daniele entra de supetão no quarto de Dimitri. A casa próxima ao acampamento vermelho fora invadida e ocupada por alguns desacostumados a dormir no chão.

— Dimitri! Você terminou a...

A líder interrompe a fala ao dar de cara com Aradia sentada em posição de lótus, de olhos fechados a bruxa medita com o corpo pairando a poucos centímetros do chão.

— Oh! Eu não sabia que vocês estavam...

Dimitri não responde, continua balançando a cabeça suavemente, embalado no som de rock pesado que escapa dos fones de ouvido. Daniele vai até ele e puxa os fones de uma vez, o corrompido se vira rapidamente com a mão incandescente e para os dedos vermelhos a poucos centímetros do rosto dela.

— Me desculpe invadir assim, mas eu vim buscar a coleira.

Dimitri vira-se para a mesa e pega uma coleira metálica. O largo aro de ferro possui dispositivos eletrônicos e uma parte mais larga visivelmente acoplada recentemente. Um led apagado fica ao lado de uma fenda, de onde escapa uma fita plástica. O corrompido entrega o objeto para ela e se senta novamente na mesa, se debruçado no chip presente em um pequeno controle remoto.

— Está como eu disse que faria, assim que fechar e puxar a tira, não tem volta. A não ser que você me peça para desarmar. Sinceramente espero que não faça isso.

Daniele observa a coleira pesada.

— Isso é bem largo e pesado, provavelmente irá machucar o pescoço dele.

Dimitri levanta o rosto com os óculos de várias lentes a frente dos olhos cinzas.

— Quer que eu a faça confortável? Meio irônico, não acha?

— Não pode atrapalhar na luta, é nisso que estou pensando. — Ela faz um gesto de jogar a coleira na mesa, mas pensa melhor e a coloca cuidadosamente na madeira.

— Não se preocupe, não é sensível a movimento assim, ou isso sim atrapalharia qualquer luta.

— Certo, quando terminar, me traga logo isso para planejarmos o ataque. Acorde a Aradia, seria bom para ela saber dos planos também.

— Tá brincando comigo?

— Por que? Qual o problema nisso?

O rapaz levanta novamente o rosto bufando pelos lábios impaciente, pega um led solto na mesa e arremessa em direção da bruxa. A peça é incinerada em um campo de força negro que se forma em uma esfera ao redor dela, que continua em transe.

— Ela me torrou a mão quando fui perguntar se não queria comer.

— Certo... — A líder volta a olhar para Aradia ainda flutuando de olhos fechados e rosto pacífico. — Ela está ouvindo?

— Acho que não. — fala o corrompido entretido, colocando finalmente a tampa do controle remoto. — Ela não reage a nada a horas.

 

 

 

*********

 

— Ei, cachorro!

O naurú, já irritado suspira ainda olhando ao longe, evita direcionar o olhar para o Caveira, ignorando suas provocações.

— Eu posso te arranjar um bife, que tal um osso?

O robusto indígena não responde, continua em posição superior segurando a lança adornada de penas. Ele ouve a movimentação no denso lodo, Marcos tentando se movimentar em sua baixa jaula.

— O gato tinha razão, eu não devia ajudar vocês pitangas... — resmunga se arrastando de um lado a outro na jaula. — Aposto que uivam para a lua...

O soldado revira os olhos e depois retoma a postura quando Daniele entra rapidamente com mais um guerreiro armado de um tacape.

Ela faz um gesto e enquanto um puxa brutalmente a corrente fazendo o Caveira ficar preso na parede da jaula, outro desce na parte alagada e abre a parte superior. Marcos engasga-se com a corrente apertando sua garganta e seu único braço é contido pelo soldado. Daniele se aproxima sorrindo, coloca o colar metálico por cima da outra, assim que um sonoro clique é ouvido ela puxa a pequena fita plástica e um led vermelho pisca duas vezes com um bipe longo.

— Pronto. Solte-o. — ordena ela saindo do lodo.

Os soldados se entreolham estranhando, mas logo tiram a coleira que o continha na jaula. Marcos, já com seu rosto vermelho, tosse para recuperar o fôlego, Daniele aguarda que ele se recupere para falar.

— Eu já falei com os Vermelhos e os Saqueadores. Espero que nosso acordo...

As tosses do Caveira são muito elevadas, ele puxa um pigarro asqueroso que causa um desconforto na sobrinha.

— Então... espero que se lembre de nosso acordo.

— Eu já estava achando que você tinha mudado de ideia. — Ele cospe na água lodosa. — Afinal, dois dias nessa casinha de cachorro não estava no acordo original. E nem essa... — levando a mão para sentir a coleira metálica do pescoço. — Isso é algum tipo de jogo de sadomasoquismo? Já aviso, eu não quero nada no cu.

— Isso é só uma garantia que você não saia do planejado. Venha.

Ela se vira indo em direção a tenda, acompanhada pelos guardas. Marcos tropeça fraco ainda, mas consegue sair do lodo seguindo a mulher. Ele bate a cabeleira loura para tentar tirar os restos de lama e percevejos que o atormentaram durante a noite. Assim que entra na tenda, vê que Henrique, Dimitri e Aradia estão no lugar aquecido pela fogueira. Um ancião indígena está sentado na lateral e a tenda é fechada logo atrás de Marcos por mais dois soldados Vermelhos.

— Cada vez mais acho que preciso de uma palavra-chave... — murmura.

O ancião olha para Daniele em aprovação, ela toma a fala.

— Então, o combinado é que Marcos irá comandar os caveiras pela entrada lateral, eles é quem irão abrir os portões para nós. Distraídos, os orobas e vampiros poderão ser surpreendidos quando entrarmos com a Resistência.

— Portões? Do que está falando, Dani? — questiona Henrique. — Achei que os Cains estivessem escondidos em um lugar ermo... eles fizeram um muro tão rápido?

Daniele baixa os olhos.

— Não... eles tomaram as ruínas da Cidade Luz.

Dimitri e Henrique ficam estarrecidos. Marcos ri.

— Irônico, não é? Vocês tentaram construir aquele refúgio, era pra ser o lugar de salvação, mas então... deu merda. E agora, vocês é que vão entrar batendo na porta da frente.

— Se bem me lembro, foi você quem abriu os portões da outra vez. Tantos morreram por sua causa... — Dimitri fala com os olhos em desprezo.

— Eu sou bom em uma coisa. Sobreviver. E é o que vocês deveriam pensar na possibilidade.

— Não seremos escravos. — Henrique fala em tom baixo.

— Então faça como eu, venda os escravos para eles. Aliás, você daria um bom caçador, isso se não fosse sempre um dos animais... — Marcos solta um riso debochado. — Agora faz muito sentido você e minha sobrinha, não dá pra falar que é zoofilia se os dois forem...

A fala dele é interrompida quando ele trava o corpo e começa a se contorcer no chão, o som característico de uma corrente elétrica é emitido de sua coleira que agora o led pisca rapidamente. Daniele, que está apontando o controle remoto a ele, solta o botão permitindo que ele volte a respirar de forma ofegante.

— SUA VAGABUNDA! — berra Marcos no chão.

Daniele pressiona o botão, ele treme o corpo em silêncio e o bip permanece contínuo. Vanessa, filha de Marcos, entra na tenda e permanece atrás de Henrique. A líder naurú se aproxima devagar do torturado no chão.

— Marcos, você mesmo disse que é bom em sobreviver. Eu estou lhe dando essa chance agora, abra os portões, nos ajude com os cains. E se você e sua gangue ficarem vivos depois disso eu posso permitir que vocês fujam para um lugar bem longe da América do Sul.

Marcos ainda treme, algumas veias explodem em suas órbitas oculares. A densa saliva escapa da boca e vai ao chão com ele de lado. Daniele solta o dedo do botão e ele respira novamente, assustado.

Daniele volta os olhos para Vanessa e a chama.

— Está atrasada.

— Sim, eu...

— Ele precisa estar apresentável aos Caveiras, faça isso. Você e Dimitri vão ficar no grupo deles, o acompanhando de perto para que siga o plano como foi combinado.

A garota confirma com a cabeça, Dimitri se aproxima puxando Marcos do chão.

— Tira a mão de mim, mutante desgraçado! — resmunga atordoado, tentando ficar em pé, se escorando em um pilar de madeira. — Eu sei... isso é também uma forma de compensação pelos dias que passou comigo em Brasília, cachorra.

Ele passa a mão na coleira metálica.

— Nem pense em tentar tirar. Pequenas porções de fertilizantes podem se misturar com pólvora e uma faísca com qualquer tentativa de cortar ou quebrar esse colar. — Daniele estende a mão, exibindo o controle. — Além do meu controle a distância, caso você saia da linha.

— Maravilha. — resmunga Marcos.

— Também não é o único controle, é sempre bom prevenir. — fala Dimitri.

Marcos olha para as esferas cinzas do noman em um sorriso verde.

— Eu imagino que esteja com você, pela família.

Dimitri continua sempre com sua expressão calma e inerte.

— Não, eu só tocarei sua cabeça e irei carbonizar esse esgoto dentro de seu crânio.

Dimitri estende o braço, indicando ao Caveira a saída, ambos saem junto de Vanessa. O ancião se levanta e também está indo embora quando Daniele intervém.

— Não vai dizer nada?

— Não preciso, Batarra Naurú sabe o que faz. — fala o velho já na porta. — Os vermelhos sabem disso, ninguém vai brigar com suas decisões.

Daniele se tranquiliza, Henrique se aproxima a abraçando pela cintura.

— O velho está falando a verdade. Os saqueadores também acreditam em você.

— Espero que dê tudo certo. — fala ela em tom preocupado.

— E quanto a clonada? Alguma notícia?

— Aradia está acompanhando ela, por meio de seus corvos. Se K3.316 conseguir mesmo, podemos vencer completamente, não só os Cains, mas a Aliança também irá ruir.

— É arriscado.

— Sobreviver sempre foi arriscado, mas agora teremos uma chance.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Apocalipse" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.