Mais que o Tempo escrita por Le petit prince egoiste


Capítulo 5
Cinco


Notas iniciais do capítulo

"As suas queixas tão justificáveis
E a falta que eu fiz nessa semana
Coisas que pareceriam óbvias
Até pra uma criança"



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/772425/chapter/5

Ao chegar à livraria, Pietro abordou Délia com a mesma afobação.

“Aconteceu de novo! Fui até o passado através da porta!”

Délia, assustada, mandou que ele se sentasse atrás do balcão em seu lugar.

“E o que aconteceu dessa vez?”

“Você não vai acreditar! O Miguel. Quero dizer, o Randolfo! Não! O Randolfo era amigo do Otávio. Randolfo é o Miguel. E sabe do quê mais? O pai do Luccino veio me ameaçar no quartel. Sabe quem é ele? O meu pai!”

A bibliotecária tapou a boca com as mãos.

“Uau, Pietro! Você simplesmente abriu a porta e estava lá? No quartel? Quer dizer que a porta dá pra outros lugares além da casa? Por que o pai do Luccino veio te ameaçar?”

“Sim, ela deu direto pro quartel. Ele disse que já tinha me ameaçado uma vez. O irmão do Luccino, Virgílio, deu um tiro no próprio pai não sei por qual razão. Só que o Gaetano, o pai, melhorou e veio me ameaçar de novo. Ou eu abandono Luccino ou ele conta pro coronel toda a verdade. E não faço ideia da decisão que o Otávio tomou.”

Délia demorou um tempo para responder.

“Pietro, você acredita em vidas passadas?”

“Tipo viver várias vidas? Aquela coisa de espiritismo?”

“É. A ideia de que este corpo abriga um espírito imortal que atravessa o tempo... E várias vidas... Buscando a evolução. Querendo se redimir de erros às vezes milenares. Sabe? A ideia de que a vida não cessa com a morte.”

“Eu sei, tenho alguma ideia sobre. Mas então você acha que...”

“Que você é a reencarnação do Otávio, assim como o Caetano é a reencarnação do Gaetano, o italiano ranzinza do século XIX. Algo aconteceu neste passado que vocês precisaram retornar. Um resgate. Um arrependimento. Algo que ficou pendente. O que acha disso?”

“Eu não sou tão cético, mas... É, no mínimo, estranho. Por que eu tive a oportunidade de ver quem eu fui em outra vida?”

“Isso é impossível de dizer. Mas não quer dizer que você não deva aproveitar essa chance, não é? Pra isso você vai ter que continuar indo até lá.”

“Mas isso quer dizer que todas as pessoas que conheço estão ligadas a essa história também?”

“Acho que nem sempre. Mas confesso que estou curiosa pra saber se participei dessa história... Não deixe de me contar se me ver por lá.”

Pietro riu.

“Às vezes nem acredito que você embarcou nessa história comigo.”

“A loucura da realidade não é nada confortável. Eu prefiro a loucura da fantasia.”

Dito isso, Délia piscou, atrevida. Seu telefone começou a tocar e ela correu a um canto reservado para atender. Nesse tempo, Rodrigo chegou à livraria acompanhado de uma mulher bonita de olhos graúdos e boca bem marcante. Logo Pietro começou a engolir em seco, em pleno nervosismo.

“Oh, Rodrigo. Veio pedir outra indicação?”

“Sim, mas dessa vez trouxe a pessoa comigo. Essa é minha namorada, Ágata”.

Foi como se Pietro tivesse recebido um soco no rosto. Então o Rodrigo é hétero! E tinha uma namorada! Pietro ficou vermelho de vergonha. E estava se permitindo ficar interessado pelo rapaz! Queria se enterrar num buraco, mas teria de lidar com sua vergonha após atender a moça - lindíssima, por sinal. Antes de levá-la para os corredores com livros, Pietro observou Rodrigo distraído. Aproveitou a deixa para revirar os olhos. Como eu me iludo!

x-x-x

Depois daquela fatídica vergonha alheia na livraria, Pietro encerrou o dia de trabalho acreditando que todo o possível já havia lhe acontecido. No entanto, deu novamente consigo a caminhar pela mesma rua da oficina mecânica do pai. Era estranho flagrá-lo na costumeira distração, ainda mais agora que sabia quem ele fora no passado. Porém, desta vez a circunstância foi diferente. Caetano se encontrava sentado em frente a um carro desmontado, as mãos no rosto e os ombros sacudindo - chorando.

“Pai? O senhor está chorando?”

Caetano deu um salto. De rosto vermelho, usou as mãos para apagar o vestígio das lágrimas, num movimento brusco e impensado que só o deixou mais vermelho. Os dois se encararam. Caetano quis ajeitar a postura para parecer rude.

“Até quando vai dar uma de enxerido e aparecer assim do nada?”

“Calma, pai. Eu mal cheguei. Não precisa me atacar.”

“Você não é bem vindo aqui e sabe disso.”

“Por que estava chorando?”

O homem derrubou os ombros, voltando a sentar. Esfregou os olhos, exausto.

“Esta droga de carro está me dando um trabalho do cão.”

Pietro semicerrou os olhos.  

“Não acho que o senhor choraria por um trabalho difícil.”

“Você diz isso por que teve a vida boa!”

“Pai...” Pietro se aproximou e sentou-se no banco. Caetano não ofereceu resistência.

“Lembrei da sua mãe. Ela estava fazendo horas extras no trabalho porque queria comprar um carro igual esse.” Caetano disse, com a voz embargada. Pietro respirou fundo, sentindo que aquela seria outra conversa difícil.

“Ô, pai. Tenho certeza que a mãe está muito feliz.”

“Feliz? Ela morreu. Pronto. Acabou.”

Pietro decidiu não tomar aquele rumo. Levantou, esticou os braços e pegou as ferramentas do balcão.

 “Vou lhe ajudar nesse carro. Assim podemos ir embora mais cedo.”

Caetano observou-o, espantado com aquela ação repentina. Por um instante, quase sua casca grossa se partiu. Mas ele não se deixou abater.

“É, quem sabe assim você cria jeito de homem.”

“O senhor, então, tem jeito de homem? Ora, se não conseguiu nem trocar a bateria desse carro. O que significa? Nada. Vamos lá, papai.”

Ele cruzou os braços, fingindo raiva. Mas no fundo, bem que estava muito orgulhoso. 

x-x-x

Quando Giovani viu o pai chegando junto do irmão, não conseguiu esconder o assombro. Porém, nada comentou. Apenas compartilhou um sorriso cúmplice com Pietro. Eles jantaram juntos, embora em silêncio. Era um começo e Pietro comemorou a pequena conquista.

À hora de dormir, Bruna chamou-lhe para conversar no quarto do casal, séria.

“Hoje não dormiremos separados?”

“Preciso conversar com você, Pietro. Vamos sentar.”

Os dois sentaram-se frente a frente na cama. Bruna suspirou, preparando-se.

“Pietro. Precisamos resolver nossa vida. Ninguém aqui está feliz. Eu não estou e você não está. Boa parte do que aguentei foi por escolha própria, mas agora não dá mais. Tenho certeza de que seremos melhores como amigos. Mas, como marido e mulher, só perdemos tempo. Me sinto frustrada e minha autoestima está indo para o lixo. É melhor pra nós dois que a gente se separe.”

Pietro escutou tudo com calma, o que Bruna já esperava. A separação era certa, bastava que um deles tomasse a iniciativa. Os dois tinham se casado mais por costume e necessidade do que por qualquer outra coisa.

“Tem razão, Bruna. Não posso te dar o que você quer. Você não pode me fazer feliz. E assim ficamos. É óbvio que não nos casamos por amor. Só que... Pra nós dois, era como se não merecêssemos mais do que isso. Como se não acreditássemos que éramos destinados a alguma felicidade. Então a gente foi... se acostumando um com o outro, não foi?”

Ela empertigou-se, demonstrando incômodo.

“Eu não me casei por amor, é verdade. Mas... Mas o costume, o costume me trouxe esse amor. Eu amei você, Pietro. E... Me doía ver que nada tinha mudado em você. Que eu não conseguia me fazer ser desejada por você. Isso foi me destruindo aos poucos, sabe?”

Pietro segurou nas mãos de Bruna, que chorava.

“Como alguém pode não amar você? Você é linda. Mas a nossa relação não passa da amizade... E eu fico feliz de estarmos nos acertando numa boa, porque não quero acabar com nosso vínculo. É esse o tipo de amor que tenho por você. Amor amigo.”

Ela assentiu.

 “Teria sido tão mais simples se não tivéssemos perdido tanto tempo, não é?”

“Ah, isso é.” Pietro riu nervosamente.

“Desculpe por tudo. Nunca quis constrangê-lo ou magoá-lo.”

“Quê isso, Bruna. Nós dois erramos. Eu também errei.”

“É isso. Nossa!” Ela suspirou de alívio “Você também não sente que tirou um peso das costas?”

“Tirei um peso, de verdade. Nós crescemos, Bruna. Não somos dois adolescentes em busca de aprovação da família e dos outros. Na verdade, foda-se, não é?”

“Foda-se!” Bruna gritou.

“Foda-se!”

“Foda-se!”

Eles começaram a rir, repetindo as palavras com intensidade crescente. Ao fim, pareciam cada vez menos com um casal desquitado. E sim com duas pessoas libertas de seus demônios. Ao pé da porta, silencioso, Miguel escutava a tudo, acreditando que a sua hora de libertação também chegaria em breve.

x-x-x

Na casa ao lado, Délia terminava a faxina junto a Vitor. Os dois organizavam um quarto velho que só servia de depósito. Talvez pudessem aproveitar o espaço para montar um escritório ou uma biblioteca particular. No meio da bagunça, Délia acabou encontrando dois objetos preciosos: Floretes enferrujados, amarrados por um barbante puído.

A princípio, não sabia de onde vieram. Mas Vitor, como bom policial, disse que era comum aprender esgrima no exército. Délia, portanto, com sua costumeira perspicácia, ligou o objeto aos antigos moradores. Deviam pertencer a Luccino e Otávio. Limpou-os e guardou para mostrar a Pietro no dia seguinte.

 Este, por sua vez, se encontrava perto da porta. A expectativa crescia em seu peito. Ele tocou a maçaneta gelada, mas se deteve. Escutara passos na sala. Ao olhar para trás, seu corpo estremeceu. Luccino estava ali, olhando-o fixamente numa expressão nada agradável. Pouco se parecia com o doce mecânico das lembranças. Dirigia-lhe um olhar odioso. Angustiado e trêmulo, Pietro sentiu o corpo ficar tonto. Deteve-se, colocando as mãos no batente da porta. A tontura continuava.

Sentiu a visão ficar turva até escurecer por completo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Até o próximo capítulo!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Mais que o Tempo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.