Mais que o Tempo escrita por Le petit prince egoiste


Capítulo 4
Quatro


Notas iniciais do capítulo

"Eu que tanto me perdi
Em sãs desilusões
Ideais de mim
Não me esqueci
De quem eu sou
E o quanto devo a você"



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Pietro acordou sobressaltado. Demorou a perceber a luz do dia entrando pela janela, transpassada pelas cortinas brancas. A casa se encontrava quieta, exceto por pequenos rumores de panelas na cozinha. Devia ser Caetano preparando o café para ir trabalhar. Na verdade, Pietro se sentia num torpor. Seu corpo se encontrava alerta, mas paralisado, a cabeça voltada para o teto. O que fora tudo aquilo que aconteceu na noite anterior? Bruna ao seu lado. É, devia ter sido apenas um sonho. Já se cansara do tanto de vezes em que tinha sonhos daquele tipo, frutos da sua sexualidade reprimida. Não seria estranho se os tivesse novamente. Mas aquele foi detalhado... Pareceu... Real...

Pietro saltou da cama de uma vez só. Eis sua surpresa ao sentir um pequeno objeto frio ao redor do seu pescoço. O colar! Cujo pingente era um anel! Mas... Mas ele havia recebido-o das mãos de... De Luccino! No sonho! Como era possível? Espantado, decidiu arrumar-se o mais rápido possível para contar o que lhe aconteceu para Délia. A única que poderia acreditar naquela sandice. Ora, era capaz de Bruna ter colocado o colar durante a noite! Aproveitando que ela acordou com os barulhos de Caetano na cozinha, Pietro indagou a respeito:

“Bruna? Foi você que colocou esse colar em mim?”

“Quê?” Disse, atrapalhada de sono “Que colar, Pê?”

“Esse” Mostrou

“Não, não fui eu, não. Onde conseguiu isso?”

“Tem certeza? Você não é sonâmbula ou algo assim?”

“Se em anos de casamento você não percebeu que não sou, então você é mesmo um péssimo marido” E voltou à sua posição de dormir, amuada pela noite anterior.

“Não vai nem me dizer se o Miguel passou a noite bem?”

Bruna virou o corpo, desperta.

“Sim, ele passou a noite bem”

Por um instante, passou pela cabeça de Pietro a dúvida de como ela sabia disso. Mas achou melhor perguntar direto para o seu amigo. Foi até o quarto de Miguel, deu dois toques leves na porta e ouviu sua voz dizendo para que entrasse.

“Licença. Vim saber como você está. É que ontem...” Pietro começou, desconfortável.

“Tudo bem, Pê. A Bruna...” Ele corou ao falar em seu nome “A Bruna me falou do vexame que fiz ontem”.

Pietro sacudiu a cabeça em negativa, sentindo-se à vontade para se aproximar.

“Não é vexame nenhum. Recaídas acontecem. Mas vamos cuidar pra que aconteçam com menos frequência até desaparecerem. É como um band aid, certo?”

Miguel ajeitou o corpo na cama, esfregando as têmporas.

Band aid. Continue.”

“Não sou muito bom com essas coisas de emoção, Miguel. Como você vê, às vezes sou aleatório. Mas... Se nós passarmos muito tempo protegendo a ferida, não perceberemos que ela já secou. E pra isso acontecer, temos de ter coragem de tirar o band aid com tudo.”

“Mesmo que arranque uns pelinhos”

“É”

Os dois riram. Porém, logo Miguel voltou à expressão soturna.

“Mas... De verdade. Queria me desculpar por ontem. Eu estava sendo forte, mas... Mas me sinto tão frustrado boa parte do tempo!”

“Eu acho que você tá sendo forte agora. Quase consigo entender seus sentimentos. Quase. Mas as nossas frustrações são diferentes.”

Miguel mostrou os olhos brilhantes.

“Você acha? Eu acho que são parecidas. A questão é que eu coloco isso em algum lugar. Foi daí que me tornei o bêbado. Você não. Desculpa Pietro, mas você também é frustrado como eu. Só que você guarda. Nessa vida onde a gente é incentivado a ter a emoção de uma pedra, ninguém te julga. Podem até romantizar isso. Achar você atraente porque é o homem misterioso... Ficam doidos tentando dar uma razão a tudo. Só que as pessoas enlouquecem e são diferentes até na loucura, já percebeu? Eu não saberia guardar nada, mas como também não quero lidar, preciso jogar o fardo em algum canto.”

Pietro processou aquelas informações. Por isso Miguel e ele eram amigos: Miguel tinha uns surtos de sinceridade pertinentes, enquanto Pietro era a parte que equilibrava seus excessos. As palavras do amigo eram verdadeiras e ele aceitou-as. Parte de seu coração balançou; entendia que um dia chegaria a hora de parar de se sabotar. Seus pensamentos se voltaram para Luccino: se existisse possibilidade de ter um Luccino em sua vida agora, sem ser uma alucinação, como ele agiria a respeito? Até quando se sentiria sujo com seu estranho amor?

“Você tem razão, Miguel. Droga, Miguel.”

“Até depois de um vexame sou mais sensato que você” Ele brincou

“Ah! Agora essa!” Pietro riu.

“Essa fica pelo seu vexame no jantar. Estamos quites.”

Pietro afagou os ombros de Miguel, amigável. Eles trocaram um olhar sutil a respeito da noite passada: apesar da névoa de confusão em ambos os olhos, os rapazes estavam fugindo de um assunto em suspenso... A declaração amorosa de Miguel para Bruna.

“Confio em você, garoto. Você vai sair dessa.”

“Vou.” Completou, resignado “Vou sim.”

Eles suspiraram.

“Preciso ir. Ou vou chegar atrasado na livraria. Tanta coisa louca aconteceu de ontem pra hoje... Você nem imagina.”

Pietro levantou da cama, dirigindo-se à porta.

“Pietro?”

Ele se virou.

“Sim?”

“Desculpe.”

“Não se preocupe. É como você diz. E já passou da minha hora, não acha?”

Miguel entendeu.

“Tem certeza?”

Pietro observou-o, firme. E assentiu.

x-x-x

“Eu quero dizer isso aqui!”

Pietro mal esperou Délia colocar os pés na entrada da livraria. Começou a atirar as informações da sua alucinação da noite passada, sem perceber que ele estava entregando sua pequena fraude para a bibliotecária.

“Quer dizer que o senhor entrou pela porta do meio e teve uma viagem astral? E com o que chave, posso saber?”

Ele corou, envergonhado.

“Meu Deus! Desculpa! Aquele dia do jantar...”

“Tudo bem, Pietro. Afinal a porta divide as duas casas. Ah, vai, eu não sou boba, eu percebi que você pegou a chave. Enfim. E aí o tal Luccino pegou um colar com um anel e te deu?”

“Sim, era dele e me deu. Tipo, pra me proteger ou algo assim. Eu entendi como algo que eles faziam pra se proteger. Tipo, ó, agora você precisa mais do que eu. Não é lindo?”

“Quem te viu quem te vê. Todo empolgado falando, nem parece que era tão ranzinza antes...”

Pietro se fingiu de indignado.

“Ora! Todo mundo resolveu falar das minhas emoções hoje.”

“Claramente você parece mais feliz falando de um espírito do que da sua própria esposa.”

O rapaz se calou. Podia ficar na defensiva, mas preferiu absorver essa verdade.

“Ah, Délia!” Ele se sentou na cadeira atrás do balcão. “Parece que perdi o controle da minha vida e não importa o que eu faça, nunca vou conseguir voltar ao que era antes!”

“E o que era antes, Pê?”

“Eu, sozinho, frustrado. Mas pelo menos não envolvia mais ninguém nessa merda”

“E aí veio a Bruna?”

“A Bruna...”

Délia veio para o seu lado no balcão e pegou firme em suas mãos.

“Pode confiar em mim...”

Pietro sorriu, agradecido.

“Bom, Bruna...” Suspirou. Buscava na memória o estopim do seu desastre. E como era esperado, a memória sabia o local exato onde buscá-lo. “Bruna sempre foi minha melhor amiga. Era ela, eu e Miguel. Inseparáveis. Eu e Miguel, dois bobalhões. Bruna tinha mais vivência que nós dois juntos e tudo que sabíamos da vida era ela que tinha contado.”

“Entendo”

“Com o tempo, nossa amizade foi ficando mais... Ousada, com o passar da idade. Estávamos adolescentes, já. Vieram as cobranças. Minha família, meu pai, é claro, dizia que eu não podia passar tanto tempo assim amigo de uma menina. Eu deveria ao menos... Comê-la. Desculpe o termo.”

Délia revirou os olhos.

“Os machistas.”

“Pois é. Cheguei a apanhar porque, cada vez mais, papai queria que eu fosse... Homem. Me levava em cabarés. Contratava moças. Mas queria algo que ele pudesse exibir pra todos. Naquela época, ele descobriu um segredo de nós três. Descobriu que a Bruna estava grávida de outro rapaz e ainda não tinha contado pra família.”

“Caramba, Pê!”

 “Sim. E...” Pietro olhou para o alto, sentindo o coração acelerar “Ele usou disso pra me ameaçar mais uma vez. Quando chegou em casa, me deu uma surra. Disse que eu era um cafajeste. Quando perguntei o porquê, ele disse que eu era um safado por ter engravidado a Bruna sem querer assumir o filho. Fiquei apavorado.”

“Mas ele sabia que o bebê não era seu, né?”

“Sim! Mas aí... Ele aproveitou pra me ameaçar. Disse que, se eu não assumisse a criança e casasse com a Bruna, ele contaria pra cidade toda. Cidade pequena, sabe como é. Enquanto eu seria espancado por covardia, a Bruna ficaria mal falada e seria deserdada pela família. E foi o que eu fiz.”

“E pelo que você me disse do que aconteceu ontem, o Miguel...”

“Miguel continuou a andar conosco. Mas agora eu percebo que ele ficou cada vez mais abatido. E, ao mesmo tempo, quis ficar mais perto. Algumas pessoas se afastam nesses casos, mas, vendo agora, o Miguel não. O Miguel quis ficar perto. Só que ele... Acho que ficou frustrado pela vida toda. E se afundou na bebida enquanto eu... Virei algo que se volta pra si mesmo e não gosta do que vê.”

“O seu pai, ele é... Não sei nem dizer!”

“Tudo piorou quando ele descobriu que... Bom, que...”

“Não precisa falar se não tiver vontade. Mas eu já entendi.”

“Papai virou uma fera. Ninguém conseguia impedi-lo de me machucar. Mamãe estava no trabalho... Ela trabalhava muito, sustentava a casa, papai nunca gostou disso. E Giovani estava na oficina. Quando eles chegaram, ele tinha me expulsado. Mamãe, algumas vezes, teve de me visitar escondido com meu irmão. Acho que essa tristeza a levou para o túmulo. Apesar de que a Nicole, nossa mãe, nunca baixou a cabeça pro papai. Ele achava que era uma casa cheia de escórias. Até a esposa. E desde que ela morreu, ele nem se dá ao trabalho de notar minha existência”.

Délia suspirou, sentindo-se tonta pelas informações.

“Quem você acha que contou pra ele da gravidez?”

“Eu jurava que era o Miguel. Até certo tempo, nossa amizade foi abalada por isso. Eu não sabia se podia confiar nele ou não. Mas entendi que não é essa a questão. A gravidez ou não, eu acabaria do mesmo jeito.”

“E agora estamos com Luccino” Délia voltou ao assunto do dia.

“É. Luccino” A expressão de Pietro avivou “Foi muito real, Délia.”     

“Tem certeza de que foi só um sonho? Você não acredita, sei lá, em vidas passadas ou viagem astral?”

“Mas eu senti tudo tão forte... Você. Você me perguntou se eu não tinha curiosidade pela história da casa. Qual é a história da casa?”

“Eu só sei que esses moradores existiram nos registros antigos. Eu sou bibliotecária, Pê. Lido bastante com papelada antiga. Consta nos registros da prefeitura o endereço dessas casas no nome de Luccino e Otávio. Vizinhos. Otávio, major do exército e Luccino, mecânico. Hoje, o que era o quartel é a delegacia onde o Vitor trabalha.”

“E... a oficina?”

“Da oficina não sei. Você disse que no sonho você era o Otávio?”

“Sim. Sentia, via, tudo como Otávio. Mas com este pensamento. Pensamento de Pietro.”

“Você só vai saber mais se voltar lá.”

“Na porta?”

“É, na porta. À noite, pra ninguém te atrapalhar.”

Pietro soltou o ar.

“Minha nossa, Délia. Onde fui me meter?”

“É uma experiência fantástica, Pê, mesmo que tenha sido só sonho. Esse colar, ele existe, né? Aí já temos um sinal, pelo menos, de que algo aconteceu. E eu quero saber de tudo!”

Pietro riu.

“Pensei que eu seria chamado de louco.”

“Ah! O que é uma bibliotecária sem um pouco de loucura?”

“E ele?”

“Ele?”

“Ele. Como o colar, você acha que ele também existiu? Ou que... Existe?”

“Primeiro você vai ter que descobrir o que aconteceu.”

x-x-x

Ao fim do seu dia de trabalho, Pietro retornou para a casa do pai. Era impressionante como ele sabia seus horários e adiantava todos os afazeres só para dormir cedo e não cruzar com o filho sob hipótese nenhuma.

 O rapaz voltara para casa decidido a fazer duas coisas: Abrir a porta. Terminar com Bruna. Porém, quando chegou ao cômodo do casal, viu que a esposa havia se mudado para o outro quarto de hóspedes. Este, por sua vez, se encontrava trancado. OK. Quartos separados. Entendi. Sem alternativa, Pietro tomou banho, arrumou-se, segurou a chave e foi em direção à porta do meio. Sentindo o frio na barriga misturado a um pouco de tolice, girou a maçaneta...

x-x-x

Era Otávio. De novo. Apalpou seu corpo até se dar conta de que não estava na casa e sim no quartel do exército. Como comandante. À sua frente, uma mesa cheia de papeladas. Ouvia barulhos dos soldados em treinamento.

Alguém se aproximava da sua sala. Um homem de aspecto bruto, cabelos brancos, de olhos fixos no major. Não parecia deveras amigável. Pietro assustou-se ao perceber que se tratava de uma versão um tanto italiana e mais bruta de seu pai, Caetano.

“O-O S-Seu Gaetano quer fa-ffalar” Anunciou o rapaz gago, por sua vez a cópia do amigo do presente, Miguel, numa versão aparvalhada. 

“Pode entrar” Otávio disse num tom nada agradável.

“Ora, não precisa falar por mim, tenente Randolfo. É bem breve o que vou dizer.”

“Pode nos deixar a sós... Randolfo.”

 Quando Randolfo saiu, a sala imergiu num silêncio constrangedor. Gaetano chegou mais perto, os passos como de um bicho prestes a dar o bote, lentamente calculados, embora desajeitados. Otávio percebia a fúria de seus olhos.

“Não vou perder meu italiano com você, Major. A esposa sente falta do menino. E o senhor pensa que se livrou de mim nesse tempo que fiquei no hospital. Mas italiano não quebra fácil”

“É mesmo. O senhor já sofreu tanto na vida, não é? O que é um tiro do seu próprio filho perto disso? O que é um filho quase matando o pai perto da desgraça de ter um filho que está amando e feliz?”  

 Gaetano avermelhou, esmurrando a mesa. Otávio levantou-se em cólera.

“O senhor tome muito cuidado com o que vai fazer. Esse é o meu quartel. As ameaças que o senhor usa na sua casa para ameaçar sua família não são nada aqui.”

Otávio saiu de detrás da mesa, encarando o italiano, que não desviou. Trazia o corpo endurecido de tensão.

 “Eu vim aqui uma vez e pedi que se afastasse do garoto. Mas o que vejo depois de ter acordado no hospital? Que meu filho saiu de casa e... É vizinho de um frouxo! Você não se afastou dele!”

   “Ele saiu de casa porque o senhor o expulsou. E o mesmo estou fazendo com o senhor. Queira sair daqui agora ou mando lhe prender por desacato.”

“Você tem três dias pra sumir do Vale do Café, ou eu denuncio seu vício à corporação. Agora o senhor não tem mais o Coronel Brandão para lhe proteger. Aquele outro devia ser um farabutto! Ainda bem que foi transferido!”

“Basta! Coronel Brandão é um homem que sempre honrou a sua farda! Pois denuncie! Ande, eu mesmo chamo o Coronel Flávio agora mesmo. Denuncie. Pelo menos o senhor perderá o poder que acha que tem sobre mim. Anda, agora. Vai.”

Gaetano encarou-o uma vez mais e saiu da sala, calado, deixando uma nuvem de ódio atrás de si.

Otávio soltou o ar. Sabia: desta vez, as ameaças não eram da boca pra fora. Em três dias, sua decisão teria de ser tomada. Pietro teve a mesma intuição: era a hora de encerrar algumas questões e dar um rumo definitivo para seus problemas.


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Notas finais do capítulo

E as viagens continuam... Lembrem que estou recriando as cenas da novela, pensando em acontecimentos após a história que foi ao ar na TV. Obrigado por lerem e espero no próximo...



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