Mais que o Tempo escrita por Le petit prince egoiste


Capítulo 2
Dois


Notas iniciais do capítulo

Não há um lado bom, outro ruim não
Como nos filmes e nos planos
E é sempre um oceano entre o sim e o não
Todos tontos
Para o mesmo lado
Com o mesmo barco
Em movimentos simultâneos circulares



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À noite, Pietro, Bruna, Giovani e Miguel se arrumaram para ir à casa de Délia. Ao chegarem lá, foram recepcionados pelo casal. Vitor era um homem, a princípio, que parecia gostar da ordem e disciplina, já que se via todo o cuidado com a roupa bem alinhada e o bigode aparado perfeitamente. Pietro também percebeu a calvície e os cabelos penteados para o lado. De início, ele demonstrava seriedade, mas logo suas feições transformaram-se nas mais amigáveis possíveis. Délia e ele formavam um bonito casal.

Mas havia outro homem ao lado deles que despertou a atenção de Pietro - mais do que ele desejava que despertasse. Era um bonito rapaz, talvez fosse o filho dos dois, mas pelo que Giovani dera a entender mais cedo, ele deveria ser mais novo do que este que estava ao seu lado.

“Que bom que vocês vieram.” Délia abraçou um convidado por vez.

“Nós meio que fomos intimados” Pietro respondeu no exato momento em que ela o abraçava. Assim, Délia lhe deu uma suave beliscada nas costas que fez Pietro rir.

“Pietro, esse é meu marido, Vitor. Ele tem essa cara de bravo, mas é gente boa. Ele é policial. E esse é um amigo da família, Rodrigo. Rodrigo, estes são Pietro, Giovani, Bruna e Miguel.”

Devidamente apresentados, o grupo entrou para o jantar. Miguel sentou à mesa, inquieto, com Bruna ao seu lado e, logo após, Pietro, Rodrigo e Giovani. Délia e Vitor escolheram os lugares das pontas. Era um encontro íntimo, e a receptividade do casal ajudava a quebrar o gelo. Suas personalidades se mostravam receptivas e calorosas. O filho deles, Vinícius, apareceu brevemente e de pijamas, pois já havia jantado mais cedo e se encontrava pronto para dormir. Vinícius era uma cópia do pai e trazia consigo a mesma formalidade e seriedade. O menino ainda detinha um detalhe peculiar: uma pequena pinta preta perto dos lábios. Houve um estranho momento no qual ele não se sentiu à vontade para cumprimentar Pietro com as mãos, o que gerou seguidas admoestações por parte de Délia, mas que Pietro pediu para deixá-lo quieto, porque crianças eram assim mesmo.

“Esse garoto!” Délia pedia desculpas pelos modos do filho.

“Não tem problema, Délia. Nem eu gosto muito do meu irmão” Respondeu Giovani. Todos gargalharam. Miguel se ofereceu para ir pegar as bebidas. Bruna ao seu lado, fez um gesto de repreensão. Tem certeza?, ela dizia com os olhos, mas o rapaz fez questão de ser solícito.  

Délia acompanhou-o até a cozinha para organizar tudo. Enquanto isso, Pietro sentia a figura de Rodrigo ao seu lado, sentindo suas terminações nervosas estourarem apenas pela presença ao seu lado. Sem dúvida, era lindíssimo, havia elegância em seus modos e uma espontaneidade invejável. Pietro se recusava a acreditar que aqueles sentimentos estavam voltando para ele... Pensava que poderia escondê-los por algum tempo.

“Délia me falou que você vai trabalhar na livraria.” Ele tentou criar assunto.

“Sim. Eu sou mecânico, mas quero um emprego para logo.”

“Vai ficar por muito tempo?”

“Talvez sim, talvez não... Tudo depende de...”

O diálogo foi interrompido pela silhueta de Miguel, que veio trazendo os drinks e se encontrava ao lado de Pietro para dar sua taça. Ele foi entregando os copos com as bebidas de lugar em lugar até que, enfim, se sentou na sua cadeira correspondente. Délia lhe passou uma jarra cheia com água, ao qual ele derramou no seu copo até a metade.

“Rodrigo fez os drinks. Só ele é capaz de fazer um desses sem ficar muito doce.”

“Não fiquem com vergonha de me dizer se ficou ruim.” Ele pediu, rindo.

“Ficou bom, né Pê?” Bruna indagou.

“Ficou ótimo. Foi por isso que eles te convidaram?”

Rodrigo gargalhou.

“Ah, eu gosto de acreditar que as pessoas me convidam pela minha companhia. Mas se é só pelos drinks, também fico honrado. E você? Sabe consertar carros como eu sei fazer bebidas?”

“Modéstia à parte, ele sabe” Giovani deu a resposta.

“Não pensa em abrir uma oficina aqui no Vale?”

“Nós já temos, não é? A do seu Caetano. Seu pai.” Vitor observou.

Pietro pigarreou, desconfortável. Délia, percebendo o clima, cutucou o marido discretamente para que tivesse modos. Vitor fez menção arrependimento, notando que não deveria ter tocado naquele assunto. Em geral, Délia era mais perceptiva que o marido. Da mesma forma percebeu, por exemplo, o cuidado extra de Miguel com as bebidas e o fato de que só ele optou por tomar água.

“Está tudo bem, Miguel?” Bruna pensou ter visto as mãos dele em estado de tremor. Não pôde confirmar a suposição, pois o amigo ocultou-as para debaixo da mesa.

“Estou bem. Obrigado pela preocupação”.

Bruna assentiu, aliviada, mas sem tanta certeza.

“Como estão as coisas na capital?” Délia perguntou para Pietro.

“Pedra sobre pedra, lobo do lobo, uns comendo os outros e isso é tudo.”

“Que visão mais pessimista, Pietro.” Observou Rodrigo.

 “Que eu não te decepcione, Rodrigo, mas eu sou pessimista e, em grande parte, morar na cidade faz isso com você. Não dá pra confiar nem nos melhores amigos hoje em dia”.

Miguel endureceu a postura. Bruna repreendeu o marido sem se preocupar se alguém estava percebendo ou não. Pietro fez uma expressão de desentendido, como se nem a esposa pudesse lhe tirar a razão.

Bruna pigarreou: “Se formos viver nessa ideia, estaremos matando uns aos outros. Eu acredito que é possível relevar o erro de alguém se esse alguém errou por causa de motivos alheios ao seu querer.”

Pietro baixou o copo, sentindo a tontura do efeito da bebida.

“É, tem razão. Quer um drink, Miguel?”

Miguel fuzilou-o com os olhos.

“Não” Respondeu secamente.

“Desculpe” O amigo percebeu o exagero e seu tom era sincero a respeito do arrependimento e da grosseria. Para tentar amenizar a sua situação, Pietro voltou-se para Rodrigo, dizendo: “Essa sua bebida é um licor da verdade. Faz a gente virar um grosseirão.”

“Não é a verdade que nos torna arrogantes, Pietro, é a forma como a falamos.”

Pietro concordou. Um silêncio constrangedor se seguiu no jantar. E ele apenas começava. Délia, salvando a noite mais uma vez, pediu para que Pietro a ajudasse na cozinha com os pratos e as porções do menu principal. Ele concordou, percebendo que começava a passar dos limites.

“Esses pratos aqui, Pietro. Só usamos esse aparelho de jantar com as visitas. Não temos muitos amigos, sabe? O povo desse Vale não é lá muito legal com forasteiros.”

“Forasteiros? Vocês não nasceram aqui?”

“Na verdade, não. Viemos pra cá depois que Vinícius nasceu. Achamos que o interior ia fazer bem a ele, então procuramos uma casa aqui no Vale, porque conhecíamos Rodrigo e sabíamos que o lugar era bom. Por sorte encontramos essa casa. Não achou curioso nossas casas serem coladas?”

“É, bastante. O Giovani me disse que nunca foi aberta.”

“Sim. Não ficou nem um pouco curioso sobre qual a história dessas casas coladas? E só eu tenho a chave. De tanto que nem uso, esqueço que ela existe às vezes.”

Pietro ficou em silêncio por um instante.

“Desculpe se peguei pesado com o Miguel e quebrei o clima do jantar. Eu deveria saber que ele está se esforçando. É que... Bom, deixa pra lá. Talvez eu só queira alguém para culpar.”

“Tá tudo bem. Mas você deveria falar com ele se isso te incomoda. E se quiser desabafar comigo, sou uma boa ouvinte.”

“Está certo” Ele respirou aliviado.

Os dois ainda terminavam de preparar os pratos quando o celular de Délia tocou. Ela observou o visor e atendeu a ligação, sinalizando para que Pietro cuidasse do resto. Ouvia rumores da conversa ao telefone, algo como “sim, ele está aqui...”. De resto, concentrou-se na sua tarefa. Quando terminou de organizar os pratos, cutucou Délia, ainda concentrada na ligação, para perguntar onde ficavam as talheres. Ela foi ligeira até a gaveta e apontou para os tipos que iria usar, se afastando em seguida. Pietro tirou as talheres que precisava e observou uma velha chave preta no meio da prataria. Será que era a chave da porta do meio? Tomado pela curiosidade, Délia voltava com o celular já desligado e ele, apressado, levou a chave ao bolso. Parecia bastante com a fechadura, um molde antigo. Devia ser essa a chave do meio!

 “Pronto? Me dá aqui”

Délia e ele seguiram para a mesa. O cheiro estava ótimo. Mesmo distraído com o falatório geral, Pietro conseguia sentir o peso da chave em seu bolso.

x-x-x

Satisfeitos com a comida e a companhia, os convidados se preparavam para voltar às suas casas. Délia e Vitor cumprimentaram de novo, enfatizando que o jantar fora ótimo e que deveriam repetir mais vezes. Ao abraçar Miguel, Délia notou uma das mãos ao bolso, enquanto a outra, exposta, tentava disfarçar o tremor. A anfitriã fingiu que não viu, mas Miguel sabia que era pura cortesia.

 Os vizinhos seguiram para a casa ao lado. Rodrigo ia pegar um táxi até sua casa, a algumas quadras dali. Giovani caminhou para o banho antes de dormir, e Bruna e Pietro seguiram para o quarto. Miguel sentou no sofá, dizendo que ia ver um pouco de tevê para tentar pegar no sono.

“Tem certeza, Miguel?”

“Tenho, Bruna. É só falta de sono mesmo.”

“Se precisar de algo, chama.” Pediu Pietro.

Miguel olhou-o com gratidão e Pietro lhe direcionou um sorriso sincero. Assim, Bruna e Pietro se recolheram para dormir. Pelo menos, esse era o plano de Pietro.

“Amor? Você sabe que o vinho me deixou com saudade de você?”

“O quê? Ah” Pietro estava distraído. Seus pensamentos rondavam Rodrigo. Ao mesmo tempo em que queriam escapar dele. Sabia que era impróprio para sua condição de casado com uma mulher.

“Não me responda com um mero ah. Assim fico magoada.”

“Estou com sono, só isso. Amanhã?”

“Amanhã... É sempre a mesma desculpa. Não sei se você sabe, mas tem dois meses que não transamos. O que está acontecendo, querido? Sou eu?”

“Não, imagine. Você é uma mulher muito atraente com quem eu casei. Só estou cansado.”

“Uma mulher atraente com quem você é casado. Isso não é coisa que se diga. Parece uma obrigação. Você me acha feia e não quer dizer, é isso?”

“Você é uma mulher linda. Eu é que...” Eu é que não sinto atração por mulheres e me casei com você porque meu pai ameaçou me espancar até a morte se eu não pedisse minha amiga de infância em casamento. “Eu é que... Estou com sono.”

“Sono.” Bruna bufou. “Éramos melhores como amigos, sabia?”

Pietro suspirou.

“Talvez seja verdade. Nenhum de nós está feliz.”

“Ninguém, Pietro. Ninguém.”

Amuada, Bruna virou para o lado oposto ao do marido e fechou os olhos. Pietro, fez o mesmo, enquanto usava seu segundo travesseiro para sufocar as pequenas lágrimas que brotavam em seu rosto. Já acostumado a se reprimir temendo a repulsa completa de Caetano, até para chorar exigia de si um enorme esforço. Não pensou mais na chave: apenas queria desmaiar de sono para tirar os desejos do pensamento.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo capítulo, espero que tenham gostado.



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