Mais que o Tempo escrita por Le petit prince egoiste


Capítulo 1
Um


Notas iniciais do capítulo

I want to hide the truth
I want to shelter you
But with the beast inside
There’s nowhere we can hide



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Pietro vislumbrou as primeiras luzes do dia. Enquanto o carro seguia o seu caminho, ele voltava o olhar para a janela fechada, pela qual a paisagem ia se locomovendo com parcimônia. Ao seu lado a esposa, Bruna, que vez ou outra lhe dirigia olhares certeiros. Ela pensava entendê-lo com ninguém, afinal, é isso o que se espera de alguém com quem se dividiu os anos. Porém, para Pietro, os anos foram assentando em ambos uma espécie de máscara que dificultava o reconhecimento de seus sentimentos um pelo outro.

Miguel vinha no banco de trás, o olhar vago e o corpo endurecido pelo cansaço da viagem. Seu olhar em direção ao amigo Pietro demonstrava emoções conflituosas, como se quisesse dizer algo, mas não soubesse o momento. As imagens do Vale do Café em pleno 2018 rendiam sensações diversas; para Pietro, aquele lugar despertava antigas rusgas, mas não havia outra saída. Assim como não existia outra escolha além de trazer Miguel junto ao casal. Se perto deles já conseguia aprontar das suas, sozinho estaria completamente perdido.

“Amor, tem certeza que eles estarão em casa?”

“Sim, sim” Respondeu ele para a esposa.

Bruna tentou arrumar a bagunça do porta-luvas.

“Espero que dona Nicole ainda saiba fazer aqueles bolos. Oh. Desculpe.”

Ninguém prestou atenção no que Miguel disse. Este foi um dos poucos diálogos que os três trocaram a viagem inteira. Pietro apertou as mãos no volante e respirou fundo. Suas emoções eram tão discretas que teve certeza que nenhum dos dois passageiros reparara em seu trejeito nervoso. Seu passado encontrava-se cada vez mais próximo. O rapaz tampouco queria lidar com ele.

x-x-x

A casa ainda era a mesma. Debulhada de lembranças, uma fachada calma e familiar que não deveria mais inquietar o filho pródigo. Mas inquietava. Quando o carro parou naquele lugar, Pietro demorou a descer. Bruna, no entanto, o fez voltar à tona, tentando fazer um gracejo com o seu nervosismo e os mecanismos do carro. Isso por que Pietro era mecânico - mas Bruna não se interessava pelos negócios, tampouco entendia de veículos. Pietro, então, desceu, fazendo força demais ao bater a porta. Giovani, o irmão mais velho, veio recebê-los na entrada, numa hospitalidade aconchegante.

“Pietro! Nossa, pensei que não chegariam nunca!”

Bruna iniciou o diálogo: “É que o carro parou no meio da estrada. Sorte que temos um mecânico na família.” E relanceou um sorriso para o marido, que ainda trazia o olhar fixo para a casa. Ela disfarçou sua falta de resposta seguindo-o no seu campo de visão.

“Tem gente?” Perguntou Pietro num sussurro para o irmão. Falava a respeito da casa ao lado, que dava sinais de vida. Em verdade, as duas casas eram coladas uma na outra, mas até certo tempo só a de sua família era ocupada.

“Ah, tem sim. Um casal gente boa e mais o filho. Depois te apresento. Vamos entrando. Está um sol de lascar. Vamos, vamos. Deixa que eu pego as malas.” Disse Giovani, fazendo um gesto enfático para que entrassem.

Quem observasse a cena sequer imaginaria que havia outro membro da família, até aquele instante nem citado. Mas lá estava ele, com a roupa do serviço, pronto para trabalhar como se nada estivesse acontecendo.

“Giovani, estou indo trabalhar. Não se esquece de falar com o Bosco, se ele vier aqui. Diz que o carro já está pronto. Qualquer coisa eu estou lá na oficina. Mas só me procura se for urgente.”

Giovani, exasperado, colocou a mala na sala de estar. Observou seu pai, atônito.

“Não vai falar com o Pietro? Bruna e Miguel também vieram.”

Caetano olhou para os três “forasteiros”, forçado pela indagação do filho. Pietro não desviou seus olhos do pai. Miguel tentou cumprimentá-lo, mas Caetano não retribuiu o gesto.

“Humor difícil, hein seu Caetano.” Ainda insistiu ele, tentando quebrar o gelo.

“Tenho mais o que fazer. Garantir o sustento dessa família, por exemplo. Agora são mais três bocas para alimentar.” Ele vociferou e saiu, esbarrando em Pietro provavelmente de propósito.

Giovani suspirou, observando a reação do irmão, indecifrável como de costume.

“Só piora ao longo dos anos. Quem sabe não possam revolver isso?”

“Fale com ele, não comigo.” Pietro resmungou.

Giovani sacudiu a cabeça, conformado. As antigas rusgas de família apenas começavam a aparecer.

x-x-x

Caetano não apareceu para o almoço. Não era incomum que o fizesse, pois às vezes a oficina se encontrava lotada de trabalho. Mas, para aquele dia, esta era uma desculpa para não cruzar com Pietro. Terminada a refeição, Bruna alegou estar cansada e perguntou se o marido não ia acompanhá-la até o quarto. Pietro recusou o convite: embora cansado, queria aproveitar para mostrar algumas planilhas para o irmão. Miguel se recolheu ao quarto de hóspedes, engolindo em seco. Ele bem sabia que o assunto era delicado, e sua presença pioraria as coisas.

Pietro e Giovani sentaram-se na sala. Giovani, com sua pele branca, cabelos volumosos e barba farta, notou as sutis mudanças na expressão do irmão. Um rosto abatido e o crescimento do bigode.

  “Tem certeza de que quer falar disso logo agora?”

“Foi por isso que eu voltei, não foi? Quanto mais cedo eu puder resolver essa situação, mais cedo vou embora daqui. E é melhor para papai que eu esteja longe. Olha só, o que você acha?”

“O que eu acho?” Giovani pegou o notebook para si, analisando a planilha em vermelho. “Bem, que estrago dos grandes, meu irmão.”

“Eu sei. Você pode me dizer se vai demorar muito?”

“Pensando nesse prejuízo, acho que sim. Todo o capital foi embora. Eu diria que uns quatro ou cinco anos até recuperar. Parece bom?” Perguntou Giovani, devolvendo o eletrônico para Pietro.

“É péssimo, irmão. Isso significa que vou ter de ficar aqui à custa do papai até nos recuperarmos.”

“Você pode trabalhar na oficina com ele.”

“Ah, não se faça de bobo. Você sabe que a convivência é impossível.”

“Um dia, vocês dois terão de resolver essa briga. Não dá mais pra aguentar.”

Pietro sacudiu a cabeça, cansado daquela conversa. Levantou do sofá para abrir as janelas da sala. O clima nas cidades do interior era outro: não havia acumulação de prédios como na capital, portanto conseguia concentrar seus pensamentos sem ter de lidar com barulhos de carros a mil. A rua encontrava-se quieta: umas poucas pessoas caminhavam, mas o filho do mecânico não era um evento interessante para ser observado. Pietro logo se entediou e fez menção de voltar ao sofá, mas deparou-se com uma cortina ainda fechada em plena sala. Ao abri-la, porém, viu que dava para uma porta trancada.

“O que é isso?”

Giovani ergueu a cabeça.

“Ah. É a porta que dá pra outra casa. Essas casas são coladas, você sabe. Mas nós nunca abrimos. A vizinha também. Que engraçado, né? Acho que era meio comum no passado.”

“E você tem a chave?”

“Pra quê você quer? Ora!”

Pietro passou as mãos pela fechadura, num gesto leve e investigativo.

“Você disse a vizinha?”

“Sim. Délia, o marido, Vitor e o filho, Vinícius. Eu te levaria até eles, mas o Vini deve estar na escola e os pais estão trabalhando. Mas nós entraríamos pela porta da frente, é claro. Seria deselegante você conhecer os vizinhos pela porta do meio.”

“Com certeza. Gio, eu preciso fazer alguma coisa se for morar aqui por muito tempo. Papai não me quer na sua oficina, ainda mais depois de tudo que aconteceu. Será que não tem nenhuma vaga de emprego por aqui?”

Giovani refletiu por um tempo.

“Eu posso falar com a Délia. Que tal irmos lá agora? Soube que queriam um ajudante.”

“Agora mesmo. Onde essa Délia trabalha?”

“Ela é bibliotecária.”

x-x-x

Bastaram poucos minutos de carro para que os irmãos chegassem à livraria do Vale do Café. Giovani veio resmungando que o irmão “não largava os hábitos da cidade”, pois preferia ter vindo a pé. Pietro ensaiou um sorriso: tinha saudade daquele ar rústico do irmão.

“Esquecemos de avisar a Bruna, hein? Quando ela acordar, vai dar por nossa falta.”

“Não era necessário.”

“Às vezes dá pra esquecer que vocês são casados.”

Pietro deu de ombros: “Relacionamento aberto”.

Giovani sussurrou algum é cada coisa que inventam, mas não se atentaram na conversa, pois Pietro saíra do carro. Ele foi caminhando na frente enquanto o outro terminava de estacionar. A livraria era um lugar amigável e arejado e, se desse sorte, iria gostar de trabalhar ali. Os livros se encontravam bem arrumados na estantes altas, demarcados por seção, mas Pietro não sentiu uma espécie de atulhamento que sempre sentia nesse tipo de lugar.

“Oh, oi Délia. Tudo bom? Incomodo?” O cortês irmão se dirigiu à moça no balcão, uma bela mulher de cabelos curtos e negros, olhos miúdos e brilhantes, sorriso de quem foi pega aprontando em flagrante.

 “Incomoda nada. Somos vizinhos e mal nos vemos, né? Como você está? E esse rapaz?” Délia se voltou para Pietro, curiosa.

“Estamos bem. Esse é meu irmão que acabou de chegar, o Pietro. Acho que vocês ainda vão se cruzar muito por aqui. Ele veio hoje com a esposa e o... Hum, amigo. Vão ficar um tempo lá em casa.”

“Ah, que legal! O Vale há tempos que não recebe pessoas novas. Oi, meu nome é Délia” Ela apresentou-se e Pietro sentiu uma energia boa vindo de sua direção. Apresentados, Giovani expôs o motivo da visita para a vizinha:

“Por acaso não tem uma vaga de assistente nessa sua livraria?”

“É, eu queria mesmo uma ajuda... Porque, tem alguém pra mim? Não me diga que...”.

Giovani fez um gesto afetado na direção do irmão.

“Pietro!”

“Bom, Pietro, quais são suas qualificações?” Brincou Délia.

“Eu sou só um mecânico.”

“Ah, deve ser! Esse aqui é rato de livraria...”

“Já é um ponto positivo, viu Pietro. Será que sabe da mecânica dos livros também?”

“Se me der o emprego, eu digo se sei ou não...” Ele resolveu entrar na brincadeira.

“Ok, colega. Gostei da ousadia. Contratado. Em estado de teste, ok?”

“Obrigado, Délia!” Pietro se permitiu sorrir de gratidão. “Quando começo?”

“Amanhã. Mas quero que vá jantar hoje à noite lá em casa. Você não tem escapatória. Se recusar, abro aquela porta do meio e você vai ver só.”

“Parece que todo mundo tem essa chave do meio, menos eu.”

“Ora, forasteiro. Chegou agora e já quer sentar na janelinha? Vá, à noite conversamos. Mas não abuse do vinho no jantar. Soube que sua chefe é uma carrasca!” Délia riu, e Pietro soube de imediato que seria fácil os dois serem amigos. 


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Notas finais do capítulo

Não deixem de dizer o que acharam e o que esperam dessa história :) até o próximo capítulo!



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