Mártires do Poder escrita por Luiza Socha


Capítulo 2
Capítulo dois




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            O despertador biológico de Dasha funcionava perfeitamente; todos os dias, às oito da manhã, a adolescente abria os olhos. Naquela terça-feira chuvosa não foi diferente. Saiu da cama às oito e dois da manhã e o primeiro pensamento ecoado na cabeça da ruiva eram os pais: já haviam eles voltado? Nos últimos sete dias fora assim; as preocupações a deixavam cada dia mais ansiosa. A possibilidade de que ambos os progenitores nunca mais voltassem era presente em todas as missões de exploração, e ela havia sido treinada para a situação – da qual ela torcia para nunca precisar enfrentar. O sufoco interno de assumir responsabilidade pela sede em todas as vezes que os líderes saíam para explorar a corroía; o espírito de liderança da jovem era uma característica quase que genética, mas a sensação de estar sem os pais era árdua.

Após atravessar o extenso corredor de dormitórios na ponta dos pés, suspirou aliviada ao perceber que a porta do quarto dos pais fora fechada, pois na sede, portas fechadas sinalizam quartos ocupados. A sensação de alívio e felicidade percorreu todo o corpo de Dasha, resultando em um pequeno sorriso espontâneo e um relaxamento muscular que era impossível em momentos de ansiedade. Ao descer a escadaria e perambular pelo andar de baixo, a cena de Joker hibernando em um dos sofás da sala de estar não surpreendeu: o homem normalmente não aguentava longas viagens acordado, e agarrava-se a primeira oportunidade de adormecer. O cansaço visível nas feições do homem e a posição estranha em que adormecera provocaram uma risada em Dasha, que em seguida dirigiu-se até a cozinha.

— Deve ter sido difícil bancar a chefona durante esses sete dias com aqueles dois aqui – Anton, sentado sobre uma bancada e segurando uma xícara de café, surpreende a jovem. – Oi, Dasha.

Os cabelos úmidos do homem, como quem acabou de sair de um banho, configuravam uma aparência mais madura; sem o tradicional moicano punk que marcava seu estilo todos os dias, as marcas de expressão e pequenas rugas se sobressaíam, caracterizando-o como um homem adulto, ultrapassando os trinta anos.

— Digamos que foi uma aventura. Como sempre. – A jovem riu, apanhando uma xícara em um dos compartimentos e separando os ingredientes para preparar um café para si. – Como foi a viagem?

— Pelo amor de Deus, eu não aguento mais ouvir dados, números e analisar gráficos. Essas coisas cansam a minha cabeça. Sinceramente, eu nem guardei muitas das informações dessa vez, sabe que eu não sou a melhor pessoa para te contar. – Diz Anton, e saboreia um gole do café em sua xícara. – Mais tarde eles vão informar vocês sobre isso, para a sua infelicidade.

— Pelo seu descontentamento imagino que não tenham se envolvido em nenhum combate ou situações perigosas – A ruiva despeja o leite frio em sua xícara preta, e em seguida adiciona duas colheres de café.

— É. Hugo diz que isso é bom, que devemos evitar chamar atenção. Mas a vida fica meio chata quando treinamos todos os dias pra situações de combate e elas quase nunca acontecem.

— Eu sei bem melhor que você como é essa sensação. – A ruiva diz, sentando-se em uma cadeira à ponta da grande mesa central.

Dasha nasceu naquela mesma sede, em um parto normal, há dezoito anos e alguns meses atrás daquele momento. Desde criança passou por testes e treinamentos para situações de emergência, como a necessidade de evacuar do local ou o que dizer se fosse sequestrada pelo governo, como contatar seus pais e onde se esconder. Já os treinamentos para tornar-se um soldado começaram quando a jovem tinha doze anos: artes marciais, atividades aeróbicas, manuseamento de algumas armas, escaladas e primeiro socorros; além de, com quinze anos, iniciar estudos na área da computação. A disciplina era, ironicamente, um valor muito prezado na quadrilha de rebeldes; por esse motivo, a distância emocional dos outros participantes e dos próprios pais eram necessárias. Os atos de carinho entre os membros da quadrilha – que só tinham uns aos outros – eram demonstrados normalmente através de respeito e amparo.

A primeira vez que a jovem saiu da sede foi aos catorze anos de idade. Pedira isso de presente de aniversário. Após muitas discussões entre os pais – Hugo e Anya – concordaram em atender o pedido da filha; verificaram por dias os arredores para garantir total segurança quando saíssem. Era verão, as árvores estavam em verde vívido assim como a grama e os arbustos; o céu, azul e iluminado pelo sol do meio dia com a presença de poucas nuvens. Fora a única vez que membros da quadrilha deixaram a sede em um horário diurno e a pé. Enquanto davam os primeiros passos para fora do enorme bunker, o coração da mãe parecia apertar e bater aceleradamente; o nervosismo a fazia segurar a mão da filha com força. O pai, extremamente atento, carregava uma arma e equipara a filha com um colete – excessivamente largo – a prova de balas. A tensão de viver em modo alerta consumira para sempre o coração de todos os membros daquela quadrilha; agarravam-se às poucas coisas preciosas restantes em suas vidas e as protegiam com todas as forças. Naquela realidade, ter a sorte de conseguir criar uma criança saudável fisicamente e mentalmente era como ganhar em uma loteria.

De início, os olhos de Dasha arderam com tamanha luminosidade natural. O Sol, as plantas, a terra; tudo era mais vívido do que em simulações ou imagens. A criança sentiu vontade de sair correndo, deitar na grama, escalar as árvores, procurar por animais e insetos, mas conhecia seus limites e respeitava as ordens dos pais. Admirou de perto as texturas, cores e cheiros; colheu algumas plantas e flores e guardou em seus pequenos bolsos. O som dos pássaros surpreendeu a garota, e foi consumida pela vontade de leva-los para casa e escutar aquele canto todos os dias. Apanhou minhocas, joaninhas, borboletas e até formigas. Aproveitou todos os momentos e admirava-se com coisas simples – até pequenas rochas – , conversava com os pais empolgada, fazendo milhares de perguntas a cada descoberta. O entusiasmo de Dasha diante coisas tão simples, que para muitas crianças seria normal, ou entediante, emocionou Anya. Desejava mostrar o mundo à filha, leva-la à praia, ao zoológico, ao deserto, até às geleiras do Polo Norte. Desejava que a filha tivesse uma infância mais humana, que pudesse desenhar seu próprio futuro e conhecer o mundo; sabia que aquilo não era possível, e por isso, chorava.

Ao saber da gravidez, países aliados à quadrilha ofereceram-se para transportar a filha do casal para fora do país, para que tivesse uma vida normal; Hugo e Anya ponderaram por todos os nove meses de gestação sobre a oferta, e não conseguiram criar forças suficiente para desvincularem-se da própria filha. Em uma realidade como aquela, o apego emocional é uma maldição, afinal o risco de perder tudo está sempre à espreita. Naquele momento, na floresta, fora da sede, enquanto Dasha sorria sem parar brincando com uma joaninha, ambos os progenitores repensaram aquela decisão, refletiram sobre o egoísmo com que trataram aquilo, e o peso consumiu o coração com culpa. Era tarde demais para voltar atrás, aquela seria a vida da garota pelos próximos anos, e provavelmente para sempre.

Joker adentra a cozinha, interrompendo a conversa entre Dasha e Anton, que o fitam curiosamente; embora aparentasse dormir como uma pedra, o homem era acordado com facilidade por sons, mesmo que baixos. O loiro resmunga, puxa uma cadeira e senta-se; a expressão em seu rosto denunciava cansaço e insatisfação.

— Dasha, querida, já que me acordou com suas risadas, por que não me compensa com uma xícara café quente? – O homem sorri ironicamente, de braços cruzados e olhos semicerrados.

— Normalmente eu diria que não, mas a sua cara está tão horrível que me deixou com pena. A baba seca no canto da boca ajudou também. – Dasha responde com uma ironia amigável e recebe uma careta como resposta. Anton dá gargalhadas exageradas e infantis. Em um instante, a ruiva levanta-se e apanha uma xícara para Joker.

Após preparar um café de bom grado para o companheiro, Dasha sentou-se a mesa e os três conversaram por alguns minutos. Joker explicou alguns projetos abordados e progressos das últimas excursões; como sua função na quadrilha era puramente analítica e tecnológica, possuía maior conhecimento e interesse nos relatórios e missões. A jovem ruiva escutou tudo atenciosamente, questionando os mínimos detalhes e interessando-se pelas teorias criadas para explicar o aumento da taxa de natalidade.

—  Teorias não bastam mais – Joker suspira e suas mãos percorrem o cabelo – Provavelmente teremos que fazer análises mais profundas e obter mais informações, o que significa mais trabalho, especialmente pra mim.

As olheiras profundas do loiro denunciavam fadiga; os olhos avermelhados eram fruto do grande tempo gasto encarando telas de computadores, celulares ou tablets. Os treinos físicos de Joker eram menos frequentes e intensos do que os da maioria do grupo: enquanto membros se queixavam de dores e lesões musculares, o maior problema do homem eram enxaquecas e insônia. A rotina de um dos líderes hackers ­– atuava em conjunto com Balalaika – era essa. Mesmo não possuindo grande utilidade em combates, a função era essencial: violar sinais de câmeras, telefones de funcionários do alto escalão do governo, dados dos sistemas dos uchrezhdeniye e atuar em missões especiais onde o auxílio tecnológico era necessário. A ocupação de hacker era complicada, cansativa e necessitada de muita inteligência.

— Eu posso ajudar. Já tenho três anos de aulas de computação, finalizei Sistemas Operacionais II semana passada. – Propôs Dasha com sinceridade e um toque de orgulho de si mesma, fitando o estado do companheiro com pena. O loiro riu baixinho:

— O seu progresso é admirável, Dasha, mas infelizmente invadir sistemas operacionais governamentais exige um pouco mais de experiência. Todavia admito que estou ansioso pelo dia que irei me aposentar e você ocupará meu cargo – Joker beberica o café e faz uma careta: a falta de açúcar na bebida não é de seu agrado. – Antes você do que Koda ou Dimitri.

— Não desmereça os meninos assim. Dimitri tem uma facilidade em manusear facas que me impressiona. Parece comigo quando era jovem, vai ser um grande combatente no futuro. – Anton intromete-se na conversa, defendendo o aluno.

— Dizer que se parece com você não é um grande elogio. Esperamos que ele não se torne uma mula como você é hoje em dia. – Joker esboça um sorriso maligno, encarando o companheiro em busca de uma resposta para a provocação.

— Vá se foder, nerd. Enquanto você fica brincando com computadores eu degolo o governo desse país inteiro, um por um, até chegar ao presidente. No final vai ser eu quem vai trazer a cabeça de Alexei Ivanov pra essa sede. – Anton retruca, e seu rosto adquire uma expressão sombria e maligna quase teatral. O semblante de Joker, que pousa a xícara na mesa com violência, fazendo algumas gotas de café voarem, torna-se lúgubre e sério. Os dois homens se encaram mortalmente por alguns longos segundos, cerrando os punhos e contorcendo os lábios, até que Anton levanta-se com rapidez e bate as duas mãos na mesa:

— HÁ! Piscou! – O adulto comemora a vitória com a animação de uma criança.

— Merda. – Joker responde e cede às risadas ao observar a reação do parceiro, que comemorava o grande êxito com palmas e gestos infantis.

Ao final da cena, os três rebeldes presentes na cozinha dão gargalhadas do que não passou de uma encenação; todos os membros tinham a consciência da importância e a incrível singularidade de cada um na quadrilha, e do jeito que cada sujeito funcionava como uma peça para completar um amplo quebra cabeça, ou formar um pequeno exército. A gratidão em ter companheiros em um cenário de guerra que pode desmoronar acima de suas cabeças a qualquer momento era presente no fundo da alma de cada um deles, mesmo que não expressassem por palavras de amor ou carinhos físicos. Por maior que seja a intrepidez que habita o espírito dos revolucionários, ficar sozinho em uma realidade sem saídas como aquela era de aterrorizar qualquer coração valente. Ser torturado ou capturado pelo governo e enviado para os campos de trabalho para viver uma vida sem propósito, sem valores e escrava é uma ideia pavorosa para aqueles que cresceram como lobos, e não ovelhas.

 


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