Mártires do Poder escrita por Luiza Socha


Capítulo 3
Capítulo três




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        A volta dos líderes da expedição na cidade de Kursk deixou a sede mais viva e movimentada; embora tivessem passado os últimos sete dias trabalhando, não havia tempo para folga quando a situação era especial como a descoberta de novas informações e comportamentos estranhos por parte do governo. Na manhã seguinte a chegada, os membros já perambulavam pela sede em busca de elaborar novos planos e missões que seriam, em breve, colocadas em prática.

         Dimitri e Nikolai eram os únicos membros da quadrilha que, às dez e quarenta da manhã, ainda dormiam em suas camas. O grupo estabelecera regras claras em relação a horários de repouso, mas ambos os jovens, sem suspeitar do retorno dos líderes, desrespeitaram-nas. A agitação na sede era tamanha que os líderes não fizeram caso sobre a situação, mas Dasha irritou-se com a falta de responsabilidade de ambos; entrou no quarto do irmão, Dimitri, primeiramente:

         – Dimitri. Eles estão aqui. – A ruiva apertou o braço do irmão em uma tentativa falha de acorda-lo com calma, mas o irmão continuou a roncar intensamente, boquiaberto. Dasha elevou o tom de voz e repetiu as palavras, mas novamente fracassou. Com a paciência esgotada, apertou o nariz do irmão, interrompendo a passagem de ar pelas narinas; alguns segundos depois, Dimitri se engasgou e acordou assustado.

         – Caralho Dasha, está tentando me matar? – O garoto sentou-se rapidamente na cama, encarando a irmã perplexo, de olhos arregalados.

         Era comum que Dimitri e Dasha fossem confundidos com gêmeos: os cabelos avermelhados eram do exato mesmo tom, o nariz sinuoso e forte era presente em ambos, assim como a pele alva como a neve. O garoto, porém, herdara íris verdes da mãe, enquanto a garota herdara os olhos castanhos escuros – quase pretos – do pai. Apesar das semelhanças, Dimitri era onze meses mais velho que a irmã.

         – Eles chegaram. E você fede a vodca. Tome um banho antes de descer. – A garota é breve e seca em suas palavras. Em seguida, levanta-se, saindo do quarto e fechando a porta atrás de si.

         Dimitri alegrou-se com a notícia, porém uma pontada de preocupação e medo ecoou em seus pensamentos: imaginava o sermão que iria receber se o pai descobrisse o que tinha feito na tarde passada e não se lembrava de ter guardado as garrafas e lavado os copos; o garoto esfrega o rosto com força, tentando recordar-se dos últimos momentos antes de adormecer, mas fracassa. Dimitri suspira fundo e caminha até o banheiro, cambaleando; encara sua própria face no espelho e sente-se atordoado, como se não conseguisse acompanhar a velocidade de rotação da Terra e tudo girasse rápido demais diante de si. A têmpora do garoto formigava e desferia pequenas pontadas contra seu sistema nervoso. Parecia putrefata a figura no espelho: os fios de cabelo cacheados dispunham bagunçados e sujos, e o moletom encontrava-se úmido de álcool e suor, provocando um cheiro acentuado. Dimitri não demorou a se despir e entrar debaixo do chuveiro, banhando-se com água morna e lutando contra a sensação de pesar.

                                                                                ● ◎ ● ◎ ● ◎ ●

        Ao sair do quarto do irmão, Dasha dá alguns poucos passos em direção ao próximo quarto. Ao abrir a porta, a garota é surpreendida ao ver o colega acordado, em frente ao espelho do banheiro, escovando os dentes. Ao contrário de Dimitri, o jovem no cômodo não fedia a bebida, mesmo tendo acompanhado o amigo ao embriagarem-se. As costas atléticas do garoto – naquele momento despidas – eram marcadas por algumas cicatrizes provenientes de diversas experiências de vida, em grande parte misteriosas para o restante da quadrilha; as pernas estavam cobertas por uma calça larga e cinza de moletom.

       – Nikolai. Que bom que já acordou. Eles chegaram. – A ruiva adentra o pequeno quarto e senta-se na cama de solteiro, notando que já fora arrumada; os lençóis azul marinho estavam perfeitamente dispostos pelo colchão, sem dobras.

         Nikolai cospe na pia, guarda a escova de dentes em um pequeno copo transparente e vira-se, fitando com uma expressão neutra por alguns segundos a garota sentada em sua cama.

         – Eu os ouvi chegar ontem. Seus pais entraram no seu quarto, você não percebeu? – O garoto indaga, caminhando até um pequeno armário de madeira vermelho disposto frente à cama. Nikolai abre-o e procura por uma peça de roupa, abrindo e fechando gavetas.

         – Ninguém entrou no meu quarto ontem. – Dasha recusa a acreditar nas palavras do moreno, que solta uma risada nasalada em resposta.

         – Seu sono é realmente pesado, então.

         A percepção de Nikolai era incrível: todos os sentidos eram altamente aguçados, superiores do que os da maioria das pessoas ordinárias. Mesmo com paredes e tetos feitos de materiais extremamente espessos abaixo do solo, o garoto escutara o ruído do motor das motocicletas e o som dos pneus destas amassando folhas e gravetos antes mesmo do líderes adentrarem a sede. Ouvira todas as conversas, sussurros e passos da madrugada anterior: percebera que haviam pessoas conversando na sala, que alguns pararam na cozinha e utilizaram o micro-ondas antes de irem aos quartos e que um casal de pessoas abrira a porta do quarto de Dasha.

        A ruiva abre a boca para retrucar a fala do garoto em teimosia, mas recorda-se da capacidade perceptiva de Nikolai, e de quantas vezes ela perdeu discussões sobre isso ( por exemplo, quando discutiram se os tiros no campo de treinamento eram de uma AK-12 ou AK-74 ). A ruiva suspira e não o responde, levantando-se da cama.

       – Trouxeram novidades da última expedição, acho que em breve teremos novas missões. – Dasha relata, caminhando até a porta do quarto e abrindo-a. O garoto fita o nada e aperta os lábios um contra o outro ansiosamente, sem responder a ruiva. Uma pontada atinge o fundo do peito de Nikolai ao lembrar da fratura em sua perna esquerda que tornava os passos do garoto difíceis; não estava recuperado, embora simulasse que sim. Dasha lança um olhar para as pernas cobertas do garoto: notara há alguns dias que não estava caminhando normalmente ( Nikolai disfarçava harmoniosamente, porém mancava quando achava que ninguém estava observando-o ) e percebeu o receio na expressão de Nikolai ao mencionar a possibilidade de novas missões. A ruiva cogitou oferecer ajuda, mas, conhecendo o garoto, projetou mentalmente a resposta mais provável: "O que você quer dizer com ajuda?" ele diria com uma expressão confusa, como se nada estivesse errado, e nada que Dasha dissesse iria convencê-lo a admitir, muito menos a aceitar amparo. O silêncio receoso pairou no quarto por alguns segundos, até que a garota atravessou a porta para fora do quarto, fechando-a atrás de si.

                                                          ● ◎ ● ◎ ● ◎ ●

          Quando Hugo abre os olhos pela manhã, depara-se com a figura de Anya em frente ao espelho, trançando os cabelos ruivos, iluminada por um abajur de luz baixa. A mulher vestia uma blusa preta de gola alta, com longas mangas e feita de lã; a calça de couro era cinza escura, e os sapatos eram botas avermelhadas de cano curto. A silhueta da adulta era alta, esguia e dotada com musculatura modesta; a idade lhe trouxera algumas pequenas marcas de expressões faciais, mas, ainda assim, aparentava ser mais jovem do que era. Hugo admirou-a por alguns segundos, até que os olhares de ambos encontraram-se no espelho, e a mulher esboçou um sorriso suave.

         – Desliguei o seu despertador. Você deveria dormir mais hoje. – Anya diz enquanto caminha até a cama e senta-se do lado do marido, tocando sua mão delicadamente. O olhar da mulher era sereno e seu semblante, doce. Hugo sorri involuntariamente, acariciando a bochecha da mulher com dedos ásperos.

         – O dever exige-me acordado. E eu sinto quando você sai da cama. – O homem afirma, através de uma voz rouca e grave. O rosto de Hugo era marcado por profundas olheiras e feições árduas, as marcas da idade e do estresse tornavam-se a cada ano mais evidentes: o cargo mais alto da quadrilha exigia deveras do homem, tanto fisicamente quanto mentalmente. Afadigado, sentou-se na cama e esfregou os olhos.

         – Você vai acabar morrendo cedo se viver à mercê do dever todos os dias. – Anya suspira desapontada e levanta-se, dando passagem para o marido.

         – É uma condição para fazer o que nós fazemos. Sortudos vão ser os que chegarem a terceira idade. – Hugo articula friamente, caminhando até o guarda roupas e abrindo-o. A mulher o acompanha e envolve-o em um abraço por trás, com as mãos no peitoral do homem e a testa apoiada em sua nuca. Gestos de carinho vindos de Anya eram uma fraqueza iminente de Hugo, e ela sabia disso: o homem, tão maciço e rígido, sentia-se amolecer nos delicados braços da esposa.

         – Algum dia teremos paz. Ainda seremos uma família ideal, querido. Você prometeu. – As palavras sussurradas por Anya pareciam chantagear os sentidos de Hugo, como se adentrassem sua mente e espetassem milhões de vezes seu coração. As promessas que o homem fizera para sua mulher quando jovem assombravam-no até os dias atuais; manter uma família segura e feliz na realidade em que vivia era uma penosa missão. Ao mesmo tempo que Hugo sentia-se grato por possuir filhos e uma esposa que lhe dava razão para lutar, a pressão em mantê-los seguros e, algum dia, dar-lhes uma vida melhor, era esmagadora.

          Hugo e Anya nunca tiveram um casamento – ou um relacionamento – ordinário. Conheceram-se na casa dos dezessete, quando Anya fora acolhida pelo pai de Hugo para juntar-se a quadrilha. Antes disso, a garota vivera cinco anos nas ruas desertas da Rússia, após a grande reforma, esquivando-se do governo na companhia de seu irmão mais novo. Depois de, por um acidente, seu irmão ter sido capturado pelo governo, Anya seguiu sozinha por alguns meses até ser localizada pela quadrilha em uma das expedições em cidades vizinhas de Kursk; quando localizada pela quadrilha, Anya fugiu e se escondeu por algumas horas, assumindo que estava sendo perseguida por unidades do governo, mas foi capturada após ter sido encurralada em um beco. Como procedimento padrão realizado com pessoas resgatadas, a mulher seria enviada para fora do país em segurança, mas a mesma insistiu em ficar e se tornar uma rebelde, a lutar em nome do seu irmão e de toda a sua família. O espírito de bondade e a vontade de justiça da mulher eram vigorosos, assim como a dedicação e paciência para o aprendizado. Depois de muitas discussões entre os líderes, o veredito foi dado pelo pai de Hugo, Vladimir, que permitiu que a jovem tivesse a chance de tornar-se uma guerrilheira. Anya passou a viver entre os rebeldes e treinar arduamente para ser um membro oficial. Aos dezoito anos, apaixonou-se por Hugo, e ambos iniciaram um namoro secreto; Vladimir era um dos fundadores da quadrilha, um homem extremamente sério, porém com um coração bondoso. Faleceu quando Hugo tinha vinte e dois anos, herdando a liderança do grupo ao filho, que, no mesmo ano, propôs Anya em casamento. O amor do casal era o mais intenso que poderia existir: não era definido por presentes ou cartas românticas, mas sim pela confiança e companheirismo que partilhavam; fortalecer e acolher o outro em meio à guerra fora o maior gesto de respeito e carinho existente em sua realidade.

           Ambas as gravidezes do casal – De Dimitri e de Dasha – não foram planejadas e causaram muito desespero na quadrilha; grandes decisões precisaram ser tomadas a respeito das crianças, e os países vizinhos aliados à quadrilha pressionavam o casal para que as crianças fossem retiradas do país. Na primeira gravidez, Anya entrou em um período emocionalmente sombrio, considerando enviar o filho para a Alemanha e, possivelmente, nunca mais vê-lo. Passava períodos sozinha, incapacitada de treinar ou se alimentar; noites em claro e longe de Hugo preenchidas por lágrimas e crises depressivas eram comuns. Ferido pela situação da esposa, o marido adiou as missões e expedições para reconforta-la, dissertando sobre as opções junto a ela. Ambos decidiram ficar com Dimitri, e alguns meses depois, outra gravidez – que daria luz à Dasha – veio a tona. Foi no dia que Anya revelou para Hugo a segunda gravidez que ele recitou as palavras mais bonitas à ela:

            "Te prometo que essas crianças vão sair daqui, vão conhecer o mundo, ir a praia, fazer um piquenique, ir ao zoológico. Eu te prometo, Anya. Prometo que algum dia teremos paz, nem que eu tenha que morrer para isso se concretizar. Eu vou sair desse lugar, me jogar nessa guerra pela nossa família, e se você segurar a minha mão eu vou conseguir. Com essas crianças me esperando eu vou conseguir, tenha certeza, porque não há nada nesse mundo que eu ame mais a você e elas. Anya, fizestes eu me apaixonar em meio a guerra, você me deu uma família em meio a esse inferno, então confie no nosso potencial para protege-la. Você é a minha única paz nesse mundo caótico, então eu vou deixar esse mundo em paz para que você possa viver nele. Não importa o que eu tenha que fazer pra isso."

           A promessa ecoou na cabeça de Hugo como quando toda a vez que Anya o abraçava. Não tinha a menor certeza de que seria capaz de cumpri-la, mas sabia que morreria tentando.


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