Sorriso Insano escrita por LoneGhost


Capítulo 33
Brincar com o mal


Notas iniciais do capítulo

Vocês podem ler este capítulo escutando:
—Gothic Dolls (Derek Fiechter)
—Lavender Town (versão Moisés Nieto)
—Jack-O'-Lanterns (Derek Fiechter)

(Todas estão no Spotify)

Boa leitura :)



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 A polícia invadiu o local dias depois que chegamos, mas nos escondemos na floresta. Apesar de Jeff ter certa tendência nômade, ele preferiu ficar ali na casa, sem incômodos por tempo indeterminado. Garoto doente, muito doente.

 

Os policiais acharam os corpos, o sangue e cada digital estranha que ali estava. Eles investigaram por vários dias, e enquanto faziam isso, Jeff me levava com ele para caçar e torturar animais, e de noite voltávamos para a casa, cheia de fitas, pacotes com evidências e giz riscado no chão.

 

Certa vez, nós estávamos andando na floresta.

—Você disse que me levaria para a sua casa. A casa onde matou sua família.- eu disse.

Ele não respondeu. As nuvens no céu estavam carregadas de água e o dia estava escuro, com ventos fortes e folhas caindo. Poderia chover a qualquer momento. Eu semprei odiei Jeff, mas não aguentava aquele silêncio infernal que ele sempre deixava entre nós quando não estava falando insanidades. Olhar para ele me dava nojo, então passei a não encará-lo mais nos olhos, mesmo porque seu rosto me deixava distraída e assustada. Eu não queria mais perder para ele.

—Onde será que Thomas está?- perguntei.

Continuou quieto e andando. Engoli em seco antes da última pergunta.

—Tem... alguma coisa errada?

E se eu não tivesse desviado, teria levado uma cotovelada bem no meio da cara. Me afastei dele e o observei. Ele parecia extremamente nervoso. Apertei com força a faca que estava segurando. Ele encarou o chão por algum tempo.

—Você não entende, não é? Não percebe o que está acontecendo?- falou frio.

Sim, eu percebia o que estava acontecendo. Há algum tempo ele andava esquisito (mais do que o normal). Parecia estar com raiva, muita raiva de tudo, e andava mais quieto também. Mas eu não sabia o motivo. Antes que eu pudesse responder, ele olhou para mim.

—Eu estou fraco. Preciso renovar minhas energias. Preciso compactuar com ele de novo.- falou.

Meu cérebro demorou pra raciocinar.

—Com... ele?

—Sim.

—Você... quer dizer... com o Diabo?

—Vamos logo.- ele voltou a andar, irritado.

Ouvi alguns sussurros em minha mente e sabia que estava perdida.

Eu o segui por entre as árvores até chegarmos em qualquer lugar aleatório, nada diferente do resto da floresta. Quer dizer, era assim que eu via aquilo tudo, mas não sei qual era a visão de Jeff. Pelo visto, era um local bastante importante para ele.

—Encontre um bode e traga-o para mim. Morto.- Jeff disse.

Olhei para ele sem entender.

—Um bode? Como diabos eu vou encontrar um bode? Acho que nem tem esse tipo de animal aqui.

—Tem, tem sim!- ele quase gritou, irado.- E você vai trazer para mim um bode grande e preto. Te dou dez minutos, começando agora.

Ao invés de questionar, suspirei profundamente e senti um forte desânimo. Eu não quis que sobrasse para minhas costas, então fui atrás do maldito bode.

Segui em frente, porque sabia que no caminho que tínhamos percorrido até ali não havia nenhum animal. O vazio existencial se proliferava cada vez mais, me dando sono e vontade de fazer nada. Faltava uma identidade em mim, mesmo que muitas vezes eu tentasse me convencer de que já aceitara meu destino.

Andei por muito tempo e já estava perdendo as esperanças. Nem sabia mais em que lugar da floresta estava. Fiquei com vontade de fugir, mas sabia que isso estava fora de meu alcance e de nada valeria.

Subitamente, o olho de Toby fez com que eu tivesse uma visão novamente. Pensei que seria muito rápido, mas ao invés de ser apenas um flash, como em todas as outras vezes, naquele momento, tudo tornou-se diferente. Eu ainda estava na floresta, mas de todas as árvores, do céu, da grama, de cada folha, emergia uma aura branca... quase azulada. A natureza transluzia, como se tudo estivesse querendo desvanecer, mas ainda continuasse ali. O ar parecia ser mais fácil de respirar, e ao contrário de tudo, era a única coisa que parecia estar aparecendo ao invés de sumindo. O ambiente inteiro era coberto com um branco translúcido, como uma neblina muito, muito leve, mas que ainda dava um aspecto diferente ao local.

—É o plano dos mortos.- sussurrei.

Não compreendi o motivo de estar ali, porém, não questionei. Afinal, aquele olho me fazia ter alucinações mirabolantes, com as quais eu já tinha me acostumado. Andei por mais um tempo, admirando a nova paisagem, quando vi algo... ou alguém. Acho que alguém. Não. Era algo, definitivamente algo.

Apertei os olhos e vi ao longe aquela silhueta nada identificável. Comecei a chegar mais perto até que um barulho alto e estranho de um grito agudo percorreu meus ouvidos. O barulho persistiu por alguns segundos até que a coisa que estava na minha frente começou a vir em minha direção também, e eu recuei. A coisa continuou a andar, e depois mais rápido, e depois começou a correr, correr e gritar. Me virei e corri também. Aquilo estava atrás de mim e queria me matar. Mas eu sabia que devia matá-lo primeiro.

Com os olhos fechados, me virei e corri para frente com a mão que segurava a faca esticada. Estava com medo de não desferir o golpe e acabar sendo ferida, mas rapidamente senti meu braço pesar e atravessar algo, até senti-lo coberto por algo quente.

Abri os olhos devagar e notei que estava de volta ao mundo dos vivos. Tudo parecia como antes, nítido. As nuvens estavam mais carregadas de água, deixando o céu com cinza muito escuro, as árvores perdiam suas folhas por conta do vento forte e frio. O cheiro da grama cobria todo o local. Minha mão e faca estavam cobertos de sangue. Porém, ele cheirava mais forte do que sangue normal, e parecia mais denso e escuro. Olhei para o que tinha atacado e vi um animal negro caído nas folhas secas. Me aproximei e o bode ainda estava com os terríveis olhos amarelos abertos. Os chifres grandes e arredondados eram magníficos. Algo sobre aquele animal me fez querer vomitar, me fazendo sentir como escória. Eu o feri no peito, rasgando-o. Esperava que Jeff não se importasse com aquilo. Peguei o bode o coloquei em meus ombros, segurando o par de patas da frente com a mão esquerda, e o par de patas de trás com a mão direita.

Voltando para onde Jeff estava, pensei se o que eu tinha atacado no mundo dos mortos era mesmo um bode. Podia ter sido um espírito maligno, um demônio. E me perguntava se Toby havia me ajudado em alguma coisa.

Jeff estava virado em minha direção quando cheguei ao local de encontro.

—Mais rápido!- ele gritou.- Eu preciso fazer isso rápido!

Franzi as sobrancelhas e então minha cabeça começou a funcionar, de fato. Ele precisava daquilo rápido? Sem aquilo ele era alguma coisa? O que diabos eu estava fazendo ali ajudando-o?

—Jeff...- perguntei.- Sem esse bode você poderia fazer o que vai fazer?

—Eu usaria até seu corpo no lugar dele.- respondeu seco.- Coloca essa droga aqui logo.

Ele apontou para o chão e percebi que havia um círculo feito de pedras com certo tamanho padrão. Dentro do círculo, Jeff fez um pentagrama, também com pedras.

—Então você vai mesmo...

—Sim.- ele me interrompeu.- É um pacto. Eu não posso quebrá-lo.

Hesitei e pensei em sair correndo. Afinal, o que ele faria sem aquilo? Mas algo me impediu. Eu não senti tanta confiança dentro de mim a ponto de criar coragem para correr.

Coloquei o bode onde ele apontou, no centro do pentagrama. Meus ombros estavam sujos de sangue.

—Agora saia.- ele disse.

Obedeci e ele se direcionou para perto do corpo do bode.

Uma mão em cada chifre, um pé contra o corpo e um puxão entortando a cabeça, isso foi o suficiente para arranca-la. Além da cabeça, ele aproveitou o corte que fiz no peito do bode e arrancou seu coração, com facilidade.

Ele o deixou de lado e pegou o corpo do bode, jogando-o para fora do círculo. O corpo pesado fez as folhas do chão voarem e um cheiro insuportável emanou-se no ar. Sacudi minha mão na frente do rosto e tossi, reclamando.

—Agora, garota, cala a boca. E se acha que não vai aguentar, é melhor cobrir os olhos.- Jeff disse.

Considerei a opção de fechar os olhos, mas queria ver o que ele faria. Talvez eu pudesse usar aquilo ao meu favor algum dia. Sentei-me encostada no tronco de uma árvore grossa para assistir. E então, começou.

 

Jeff ajoelhou-se no centro do pentagrama, de costas para mim. Ele levantou o coração para o alto, segurando-o com as duas mãos e começou a falar na língua estranha que eu sempre ouvia enquanto ele fazia seus rituais.

Logo de início, comecei a sentir arrepios, e um sentimento ruim surgiu dentro de mim. Uma leve náusea se fez presente.

Depois de alguns minutos falando, ele abaixou as mãos e começou a mastigar o coração. Eu não consegui ver, por ele estar de costas, mas tenho certeza de que ele comeu tudo. Depois, ergueu a cabeça do bode da mesma maneira e começou a falar de novo.

Mas algo aconteceu.

O ambiente e as nuvens começaram a ficar mais escuros. O vento, mais forte. As folhas começaram a dançar em volta do círculo de forma sobrenatural.

Comecei a ouvir sussurros, vozes baixas falando coisas estranhas. Me encolhi e tremi, de medo e de frio. Abracei as pernas e, ao olhar para o lado, vi a figura de um corpo carbonizado indo à direção do círculo. Me senti petrificada. Mais ao longe, apenas um vulto preto era visível. Olhei para a minha esquerda, e uma criança sem olhos, de boca escancarada e vestida em trapos caminhava lentamente em minha direção. Espíritos malignos vinham de toda parte e eu coloquei minha cabeça entre as pernas para não olhar.

Jeff quase gritava, com a voz rouca. Levantei um pouco os olhos e percebi que ele estava dando tiques. Seu corpo todo parecia estar sendo tomado por alguma coisa.

Finalmente, começou a chover. Primeiro, estava fraco, e depois, começou a ficar mais forte. Mas folhas continuavam a voar em torno do círculo, cada vez mais alto e com mais intensidade.

Olhei com cuidado ao redor e vários vi diversas figuras olhando a cena. Alguns pareciam humanos deformados, mas outros, nem humanos eram. Pareciam seres como Rake, e até piores.

Meu coração acelerou muito, minhas mãos suaram. Gemia de medo. Não consegui segurar e vomitei. Aquela sensação de angústia e terror estava mexendo com meu corpo inteiro. Eu queria fugir.

Jeff parou de falar e pude ouvir apenas o barulho da chuva e do vento. Olhei para ele. Em sua frente, havia aparecido uma figura de quase dois metros de altura, inteiramente coberta por um manto preto, com um capuz. Não era possível ver seu rosto, mas aquilo transmitia energias mortíferas. Jeff, inteiramente molhado e ainda dando tiques, esticou a cabeça do bode para a coisa. As mãos do ser se levantaram para alcança-la. Pareciam mãos humanas, mas cheias de queimaduras.

Quando Jeff lhe entregou a cabeça, aquilo ficou parado por um instante, enquanto Jeff dava mais tiques e falava coisas estranhas, parecendo estar possuído. E então, percebi que o ser estava olhando diretamente em minha direção. A sensação é inexplicável, então posso dizer apenas que coloquei o rosto entre as pernas novamente e senti as lágrimas escorrerem por meus olhos. Até perceber que o que o que estava saindo de meus olhos não eram lágrimas... era sangue.

Meu desespero foi tamanho que quis me levantar pra correr, mas eu não consegui me levantar. Não conseguia mover sequer um músculo senão minha cabeça. Senti falta de ar e achei que não conseguiria mais respirar. Quando olhei novamente, a coisa na frente de Jeff havia tirado o capuz, e no lugar onde devia estar uma cabeça humana (ou o que quer que fosse aquilo), havia um crânio... de bode. Com chifres grandes e deformados, como se fossem vários galhos se estendendo do crânio.

E Jeff ficava cada vez mais louco. Então, começou a rir imensamente, uma gargalhada que perfurava como uma lança meus ouvidos e se espalhava pela floresta inteira. Depois, a coisa encostou nele, fazendo-o cair no chão, se debatendo em cima das pedras. Ele começou a ter convulsões terríveis e a falar palavras estranhas. Sua boca estava coberta de sangue, que se espalhava no rosto conforme a chuva caía.

Os espíritos malignos começaram a se aproximar do círculo, até ficarem todos em volta de Jeff. Então, algo explodiu como uma bomba e o círculo começou a pegar fogo. Ouvi um grito estridente vindo de lá, um grito cheio de dor e angústia. Era demoníaco demais. A chuva não impedia o fogo, caía em cima dele e o fazia ficar mais alto, e suas chamas mais fortes.

—Meu Deus...- falei entre soluços.- me tire daqui...

Jeff não parava de gritar. Entre as chamas, eu via as silhuetas dos mortos, e aquele ser estava centralizado, com todos ao seu redor. Via alguma coisa fazer as chamas oscilarem, e sabia que era Jeff se debatendo, com dor.

Aquilo persistiu por vários longos minutos, até que notei que as chamas começarem a se espalhar para além das pedras do círculo. Tentei me mexer, para correr, mas era impossível. Eu parecia grudada no chão e na árvore.

—Não! Não!- berrei.

Então, comecei a gritar junto a Jeff enquanto as chamas iam em minha direção.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por chegar até aqui
Nos vemos no próximo capítulo :)



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