Sorriso Insano escrita por LoneGhost


Capítulo 34
O tempo não cura


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura



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 As chamas chegavam cada vez mais perto. O frio era substituído por um calor infernal. Eu tentava me mexer, mas algo me prendia ao chão e à árvore.

As criaturas começaram a falar dentro do círculo de fogo, parecendo ser a mesma língua que Jeff estava falando para invocá-los. Era muito macabro.

Então, o fogo encostou em meus pés. Foi uma das piores dores que eu já havia sentido. Meus gritos cortavam minha garganta e minhas lágrimas ainda eram sangue. Eu via o fogo incessante subindo em minhas pernas. E gritava de dor, porque aquilo doía na alma. Ouvia os gritos de Jeff também. Sentia dor por mim e por ele. E eu não conseguia mesmo me mexer.

—Meu Deus! - berrei.- Me ajude!

Sentia minha pele se abrindo e o fogo encostando na carne viva. Olhei para minhas pernas, mas minha visão estava embaçada demais, além da vermelhidão que cobria meus olhos por conta do sangue que deles escorria. A fumaça começou a fazer contato com meus pulmões, e eu tossia e chorava ao mesmo tempo.

O fogo não parecia estar se espalhando para mais longe, então, minhas pernas se incendiaram por alguns minutos, até que as vozes dos espíritos começarem a ficar mais e mais baixas, e finalmente desaparecerem.

Enfim, o fogo começou baixar e a chuva pôde contê-lo. Mas minha respiração ainda estava acelerada, meu coração ainda parecia querer saltar para fora de meu peito, e minhas pernas ainda queimavam muito.

Quando o fogo apagou por completo, a chuva continuou, mas um pouco mais fraca, e caía em minhas pernas como cacos de vidro. Não olhei para elas, porque não sabia se iria aguentar.

No círculo, só estava Jeff, deitado de barriga para cima, bem no centro, com as pernas e os braços esticados, um para cada lado. Ele não parecia mais queimado do que já estava, na verdade, sua aparência continuava a mesma, exceto pelo fato de que tinha espuma e sangue saindo de sua boca. Os olhos arregalados olhavam para o céu, e as gotas caíam em seus olhos, mas ele não parecia se importar com isso. Estava em um completo transe, como se dormisse de olhos abertos.

Quando enfim olhei para minhas pernas, percebi que elas também estavam inteiras. O vestido cinza que eu usava, continuava da mesma cor, sem sinais de queimaduras, assim como a meia-calça branca e o coturno, ou seja, minhas pernas não estavam de fato queimadas, mas doíam muito, muito mesmo.

—AHHHHH!- eu gritei.

Finalmente senti meu corpo leve e notei que voltei a me mover. Estiquei as pernas e tentei levantar, cambaleando e caindo logo em seguida. Gritei mais.

—Merda!- falei chorando.

Tentei levantar de novo, mas minhas pernas tremiam demais e eu caí de joelhos no chão.

—Relaxa...- ouvi Jeff dizer.

Olhei para ele, que não havia se movido e ainda olhava terrivelmente para o céu.

—O fogo era espiritual... não podia te consumir.- ele falou, calmo.

—MAS POR QUE...- falei, tentando me levantar de novo-... ESSA DESGRAÇA DÓI TANTO?

—É espiritual... mas ainda é fogo.

Caí de novo e enfim aceitei que não conseguiria ficar de pé por um bom tempo.

Chorei com o rosto deitado nas folhas molhadas. Não chorava mais sangue, minhas lágrimas tinham voltado ao normal.

Depois de quase uma hora, a chuva passou, e eu tremia frio da cintura pra cima. Minha cabeça começava a doer. Ouvi Jeff se mexer, até que se levantou.

Me sentei no chão e olhei para ele, o qual alongou os braços e se espreguiçou.

—Então...- começou.- Você queria ver minha casa?

Ele parecia mais animado. Definitivamente, com as forças revigoradas. Olhei para ele, triste.

—Acho que agora não.- respondi.

Ele revirou os olhos.

—Tudo bem, então. Vou voltar para a casa. Não demore.

E quando eu pisquei, ele sumiu. Suspirei e me deitei de costas no chão.

As árvores ainda pingavam algumas gotas de suas folhas. O vento ainda era forte e eu sabia que provavelmente pegaria algum tipo de doença por conta daquilo.

Fechei os olhos e apenas senti a natureza... a única coisa bonita que ainda restava em meu mundo.

Estava quase adormecendo quando ouvi algo pisando nas folhas. Abri os olhos e me levantei depressa. Era só um esquilo. Suspirei de alívio. Mas ao me virar, tive uma surpresa.

Olhando para mim, boquiaberto e com um olhar confuso, havia um adolescente de cabelos pretos e olhos azuis. Estava vestido em trapos, a camiseta listrada estava suja e rasgada, o jeans parecia velho, e ele estava descalço. Em seus pés, haviam marcas de arranhão. Seu rosto parecia machucado, roxo abaixo do olho esquerdo. Segurava um pequeno machado em uma das mãos.

Eu não podia acreditar que Thomas ainda estava por ali, mas minha mente não parecia reagir com alegria. Fiquei surpresa, muito surpresa, afinal, era inesperado, porém não senti a alegria que imaginei que fosse sentir caso o encontrasse novamente. Talvez meu ser tivesse sido mesmo corrompido.

Nos encaramos por um tempo, sem dizer nada. Ele parecia olhar todos os detalhes em mim, os olhos, a boca, as cicatrizes.

—Por onde você andou...?- escapou baixo de minha boca.

Ele me encarou confuso por mais um tempo, antes de responder. Balançou a cabeça.

—Eu... nem sei por onde começar.- finalmente disse.

Sua voz estava diferente, parecia mais insegura e vazia, como se saísse de sua boca e fosse perdida no espaço.

Esfreguei uma mão no rosto e suspirei. Meu corpo parecia sem reação. Eu queria falar e perguntar tantas coisas ao mesmo tempo, mas nenhuma delas chegava à minha garganta. Olhei para ele.

—E eu não sei o que dizer.

—Eu... aconteceu tanta coisa.

Engoli em seco.

—Thomas, eu não entendi nada da última vez que nos vimos. E agora, depois de tantas semanas, você diz que não sabe por onde começar?

Sua expressão mudou, agora ele parecia estar com... pena.

—Semanas...? Wendy...- ele hesitou.- Já fazem dois anos.

Senti minhas sobrancelhas franzirem. Pensei que ele estivesse brincando comigo, mesmo naquela situação. Era simplesmente impossível que estivesse falando sério.

—O que...?- perguntei sem entender.

Ele engoliu saliva.

—O espaço-tempo nesse plano é muito diferente do humano, e o tempo pode variar, passando muito devagar ou muito rápido. No seu caso...-ele fez uma pausa.- Foi a segunda opção.

Refleti sobre o que ele falou, e acabei lembrando que eu estava meio-morta. Acho que nada ali era impossível.

Coloquei as mãos no rosto e dei o suspiro mais longo de minha vida. Afinal, ele estava dizendo que dois anos haviam se passado. Dois malditos anos. E eu não progredi em nada.

—Em que mês estamos?- perguntei.

—Não tenho certeza. Acho... que em junho.

Finalmente concluí... eu já estava com 16 anos. Aquilo me deixou indignada. Eu queria sair quebrando tudo que estava à minha volta, incluindo aquele garoto maldito que me deu as costas. E minha família? Meu pai e meu irmão? Como estariam? Aquilo tudo era o Inferno.

—O que diabos eu tô fazendo aqui...?- pensei alto.

—Wendy...- Thomas ia dizendo.

—Cala a boca, Thomas! Cala a boca!- berrei.

Ele recuou.

—Você não entende?!- eu estava gritando.- Dois anos se passaram e eu não fiz nada! Não fiz nada! A única coisa que eu queria era vingar a morte da minha mãe, que você matou!- apontei para ele.- E então milhares de vidas são jogadas em minhas costas! E você vai embora e me abandona com aquele filho da puta psicótico! E quando eu penso que não dá piorar mais, você simplesmente aparece e me diz esse absurdo!

Comecei a chorar de raiva.

—Wendy...-ele começou a falar.- Eu não te abandonei. Eu só...

—Eu não aguento nem ouvir sua voz! Você só apareceu de novo pra me infernizar, não foi?! Era melhor quando não estava aqui!

Olhei para o alto e gritei. Peguei minha faca do chão e Thomas recuou, levantando levemente o machado.

—Não precisamos disso.- falou.

—Não é pra você.

E então, com força, passei a lâmina em meu pescoço, rasgando-o. O sangue jorrou e eu me senti engasgada, o que me fez tossir. Coloquei as mãos no corte e o que senti foi uma dor ardente e insuportável, bem parecida com o fogo em minhas pernas. Ouvi Thomas gritando meu nome e provavelmente correndo em minha direção, mas eu já estava com minha visão turva, e caída no chão como o pedaço de merda que me sentia. Mais uma vez, desmaiei.

 

Abri os olhos e me vi deitada na cama das gêmeas, no quarto da casa. O cheiro de sangue em mim era forte. Meu pescoço ardia intensamente, e parecia mole, como se minha cabeça pudesse desgrudar do meu corpo, mas quando coloquei as mãos percebi que ele estava enfaixado.

Tentei me sentar na beirada da cama e consegui, com esforço. Tentei engolir saliva e senti como se estivesse engolindo um caco de vidro.

—Ai.- minha voz quase não saiu.

Me levantei e vi que estava ventando muito do lado de fora, as folhas sendo sopradas para longe, muito longe. Olhei para a cama e ao lado do travesseiro, vi que havia uma folha de papel rabiscada. Peguei-a e havia uma mensagem escrita em caneta azul, em uma caligrafia tremida e quase ilegível.

 

 

Wendy...

acho que essa é a única forma de te fazer me ouvir sem que comece a gritar.

Eu sei que errei. Talvez nem todo o perdão do mundo possa consertar o que eu fiz.

Mas eu quero que tenha consciência de uma coisa: Não é só você quem está sofrendo. Acha que eu estou feliz? Eu estou morto por dentro e por fora. Talvez isso esclareça alguma coisa.

Eu fui acordado da morte para matar e você sabe disso. Estou no mundo dos mortos e dos monstros ao mesmo tempo. Eu sou um monstro morto. Aquela pessoa que você viu no circo é quem eu realmente sou. Jack Risonho. Eu não sou mais Thomas, posso até tomar a forma dele, mas não sou. Eu não posso mais ser considerado humano. Quanto mais insana minha mente estiver, mais escuras ficam minhas roupas. Você se lembra do circo? Talvez isso responda o que aconteceu com os policiais.

E por falar nisso, eu sei que devo explicações...

Wendy, eu não pretendia de deixar sozinha. Eu sei que meu plano te incluía nele, mas naquela época eu pensava que poderia resolver tudo sem ninguém, como já estava acostumado. Então, entrei no circo por um tempo e desenvolvi meu novo ser lá dentro, desenvolvi Jack. Eu achava que, se evoluísse, longe daquela vida que vivíamos, poderia me tornar forte para acabarmos com Jeff. Mas então, vocês apareceram...

 

Virei a folha.

 

Depois daquele acidente no show, meus demônios interiores quase me possuíram por completo, mas eu estava aprendendo a me controlar. No tempo em que ficamos separados, que para você se pareceram semanas, pareceram longos anos para mim. Eu tentei te encontrar, mas não sabia para onde Jeff havia te levado.

Obviamente, eu não poderia mais ficar com as pessoas do circo, então apenas segui meu caminho.

Mas Jack estava em mim. Eu fiz coisas ruins. Matei inocentes por conta própria. Brinquei com crianças e as matei. As devorei. Eu odeio quem sou. Eu não queria ter feito aquelas coisas, mesmo que pareça que não me importo. São vidas e Jack as tirou.

E agora, eu e Jack somos um.

Não sei o que fazer. Estou completamente perdido, e admito que precisava desesperadamente de sua ajuda.

Se quiser, você pode me chamar. Toque a caixa de som que eu aparecerei.

Acho que ouvi Jeff. Preciso ir.

—Jack

 

 

Eu sinceramente, nem sabia que tipo de conclusões tomar sobre aquela carta. Mas voltei meus olhos para o texto... caixa de som?

Revirei os cobertores e não encontrei nada. Olhei debaixo do travesseiro, no beliche de cima... e nada.

Continuava a procurar até que ouvi a porta do quarto abrir bruscamente. Amassei rápido a carta e a joguei debaixo da cama.

Jeff olhou para mim e sorriu.

—Então... você queria ir conhecer minha casa?- perguntou.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por chegar até aqui.
Nos falamos na próxima.



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