A difícil arte de ser eu, Harry escrita por Sangster


Capítulo 4
Se meu apartamento falasse...




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Ostentando um semblante carrancudo, atravesso a área de passeio feita com pedra miracema, ladeada por um jardim composto de azaleia, bruxinho e grama esmeralda, cuja extensão de 1.200 metros segue da entrada principal do condomínio até a entrada do hall social do bloco aonde fica o apartamento dos meus pais. Antes de cruzar a porta automática, também de vidro temperado com fundo verde, no mesmo padrão do portão e muro do condomínio, estaco a alguns centímetros de distância para olhar na direção do bloco onde o Draco mora, já considerando a hipótese de subir até o apartamento dos seus padrinhos e cara a cara perguntar para ele os motivos que o levaram a me ignorar desde ontem à noite depois que nos falamos no celular pela última vez, apesar de eu já saber a resposta.

Num movimento um tanto brusco, tiro os óculos do rosto e os levo até a extremidade da camisa para limpá-los rapidamente (não importa o que se faça, eles vão estar sempre sujos) e logo em seguida, mal terminando de devolvê-los ao lugar de praxe, e enquanto respondo com um sorriso forçado aos cumprimentos de alguns dos moradores que passam por mim, busco reunir forças para ir adiante com minha intenção, por mais idiota e patética que possa parecer, afinal nem Zeus escapou do ridículo do amor, então porque eu, um mero mortal, deveria me preocupar com isso? Talvez esteja na hora do Draco rever sua lista de prioridades, saber o quão incomodado fico por ser tratado de maneira completamente hostil quando ele está com uma nova namorada.

Nem chego a dar o primeiro passo e logo sinto minha respiração mudar, ficando mais acelerada e mais superficial do que o meu corpo precisa, e minhas costas começar a doer e pensamentos desconexos invadir minha mente de maneira obsessiva. Merda. Talvez lá, no País das Maravilhas, ao lado da Alice, do Coelho apressado e daquele Chapeleiro envolvido com drogas pesadas e ilícitas, essa possibilidade de confrontar Draco possa se concretizar, mas aqui... Balanço a cabeça carregado de incredulidade ao passo que tento colocar gotinhas de lógica nas ideias rebeldes fabricadas a toque de caixa pelo meu cérebro enquanto procuro controlar minha respiração, deixando a saída do ar durar um tempo maior do que a da entrada.

Aos poucos, enfim (eu acho), vou retomando o centro da minha existência e então arrumo a alça da mochila sobre o ombro direito e olho para baixo, na direção da fila de bruxinhos e azaleias próxima aos meus pés, sem conseguir deixar de lamentar por mais uma batalha vencida pela hesitação crônica, mas algo dentro de mim, dessa vez, e por incrível que pareça, não quer ser derrotado, pelo menos não tão rapidamente...

O que está acontecendo comigo? Não tenho mais quatorze, quinze anos. Chega de sofrer por alguma coisa que não sei se é real. Preciso saber se tudo isso está somente dentro da minha cabeça ou não. Talvez uma avalanche da mais dura e fria realidade me ajude a abandonar de vez a esperança de que Draco vai despertar um belo dia e enxergar o que sinto por ele e de pronto acreditar que encontrou sua alma gêmea e reconhecer quanto tempo foi perdido até aqui.

Uma comichão de ansiedade e desespero me invade de maneira tal que é impossível continuar resistindo, e daí respiro fundo e sem titubear levanto os olhos e torno a mirar, cheio de determinação, a entrada do bloco onde o Draco mora e dou o primeiro passo adiante e também o segundo, só que este último para trás...

Mas que merda.

O fantasma da possibilidade de ser rejeitado volta a me assombrar e com ele a convicção de que todo o esforço que venho fazendo para manter a amizade de Draco intacta vai desmoronar num estalar de dedos. Uma foto do melhor amigo estampada na tela de bloqueio do seu celular é uma coisa, ainda que um tanto estranho, pode ser encarado como uma homenagem, mas ouvir uma confissão de que ele está a quase um ano perdidamente apaixonado por você, o levará a concluir sem qualquer objeção que esteve todo o tempo ao lado de um exímio mentiroso que se aproveitou de maneira sórdida de todos os instantes da intimidade fraternal que compartilharam.

Se parar pra pensar, nunca presenciei Draco se manifestar em relação ao fato da desconfiança de alguém ser gay. Não sei o que se passa em sua mente, que tipo de conceito tem construído já que nunca falamos sobre isso, pelo menos não de forma direta e sem meandros, graças a Deus. E se ele for do time dos que acha a homossexualidade contagiosa e vive na iminência de que um meteoro atingirá o planeta matando todos os heterossexuais, assim como aconteceu com os dinossauros? O séquito de amiguinhos no HOGWARTS que está sempre ao seu redor, aquele bando de primatas do paleolítico médio, pensa dessa forma, e por mais que Draco tenha a inacreditável habilidade de acender uma vela para Deus e para o diabo sem se queimar, sustentando um meio termo que só mesmo as Leis da Diplomacia podem explicar, principalmente quando esses seus amiguinhos decidem escolher uma potencial vítima para infernizar sem qualquer fundamento, creio ser difícil para ele conseguir manter-se imune, ainda mais em algo que coloca em jogo a própria masculinidade, ponto de honra para aqueles Neandertais...

Eu até hoje vivo sob o temor de que a nossa amizade, em algum momento, vá sucumbir em favor desses seus coleguinhas, e para essa corda arrebentar de vez, não precisa muito, basta tão somente um deles ter certeza da minha orientação sexual para colocar Draco entre a cruz e a espada, destilando todo o veneno que possui a fim de deixar bem claro qual lado do campo ele deverá seguir... Em suma, Draco não pode descobrir o que sinto por ele. Decididamente ainda não estou preparado para perder sua amizade, de ser banido impiedosamente do seu universo...

É frustrante, mas eu preciso encontrar um meio termo e continuar seguindo com a minha existência, dando o meu jeito de conviver com a dor que escolhi, mesmo porque não sei o quanto ela vai durar, só torço para que não se estenda por mais quase um ano.

Entre resignado e impaciente, dou meia volta, passo pela porta automática de entrada do hall social do meu bloco, e depois de atravessá-lo a passos largos, alcanço o elevador e milagrosamente, sem ninguém como companhia, eu chego até o décimo andar, onde moro, sentindo minha cabeça latejar, como se dentro dela estivesse sendo montada toda aparelhagem de um show de heavy metal para o qual não serei convidado e nem faria a mínima questão. Por que às vezes achamos que sabemos tudo ao mesmo tempo que não temos a menor ideia do que está acontecendo? Bocejo enquanto reviro minha mente em busca de uma resposta.

Saio do elevador e inicio o trajeto rumo ao meu apartamento sem muita pressa. Sob uma iluminação disponibilizada pelo sensor de presença, percorro o extenso corredor deixando para trás pontos de luz com intensidades baixas até chegar à frente da imponente porta com madeira de demolição que demarca a entrada do lar doce lar onde vivo. Despretensiosamente, após ajeitar os óculos sobre o rosto, eu a encaro e em seguida estaciono meus olhos sobre o número “1010”, gravado em relevo sobre sua superfície. O que eu daria para não estar aqui, para sumir do mapa sem deixar rastros até conseguir parar de me sentir a pior pessoa do mundo, até conseguir enterrar muito, muito fundo, e sob uma placa de concreto terrivelmente pesada, a impressão de que estou sendo cobrado por ter tomado o caminho errado na estrada da minha existência...  Ao menos Ricardo III tinha um reino para trocar por um cavalo no auge do seu desespero em pleno coração da maior batalha de sua vida.

Fecho e abro os olhos algumas vezes, sem pressa. A dor de cabeça ainda persiste, porém numa escala bem menor e então fixo mais uma vez o olhar sobre a porta e enquanto trago a mochila para frente, sem retirá-la do ombro direito, para procurar a chave que está num dos bolsos laterais, sinto uma crise de histeria subir dos pulmões para o cérebro com a velocidade de um relâmpago, seguida da sensação de garras comprimindo cada um dos meus músculos, até alcançarem o meu peito, não me dando outra escolha a não ser depositar todo o peso do corpo, apoiando as costas sobre a parede à minha frente, ao tempo que esfrego os olhos, lutando bravamente para não desabar.

Detesto sentir-me desse jeito, completamente exposto, uma presa fácil para alguém começar a encher os ouvidos com perguntas chatas e cansativas. Não estou com disposição para elaborar uma desculpa qualquer, por mais esfarrapada que seja, caso algum vizinho apareça aqui, agora, nesse corredor, e muito menos para quando estiver cruzando o apartamento no intuito de chegar ao meu quarto.

Depois de um longo suspiro, conto até dez, me afasto da parede, tomo coragem e resgato a chave na mochila para em seguida encaixá-la na fechadura e girá-la ao mesmo tempo que vou me agarrando desesperadamente à realidade, todavia, antes mesmo de colocar o primeiro pé no hall de entrada, meus ouvidos são invadidos pelos brados de dona Joanne e concluo, um tanto desgastado, depois de fechar apressadamente a porta atrás de mim, que um dia ainda vou tomar coragem em voltar para casa com um protetor auricular e também um ansiolítico forte, desses que derrubam até um elefante, para que eu não perca o que resta das minhas faculdades mentais e não precise gastar, no futuro, uma boa parte das minhas possíveis economias deitado sobre um divã buscando compreender os sentimentos conflitantes de um ridículo Complexo de Édipo.

Desconheço o nome da criatura, mas agradeço todos os dias ao arquiteto que projetou e idealizou esse edifício por ter colocado um bom isolamento acústico neste apartamento, pois ninguém mais, além de cada um dos integrantes da minha família, é obrigado a ouvir aos espetáculos da prima donna Joanne Katherine Rowling Potter. Tenho certeza plena e absoluta de que ao entrar na sala vou me deparar com ela discutindo com alguém, já que nos últimos meses (talvez pelos preparativos do casamento de Hermione) tudo vem servindo de motivo para o seu descontrole. O que antes era uma questão sazonal tornou-se recorrente. Dona Joanne já acorda irritada. Infelizmente não há como negar que está cada vez mais se deixando absorver pelo mau humor, apatia e agressividade enquanto desempenha seu papel de ser humano.

Até hoje não sei como ainda consegue manter sua popularidade na Higt Society, pois se continuar nessa estrada carregando todos esses espinhos, por mais numeroso que possa ser seu cabide de amigos influentes, vai chegar um momento, em meio a essa febre do politicamente correto, que alguém dará ouvidos às reclamações (ainda que raras) espalhadas aos quatro ventos de algum ex-funcionário que teve a má sorte de trabalhar diretamente com ela. Como a Molly, nossa secretária do lar, vem conseguindo se conservar imune convivendo cara a cara com dona Joanne dentro desse apartamento nos últimos vinte anos?

Dou de ombros ao passo que vou analisando o meu entorno, fazendo de conta que estou conhecendo este espaço pela primeira vez e quem sabe assim consiga me distrair até tomar coragem para ir adiante. A decoração com cores sóbrias, o mármore em preto e branco do piso, o nicho na parede com um vaso de orquídea branca, o lustre super sofisticado, que, sozinho, deve consumir uma quantidade absurda de energia, não me servem de consolo ou incentivo para tentar alcançar o mínimo que seja de serenidade, até porque sob os reflexos dos brados de dona Joanne é impossível atingir qualquer nível de concentração, nem mesmo estando em algum santuário sagrado no Tibete. Deixo os ombros caírem. Vida que segue e cada um com seus problemas. Talvez eu comece a encarar isso tudo como um resgate espiritual...

Respiro fundo e parto para o campo de batalha, mas logo que chego à entrada da sala de estar, me deparo com minha irmã, Hermione, estatelada sobre o sofá, exibindo um semblante de “sofrência”, daqueles dignos de alguém que voltou de uma guerra duramente travada com um inimigo intergaláctico; ao seu lado, espalhados pelo chão, um verdadeiro estoque de pacotes e bolsas das mais diversas e famosas grifes existentes no mercado, de Dolce e Gabbana, passando por Lanvin a Christian Dior... Ah, na outra extremidade da sala, agarrada ao celular, gesticulando e disparando palavras na velocidade da luz, dona Joanne Katherine Rowling Potter, aliás, não demoro a descobrir que a desventurada alma do outro lado da linha é Belatriz Lestrange, a wedding planner mais requisitada do Brasil e que aceitou o desafio de coplanejar o casamento de Hermione, como se ela, Belatriz, não tivesse competência suficiente para fazer isso sozinha. Acredito que se a pobre coitada conseguir sair viva dessa odisseia vai precisar de um bom otorrinolaringologista e um excelente psiquiatra.

Circundo o sofá, que é forrado por um tom de marfim forte, até alcançar a poltrona borgone salmão que fica disposta à frente dele, onde me sento, inspirando e expirando, enérgico, ao mesmo tempo que retiro a mochila do ombro e a coloco no chão.

— O que houve por aqui? - indago à Hermione, esforçando-me para me fazer ouvir ao posso em que corro os olhos sobre os efeitos da bomba atômica que explodiu no centro dessa sala de estar.

Sem se levantar, minha irmã apenas move a cabeça na minha direção e antes mesmo que comece sua narrativa, eu me aproximo a fim de não perder nenhum detalhe, levantando da poltrona e caindo de joelhos ao seu lado. Resumo da ópera: nossa mãe a arrastou por horas sem fim num entra e sai de lojas, gastando dinheiro com itens luxuosos e até mesmo supérfluos, além de fazê-la cumprimentar, conversar e posar para selfies com diversas pessoas como se fosse uma celebridade. Cabe ressaltar que até o dia de hoje Hermione não havia movido um dedo sequer em prol da organização da festa de seu casamento que acontecerá daqui a cinco dias, uma postura inadmissível e incompreensível para dona Joanne, afinal, a filha de uma socialite tão influente não deveria agir com tanta despretensão e apatia, ainda mais diante de um evento tão colossal como esse, onde usar a própria figura como instrumento de divulgação é mais que oportuno. 

Hermione sempre teve uma visão bastante peculiar sobre o universo que gira em torno de um cerimonial de casamento. Para ela tudo não passa de uma realização propositadamente ostensiva e burocrática de um mero capricho transformado em um panorama caótico e dispendioso que se prolonga por meses nas vidas das pessoas envolvidas, culminando em uma reunião constrangedora entre parentes que já não se vêem há tempos.

Há seis meses, no almoço convenientemente coordenado para que o seu noivo Rony a pedisse em casamento, ela ousou reforçar essa sua opinião e é óbvio que não preciso dizer o quão infeliz, inapropriada e estranha foi a sua manifestação diante dos parentes e amigos que lá estavam apesar da maioria deles, de longa data, já conhecer esse seu ponto de vista. Talvez estivessem esperançosos de que ela mudasse de opinião quando assumisse, enfim, o papel da protagonista do destemido evento, caindo em si e reconhecendo a importância dessa tradição...

Enfim, com um discurso ainda mais inflamado, minha irmã se mostrou resistente, mas não por muito tempo, já que dona Joanne resolveu intervir, completamente encolerizada, transformando Hermione em um Davi diante de um Golias arrebatador, jogando por terra todos os seus sólidos argumentos, enfatizando o quão pueris, simplórios, limitados e pseudovanguardistas eles eram, além de tachá-la de transgressora e menina mimada ao passo que se mostrava surpreendida com a postura de uma mulher de 33 anos, presumidamente adulta, que se deixava influenciar pelo modismo do empoderamento feminino... Nossa mãe sempre soube enfraquecer qualquer um com sua força motriz e se uma de suas vítimas for um de nós, salve-se quem puder. Cabe registrar que ela nunca escondeu seu ponto de vista no que diz respeito ao limite de tolerância que os pais devem ter para com os seus filhos.

Até hoje não me convenci da súbita (e surreal) resignação da Hermione, da estranha passividade que assumiu depois do almoço que oficializou o seu noivado. Compreendo que tentar argumentar com dona Joanne é o mesmo que dar nó em pingo d’água, mas daí passar a enfrentar de maneira bem divertida tudo que diz respeito ao seu casamento, como se fosse uma piada, desistindo de se rebelar, de fazer prevalecer sua opinião, justificando-se com um largo sorriso no rosto de que não adianta desperdiçar energia sabendo que irá morrer na praia, além de bastante controverso é completamente insano. Sempre me questiono depois dessas suas demonstrações duvidosas de paz de espírito o quão necessário uma pessoa verdadeiramente feliz precisa ficar diante do espelho repetindo para sim mesmo que é feliz.

Carregado da certeza de que vou levar meu plano adiante e me permitir relaxar como um mandrião do Império Otomano, mesmo à frente de todas as diversidades gritantes, eu me despeço da minha irmã com um beijo em sua testa e ainda de joelhos me apoio no sofá e me viro para apanhar a mochila depositada não muito longe de onde estou; neste exato momento um silêncio sepulcral recai sobre o recinto, pois dona Joanne terminou sua ligação. Eu e Hermione, de imediato, não temos outra reação senão observá-la enquanto caminha, pisando firme, até o minibar que fica sobre o balcão de travertino, integrado à lareira reformada, no canto oposto à porta de entrada da sala de estar. Já me questionei diversas vezes sobre se ter uma lareira dentro de casa em pleno Rio de Janeiro, mesmo que a álcool, mas segundo dona Joanne, não há como abrir mão dessa peça que funciona como um indispensável elemento arquitetônico, além da sofisticação que oferece ao ambiente, seja lá o que de fato isso quer dizer.

É por essas e outras que fica impossível descartar a mais remota hipótese de que minha progenitora é a reencarnação da última rainha da dinastia Ptolomaica, a megalômana Cleópatra, e antes que ela comece o seu monólogo histriônico sobre o quão incompetentes são as pessoas que a rodeiam, eu inalo todo o ar que a Atmosfera me consente ao mesmo tempo que me coloco de pé, com minha mochila a tiracolo, já preparado para a trajetória eficaz que completarei até meu quarto enquanto Hermione acena com a cabeça dando a entender de que ficará como plateia.

Boa sorte!

Entretanto como um problema nunca vem sozinho, eis que surge, antes mesmo que eu dê meus primeiros passos, abrindo num rompante a porta do apartamento, atravessando o hall como um trem bala e adentrando a sala de estar como um foguete de longo alcance, contraindo os lábios, mexendo nos cabelos, contorcendo as mãos e batendo em tudo que encontra pela frente, minha querida e desequilibrada irmãzinha Gina. Hermione dá um salto do sofá e vai ao seu encontro sem nem pensar duas vezes e eu não sei qual a razão, motivo, causa ou o porquê de ela ainda sempre tentar dialogar, consolar e compreender Gina quando a vê chegar neste estado de completa possessão. Eu já desisti a muito tempo dessa luta, queimar meus preciosos neurônios tentando entender as crises de ciúmes infantis e doentias que essa mulher de 26 anos tem pelo noivo, aliás, algo que beira a patologia...

Dito e feito! Dessa vez a enxurrada dramática veio acompanhada de um créme de la créme. Cedrico, seu infeliz noivo, teria quase atropelado uma vagabunda, e ela, Gina, no seu mundo de Alice, está apostando todas as fichas que a tal ordinária se jogou na frente do carro dele, pro-po-si-ta-da-men-te, por não ter conseguido resistir ao ver um Onix Active 1.4 AT de R$ 67.000,00 (sim, ela faz questão de citar tudo isso), com um jovem e lindo endocrinologista na direção. Vamos lá: seguindo essa lógica de raciocínio absurda e completamente desvairada, essa moça, a tal vagabunda, que decerto deve ter um nome próprio e família, possivelmente trabalha em uma concessionária de automóveis, onde é a bambambã em relação ao produto que vende, além de possuir uma visão privilegiadíssima, sem falar no dom da vidência ou da adivinhação... Jesus Cristo, se essa tal moça fez tudo isso usando os seus "superpoderes", morreu na praia, coitadinha. Em pleno século 21 tentar arranjar um namorado com esse método kamikaze... Meu Deus, Gina, é muita neura para uma pessoa só. Santo Freud nos salve!

Hermione, um ser de luz, mesmo depois de ter testemunhado toda essa sandice, digna de um vertiginoso dramalhão mexicano, ainda continua tentando colocar panos quentes nessa perturbação de espírito e acaba ouvindo o que não quer, já que Gina lhe joga na cara que ela está se sentindo demasiado confiante, acreditando que está acima do bem e do mal só por causa do casamento com Rony, mas que aliança no dedo não significa segurança alguma diante dessa mulherada solta pelo mundo, um bando de ninfomaníacas, que não respeita ninguém, e que atiram a moral das suas iguais na lama.

É. É isso mesmo. Esse é o agradecimento que Hermione recebe de Gina, nossa irmãzinha do meio, que instigada por sua vaidade e egoísmo, não mede a extensão dos próprios atos, machucando quem estiver por perto.

Cada vez mais me convenço de que vivo em um ambiente insalubre, e hoje, definitivamente, não estou nem um pouco disposto a bater palma para maluco dançar. Graças aos céus, depois de um pequeno sacrifício, consigo persuadir Hermione a fazer o mesmo. Não posso deixá-la aqui, nesta arena, tentando doutrinar este projeto de leoa que não sabe o que quer da vida. Dona Joanne, que está assistindo a tudo enquanto entorna os seus drinques, que segure o rojão, afinal, quem pariu Mateus que o embale!

Despedimo-nos, eu e Hermione, em completo silêncio, após atravessarmos o corredor que nos leva cada qual a seu quarto. Eu, assim que termino de bater a porta atrás de mim, arranco o celular do bolso lateral da mochila, jogando-a em seguida sobre a cama, e depois de conferir o visor do aparelho, constatando, indignado, que ninguém no mundo quer saber notícias minhas, também o atiro na mesma direção e corro para frente do meu note, conectando-o sem demora, buscando num frenesi alucinado o cardápio dos sites de paquera e salas de bate-papo gays para mergulhar num universo onde poderei conhecer um montão de gente sem a obrigação de ser amigo de ninguém; onde poderei ser o que quiser e assumir qualquer identidade e onde, claro, quase cem por cento do tempo só falarei apenas sobre sexo com meus contatos online.

Exigir algo diferente disso é total perda de tempo, mas quem disse que estou buscando uma pessoa fascinante e incrível que saiba, ou melhor, esteja disposta a conversar sobre filmes, músicas, livros ou peças de teatro? Só se eu quiser ficar no vácuo, e isso já estou recebendo o suficiente por parte do Draco.

Uma sombra da minha dor de cabeça ainda persiste, mas eu a ignoro. A adrenalina que me aguarda vai expurgá-la para bem longe...

Vamos lá, vou usar um dos meus nicks preferidos, novinhoprocura... Yes, três segundos de acesso e já estou sendo abordado por cinco internautas diferentes e nem mesmo terminei de colocar os meus fones de ouvido.

A noite promete!

 


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