A difícil arte de ser eu, Harry escrita por Sangster


Capítulo 3
Um garoto de lugar nenhum




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Inclinado e com o ombro direito apoiado sobre o vidro da janela, espero, devidamente sentado, o motorista terminar sua manobra para estacionar em frente à guarita posicionada no recuo da divisa frontal na entrada principal do condomínio enquanto deixo escapar um ar sopesado de puro tédio ao mesmo tempo que observo, com os olhos semicerrados, igual a uma ave de rapina espreitando a caça, uma boa parte dos outros passageiros se colocando de pé ao lado de suas poltronas. Será que este bando de desesperado não sabe que ninguém vai conseguir sair desta caixa de metal enquanto ela não estiver parada? Depois que esses pela saco derem de cara no chão vão querer processar o motorista, a empresa, gritando em alto e bom som os seus discursos sem qualquer conteúdo lógico, completamente vazio, inadequado, impregnado de revolta e frustração, e o pior, vão conseguir um representante da lei tão ou mais egoísta e sem noção quanto eles para oficializar o serviço sujo. São essas pessoas que fazem a vida em sociedade se tornar um martírio.

Como bem disse o célebre personagem, Dr. House, eu não sou antissocial, só não suporto gente idiota e o mundo está cheio delas, concluo ao passo que meneio a cabeça bem devagar num ato de reprovação silenciosa enquanto empurro, com o dedo indicador, a armação dos meus óculos, fazendo-a recuar os milímetros de distância necessários que a separa neste momento do ápice da minha testa...

Sem qualquer sinal de urgência, volto o rosto na direção da janela e me deparo com o portão de entrada do condomínio, não muito distante, que ladeado por um metal tão branco como a neve, ostenta o nome Mare e Laguna gravado na cor preta e com a fonte aqr typeface se destacando sem muito esforço em meio à natureza etérea do vidro temperado verde que o rodeia. Seu propósito, assim como o extenso muro que o segue no mesmo padrão envidraçado, é garantir uma harmonia clean à fachada desse empreendimento faraônico, onde meus pais, e outros tantos megalomaníacos, decidiram fixar moradia... Será que daqui a alguns milhares de anos essa nossa sociedade contemporânea despertará o interesse de antropologistas e historiadores, assim como os egípcios, os persas, os gregos e os romanos, ou como qualquer outra civilização dos tempos antigos? Caso isso aconteça, será que eles irão compreender, considerando o legado histórico deixado por todas essas civilizações, através de seus conhecimentos e descobertas, o estágio de INVOLUÇÃO do homo sapiens do início do século 21, particularmente no campo social?

É óbvio que ninguém é perfeito, e nem tem a obrigação de ser, mas em um momento como este, em que temos acesso a uma infinidade de informações e a velocidade com a qual elas nos atingem, o egoísmo, de mãos dadas com a ignorância, vêm ganhando cada vez mais espaço. Nunca foi tão evidente o seu crescimento e nunca foi tão comum presenciar atitudes derivadas deste amor exclusivo aos interesses próprios, seja no trânsito, nos shoppings, nas praias, no boliche, nas filas do cinema, nos bares, nos teatros, nas Comics Com ou aqui, no corredor deste ônibus... Independente do local, nós sempre esbarramos com essas atitudes que não têm explicação racional. Só mesmo a afamada frase, “todo excesso esconde uma falta”, poderá justificar (ou ao menos tentar) a necessidade/compulsão em residir num condomínio de luxo onde o apartamento mais chinfrim tem 288 metros quadrados, além de lagos, parques, quadras, piscinas, academias, pista de bicicleta, pista de correr, churrasqueira, em suma, uma estrutura bem desenvolvida contrastando de maneira gritante com “vizinhos” que moram com suas famílias em barracos construídos com restos de madeira, isopor, latão e papelão, onde mal sequer cabem duas pessoas.

Qual o motivo para almejar ter tanto dinheiro e tanto poder? Isso é evolução? O que realmente está acontecendo com o mundo? Depois de atravessarmos tantos séculos de história, onde há registros que a humanidade tem pouco menos de 300 anos sem guerra, deveríamos esperar que a elevação da consciência humana tivesse aprendido a equilibrar as emoções, os sentimentos, porém estamos mais e mais confusos, alienados, distantes da compreensão da finalidade da nossa existência...

De fato, não resta qualquer sombra de dúvidas que estamos sendo destruídos pelo egoísmo enquanto ficamos preocupados com o lançamento do próximo IPhone, e falando neles, onde já se viu uma sociedade beneficiada pela tecnologia que cresce em ritmos acelerados, onde esse tipo de aparelho, uma ferramenta para aprimorar o contato social (Graham Bell que o diga), acaba, ironicamente, servindo de barreira para esse propósito quando fingem que o estão usando para evitar exatamente esse tipo de proximidade ao se deparar na rua, ou qualquer outro lugar, com alguém que acreditam ser inconveniente?

É certo que receberemos a alcunha de “a era da incoerência”, e isso, claro, não me surpreenderia.

Inspiro e expiro sem pressa e em seguida, num movimento hercúleo, olho para o céu, agora coberto por matizes vibrantes de vermelho e laranja. Está anoitecendo.

Por que, cargas d’água, eu estou me preocupando com um futuro anos-luz de distância, do qual, sem sombra de dúvidas, não farei parte, insistindo em examinar ideias sobre a natureza do homem, os sistemas sociais, os princípios éticos? Por que não posso ser como a maioria dos adolescentes, focados em saturar à exaustão qualquer tipo de sofrimento, insistindo em uma melancolia sem sentido, dramas sem pé nem cabeça, conflitos existenciais pontuados de angústia, tristeza, irritação e incapacidade?

Afasto-me do vidro da janela e deixo os ombros caírem ao passo que desvio o olhar do céu para estacioná-lo sobre as costas das duas poltronas vazias à minha frente. Todos os músculos do meu corpo estão gritando. É sempre assim quando o meu nível de estresse está me levando à beira de um ataque de nervos... Preciso de alguns segundos para colocar minha mente em ordem... Merda. Por que o Draco não dá sinal de vida?

Cruzo e descruzo os braços em questão de segundos enquanto respiro fundo até começar a tamborilar com os dedos no apoio da poltrona, para, então, voltar a mirar o céu à procura de algo que não sei exatamente o que pode ser. Se existe alguma espécie de anjo ou entidade que seja responsável em monitorar os olhares suplicantes dos adolescentes que vivem na Terra, certamente ele ou ela encontrará nas janelas da minha alma não os reflexos do espírito de um jovem de 17 anos, mas os de um ancião amargurado que completou o percurso de sua existência carregando a plena certeza de que tudo o que fez foi em vão...

Afasto novamente os olhos do firmamento e os aterrisso sobre as mãos, agora espalmadas em cima de cada uma de minhas pernas, ao mesmo tempo que inspiro todo o ar a minha volta com muita força, pois quero arrebentar os meus pulmões.

Li alguma vez, em algum lugar, que a adolescência é como uma massa de bolo que ainda não está pronta, que gruda nos dedos, na palma da mão, na parede, em tudo, e que a infância é uma espécie de sono profundo, uma dimensão diferente, e que ao sairmos dela despertamos dentro dessa meleca toda, onde ficamos grudados, lutando bravamente para nos libertar... É. Essa metáfora gastronômica não me deixa dúvidas de que na verdade sou, sim, um adolescente como todos os outros, necessitando desesperadamente de ajuda para enfrentar os desafios desse período de transição para a vida adulta.

Minha cabeça vai para trás depois de um solavanco que o ônibus dá e instantaneamente, numa sequência de puro movimento e reflexão, ação e reação, consigo evitar que meus óculos criem asas. Em que liquidação esse motorista conseguiu a sua carteira? Alguns passageiros começam a reclamar em voz alta, principalmente aqueles que já estão de pé, prontos para tirarem o pai da forca ou se preparando para disputar uma ultramaratona assim que saírem deste ônibus. Não posso deixar de achar graça com o provável susto que levaram...

O meu celular começa a vibrar. Whatsapp chegando... Draco!... Precisa ser ele... Deus faça que seja ele.

De um modo arrebatado, enfio a mão esquerda no bolso da calça jeans, e apesar de todos os meus esforços ela acaba empacando enquanto o telefone continua a vibrar. Decerto Draco deve estar enviando várias mensagens... Começo a xingar mentalmente todos os palavrões possíveis e imagináveis que eu conheço ao passo que estico a perna na direção do corredor do ônibus para que a infeliz abertura do bolso da calça seja liberada, mas o máximo que consigo é tocar o celular com a ponta dos dedos, já que o miserável acaba escorregando para o fundo e estacionando por lá no modo horizontal. Se alguma coisa puder dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira possível. Merda. Merda. Merda. Eu vou ter uma tendinite se continuar com esse malabarismo e logo depois um infarto do miocárdio.

A Lei de Murphy realmente rege o universo, penso enquanto puxo o ar com violência (mais uma vez) para dentro dos pulmões ao mesmo tempo que meto a mão no bolso novamente, mas dessa vez como se minha vida estivesse por um fio e dependesse única e exclusivamente desse gesto para que eu continuasse a existir sobre a face da Terra. Outros tantos palavrões passeiam pela minha mente e, por fim, consigo resgatar o famigerado telefone, que a essa altura do campeonato já se calou ao passo que meu coração dispara enquanto o trago para perto do rosto e por pouco não o deixo cair no chão...

NÃO POSSO ACREDITAR!

Precisamos nos falar com urgência.

Dá seu jeito.

Vou precisar da sua ajuda.

Consegui, dessa vez, bolar um plano infalível para reconquistar o Draco.

Me espera amanhã entre o intervalo do segundo para o terceiro tempo na saída do corredor para a sala de música.

Bjs, lindo, e não me deixe esperando.

Encaro a tela do Whatsapp soterrado pela incredulidade. Todo esse frenesi, todo esse esforço pra isso? Pra me deparar com mensagens da Fleur? Balanço a cabeça, reviro os olhos e depois de tornar a ler o que a Barbie fake escreveu, respondo com um "OK", muito a contragosto; sei que se não fizer isso, enviar qualquer retorno, ela irá me torrar o que resta da paciência.

Quem poderia prever que um dia eu veria a patricinha do HOGWARTS engolir o próprio orgulho? Justo ela, que antes de namorar o Draco, jamais me dirigiu uma palavra sequer, aliás, um gesto típico da sua arrogância, afinal, Fleur, assim como suas amiguinhas, nunca dirige a palavra a qualquer outro ser humano que não faça parte do seu mundo cor de rosa perfeito, cuja ordem do dia (de todos os dias) é “não estou aqui para agradar ninguém”.

Como o Draco conseguiu namorar essa falsiane mimada e consumista? Até hoje me pergunto o que ele teria visto nela além da sua beleza superficial, da sua pseudoperfeição e da sua autoestima tão frágil como um cristal... Desde que me descobri apaixonado por Draco, volto a afirmar e sem o mínimo pudor, vê-lo com uma garota e ouvir suas confissões a respeito de cada uma delas não me faz muito bem. Na verdade não me faz bem e ponto. Mas daí ter que testemunhar sua felicidade ao lado do diabo veste Prada por dois longos meses, foi uma prova de fogo muito, muito injusta, quase uma penitência. Agora eu sei de verdade o que o Hércules passou quando precisou dar conta daqueles doze trabalhos. Ainda sinto arrepios só de lembrar o olhar de Fleur abarrotado por uma sensação de vitória plena e absoluta por ter Draco ao seu lado ao mesmo tempo que me jogava na cara, silenciosamente, que eu não tinha outra escolha a não ser tolerar sua presença.

Estico o braço esquerdo até minha mochila, que a essa altura do campeonato está mais que jogada na poltrona ao lado, e depois de abrir um dos bolsos que fica numa de suas laterais, atiro o celular dentro dele e em seguida assumo uma postura ereta sobre o meu assento e cruzo os braços.

Como eu desejei com cada fibra de cada um dos meus músculos que o meu amigo tivesse sido uma mera conquista para a Fleur, resultado de alguma aposta absurda, dessas que só vemos em filmes, porém nunca consegui descobrir nada parecido, e caso tenha sido essa a razão do súbito interesse dela por ele, o tiro lhe saiu pela culatra... a merda é que eu também acabei sendo atingido.

Dois meses… Até que durou muito.

Descruzo os braços, levo a mão direita à altura da nuca e inclino o pescoço levemente para trás e em seguida endireito-me novamente sobre a poltrona.

Por que Deus, por que fui ter pena dessa garota pedante e intragável? A raiva e o desprezo que sinto por Fleur deveriam ter sido mais fortes, ter saltado à frente do meu coração mole, me impossibilitando de aceitar seu pedido, pedido não, sua súplica para ajudá-la a tentar ter o Draco de volta depois que ele lhe deu um pé na bunda, há quase um mês. Ela não foi a primeira que assisti se desesperando, chorando, confusa, querendo voltar no tempo e fazer tudo diferente, se perguntando onde foi que errou, se autoflagelando, insistindo na ideia de que poderia continuar a fazer parte do mundo do meu amigo enquanto ele seguia curtindo a vida, mas, lá no fundo, por mais que eu não queira, preciso reconhecer, ela foi a primeira que me fez recordar o quão atordoante pode ser a dor da rejeição, uma dor pintada a dedo e que reflete sobre a gente toda vez em que nos olhamos no espelho até o instante em que conseguimos enterrá-la...

Olho para baixo depois que retiro a mão direita de trás da nuca e fico observando o estofado da poltrona que está no espaço entre as minhas pernas.

O Lockhart... Será que ele continua agindo como uma aranha, lenta, cruel e perversa, sequioso em atingir seus propósitos, deixando em casa mulher e filhos para se aproveitar de garotos ingênuos, explodindo de hormônios e ansiedade sexual, para usá-los e depois descartá-los, pouco se importando se os fará sofrer, se irá deixá-los desorientados, fazendo com que se sintam ser de lugar nenhum? Fico pensando se as pessoas (se o Lockhart) seguissem o que Mário Quintana disse a respeito de promover e incentivar os sentimentos de paixão no outro, se haveria menos pesar: “nunca diga “te amo” se não te interessa. Nunca fale sobre sentimentos se estes não existem. Nunca toque numa vida se não pretende romper um coração. Nunca olhe nos olhos de alguém se não quiser vê-lo se derramar em lágrimas por causa de ti. A coisa mais cruel que alguém pode fazer é permitir que alguém se apaixone por você quando você não pretende fazer o mesmo”.

Reviro os olhos ao mesmo tempo que busco ignorar o resquício de incômodo que o futuro cunhado da minha irmã Hermione ainda consegue me fazer sentir. Graças aos céus, águas passadas não movem moinho e pra falar a verdade já tinha até me esquecido que ele será um dos padrinhos do casamento dela, no sábado...

Dou de ombros e volto a olhar para as costas das poltronas vazias à minha frente. Um problema de cada vez, e nesse momento preciso resolver a “questão Fleur”. Eu realmente não sei qual de nós dois está com a autoestima mais do que soterrada, entretanto um erro não pode justificar o outro, por mais empatia que eu tenha sentido com sua “sofrência”. Definitivamente alguém precisa retomar o centro da razão e do amor próprio nessa história toda, e eu não tenho a mínima vocação para encarnar Cyrano de Bergerac, que foi capaz de se sacrificar para que o amor de sua vida fosse feliz com outra pessoa, ainda mais se essa outra pessoa for a Fleur, e no frigir dos ovos, se tudo isso não for suficiente, não posso esquecer que nas últimas três semanas venho traindo a confiança do meu melhor amigo.

— Jovem. Todos já desceram.

Levanto os olhos na direção da voz grave que recai sobre mim. É o condutor do ônibus, parado no corredor, com as mãos na cintura, me encarando como se eu fosse um completo estranho, uma ameaça em potencial, um homem bomba prestes a explodir tudo à minha volta.

 


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