PS: talvez eu seja diferente escrita por Maga Clari


Capítulo 2
A luzinha interior


Notas iniciais do capítulo

Vocês pensaram que não teria capítulo novo hoje?
Pensaram errado rs



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Outro dia, escutei uma conversa que não gostei nem um pouco. 

Era minha mãe brigando com meu pai na cozinha. Na verdade, mais do que isso. Era minha mãe apontando uma colher de madeira na cara de meu pai, que gritava com ela.

Pai: isso só pode ser culpa sua!

Mãe: culpa minha?! Você já me viu trazer Cole para cozinha? Ou para o clube das esposas? O senhor não-tenho-culpa-de-nada nunca poderá desviar a sua irresponsabilidade para cima de mim. É você que não cuida dele como deveria e esquece de fazer vista grossa com essa história aí de artes.

E então, veio o som de um tapa.

Encolhi-me, assustado, na parede que os separava de mim, criança intrusa no corredor que dá acesso à sala de visitas. 

Não quis ficar para ouvir. Disparei correndo pela porta da rua e procurei qualquer lugar no bosque, o mais escondido possível, para chorar. Meus pais já tinham percebido. Que eu era diferente. Antes mesmo que eu entendesse o que se passava comigo, eles já sabiam. A pior parte nem era essa. Mas perceber que isso era errado, pecaminoso, crime de imoralidade, talvez. Uma aberração, aos olhos de Avonlea.

Pelo menos, foi isso que o padre falou quando fomos à missa, alguns dias depois. Ele não falou abertamente assim comigo, mas eu sou esperto o bastante para entender nas entrelinhas. A conversa foi assim:

Padre: ao homem cabe a força física, força de trabalho. Arar a terra, plantar, cultivar, colher. Cuidar do gado... Matar, se for preciso. Dar um lar de fartura para sua família. Não deixar que sua mulher e seus filhos passem necessidades. Um homem que não trabalha, certamente não poderá identificar-se como homem. Mas uma criança ou inválido.

Eu: mas, Padre, e os homens das ciências artísticas? Da Vinci, por exemplo. Ele criou obras incríveis!

Padre: tenho certeza absoluta que Da Vinci sabia usar um machado ou ancinho.

Então, o padre sorriu para mim e bagunçou o meu cabelo antes de se levantar.

Padre: por que não entramos num acordo aqui? Você ajuda seus pais com a fazenda e a igreja com a restauração?

Realmente era uma proposta interessante. Painéis, tinta, argamassa... Talvez fosse esse o meu tipo de trabalho. Talvez não fosse assim, tão ruim. Por isso aceitei. Tudo bem, não foi por isso. Eu só estava pensando alto. Pensando em, quem sabe, eles pudessem me deixar trabalhar no cenário natalino de nossa tradicional peça de teatro. 

 Não é que eu seja assim, tão ambicioso. É que eu gosto de pintar. Desenhar. É o que eu sou. A única coisa que consigo utilizar para me sentir pertencente a Avonlea.

Do mesmo modo que Anne e Gilbert gostam das palavras, eu gosto das tintas. Mas, já que entramos nesse assunto, esqueci de mencionar o concurso de soletração. Parece que Gilbert está com medo de perder seu posto de primeiro da turma para essa novata espalhafatosa. 

E apesar de gostar muito dele, precisamos todos admitir que é bem provável que ele perca este ano. Não porque Anne seja melhor do que ele, mas porque já percebi que Gilbert anda meio estranho. O brilho em seus olhos verdes sumiu. O sorriso dele anda murcho, quase forçado. Até a empolgação que ele tinha foi embora, sem explicação lógica.

Notei que a mudança em seu humor tem sido gradativa. Algo pode estar acontecendo com ele, mas ninguém saberá até a bomba estourar. Sabe por quê? Gilbert gosta de parecer o herói da turma, o inatingível, o sobre-humano.

Mas até os heróis possuem fraquezas. E esse dia sempre chega. O dia em que precisamos de nossos amigos, para que eles nos salvem. Ao contrário, toda essa arrogância só trará infelicidade e sabe-se-lá mais o quê.

Quando a gente perde nossa luz, é isso que acontece. Tudo vai embora e começamos a esgotar nossa fonte de energia. Principalmente nossa força de determinação.

Uma pena isso, Gilbert.

Se pelo menos você confiasse em mim, eu poderia confortá-lo.


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