Cara ou Coroa escrita por Phanieste


Capítulo 4
Bête Noire




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Ainda que tivesse demorado a adormecer, Hermione acordou descansada e resoluta em encontrar uma saída para a situação em que se encontrava. A primeira coisa a fazer era encontrar Dumbledore e contar sua situação por cima; ele era brilhante e conhecia diversas pessoas especialistas em áreas diversas da magia.

 A segunda tarefa necessária era lidar com a situação de certo Lord das Trevas mirim. Pelo que pôde concluir, tudo o que deveria fazer é minimizar os possíveis danos causados. Parar de ser rude, para não chamar atenção desnecessária; lidar com ele no trabalho da maneira mais adequada possível: agradável o suficiente mas sem ser exatamente amigável, nada muito memorável. Mais que tudo, tratar a questão das Relíquias da Morte da mesma maneira que a maioria dos bruxos sensatos lidariam: como um conto infantil.

Levantou-se antes das outras garotas para se arrumar com mais paz. Quando voltou, porém, as meninas já estavam acordadas. Uma das garotas, que ela conhecera no dia anterior através de Septimus, se aproximou.

— Hermione, você está melhor? 

— Estou, obrigada. — Procurou em sua mente o nome da menina. Sorriu, tirando um pó imaginário da roupa, envergonhada por não ter certeza. — Druella, não?

— Sim, sim! Druella Rosier. Já estou indo tomar café. Vamos juntas?

Hermione acenou e desceu com ela até O Salão Principal. Druella falava bastante da sua família, como era a primeira Grifinória numa família de sonserinos e corvinos, e sobre o parente distante que era um aborto e que a família tentava esconder. Passou o café da manhã mantendo uma conversa amigável e, principalmente, não fazia muitas perguntas sobre o passado de Hermione. Quando o Septimus chegou ambas estavam rindo de alguma bobagem. 

— Então a dona aí teve um bom primeiro dia destruindo corações? — Sua voz carregada de malícia e sua face com um bom humor sugestivo. Hermione sorriu amarelo, não sabendo bem do que se tratava e esperou que ele continuasse. — Callidora Black estava completamente arrasada que a garota nova tinha chamado a atenção do monitor chefe, que eles ficaram de cochichos durante a aula de Runas Antigas… Cedrella me disse que, principalmente, Calli está chateada porque ela iria ser a dupla dele, mas não pode mais.

— Não tem um único pingo de verdade, isso que você falou… — Ela ainda estava surpresa e um tanto enojada… Aquele era Voldemort! — Para começo de conversa, todo mundo da sala tinha dupla, menos ele, e só por isso somos uma dupla. Se quiser fala para ela que podemos trocar de parceiros, eu não me importo e inclusive incentivo. 

— Ela tentou trocar, algumas vezes já. Ontem foi pedir, novamente,  para que ocorra a substituição. Ele não quis. 

Hermione revirou os olhos e ignorou veementemente qualquer outra alusão a certo ser. Talvez ela tenha procurado o rosto dele na mesa da sonserina e só talvez tenha visto ele olhando para ela também. Mas não permitiu que sua mente vagasse sobre a imagem dele ou o que isso significava. Seu plano era falar com Dumbledore e ir para casa. Foi para as aulas como de costume, respondeu perguntas e ganhou pontos para sua casa. Depois do jantar, foi até o escritório do Professor Dumbledore. 

Bateu na porta suavemente e Dumbledore a convidou para entrar. Ela prendeu o ar ao ver o escritório dele tão diferente do que ela esperava. Esse homem era uma pessoa totalmente diferente do Diretor que ela conheceu, não apenas por ser outra sala ou não ter outros objetos relacionados ao cargo de Diretor. Simplesmente não era excêntrico o suficiente, era um escritório bruxo padrão. Hermione não deixou de se sentir um tanto decepcionada: ela buscava similaridades com seu mundo na antiga Hogwarts, mas quando parecia encontrar algo reconfortante, isso fugia de suas mãos. 

— Senhorita Granger, espero que esteja tudo certo na sua estadia em Hogwarts. — Ambos se sentaram e ele conjurou um conjunto de chá. Enquanto tomavam, ela criou coragem o suficiente para falar. 

— Professor, eu preciso de sua ajuda. Eu não ia falar nada e resolver tudo sozinha, mas estou desesperada. — Ela respirou uma, duas vezes antes de continuar. — Eu vim de um lugar muito distante, não cheguei aqui porque quis… Foi tudo um acidente. Sinceramente,  nem sei o que aconteceu, mas como vi que estava perto de Hogwarts, resolvi pedir abrigo. Mas eu não pertenço aqui, quero voltar para casa. Já que o senhor é muito reconhecido por suas habilidades mágicas, vim pedir auxílio. Creio que se não puder me ajudar ninguém poderá. 

— Entendo, suponho que a senhorita aparatou por acidente. Precisa de aulas de aparatação para voltar a sua comunidade ou de uma chave de portal. Também há a rede flu… Mas devo perguntar se você tem alguma perspectiva de abrigo, mesmo com a situação dos seus pais? 

— Se eu conseguir retornar para de onde eu vim, terei todas as minhas necessidades atendidas. Mas nenhuma das soluções que o senhor me propôs são de alguma ajuda. Não creio que fui clara na hora de expressar a natureza da minha viagem. Eu sei aparatar, mas nem se tentasse eu conseguiria voltar para casa. 

Ele não falou nada por um tempo, Hermione forçou-se a tomar o seu chá enquanto esperava que ele entendesse. Depois de um certo momento, Dumbledore colocou sua xícara sobre a mesa e limpou a garganta antes de voltar a falar. 

— Se estou entendendo o que quer dizer, temos um problema seríssimo. Cada segundo — colocou uma grande ênfase na palavra — conta. Explique-me o que aconteceu com o máximo de detalhes possível. 

— Eu estava indo em direção ao lago aqui mesmo no colégio, agora não me lembro exatamente o porquê, apenas isso. Quando dei por mim, estava sendo comprimida até me encontrar neste novo mundo. 

— Então não foi por querer e, aparentemente, não foi utilizado nenhum objeto em específico. Isso nos deixa com duas principais hipóteses: alguém poderia ter te enviado aqui, com que propósito já não sei, se para bem ou para mal só os dias poderão nos dizer, ou também pode ser um acidente natural, como podemos colocar.

— O senhor saberia dizer se fui enviada para cá através de magia das trevas? Caso não, o que quis dizer com acidente natural? A questão aqui é claramente mágica, ao meu ver. Tem que haver um bruxo ou uma espécie estranha de Vira-Tempo corrompido. 

— Para falar bem a verdade, posso afirmar com certeza de que não há traços de feitiços obscuros em você. Já lutei contra diversos bruxos que utilizavam tais magias, sei reconhecer pelo cheiro. — Dumbledore riu sem graça.

Hermione se perguntou se era pelo cheiro mesmo ou apenas expressão. Mais que isso, percebeu que ela própria já tinha duelado com sua própria cota de bruxos sombrios e ainda assim não conseguia identificar traços de artes das trevas. Poderia ser algo relacionado a sua própria falta de experiência maior, mas algo a dizia que Dumbledore devia parte de sua capacidade aos tempos em que se relacionava com Grindelwald.

— Sobre acidentes naturais…  A magia faz parte do nosso mundo, não concorda? Tem os seus próprios ecossistemas, as suas propriedades particulares, mas ainda assim é natural. Veja bem, assim como os trouxas utilizam as forças da natureza que eles conhecem, tem o exemplo da eletricidade, nós bruxos utilizamos as propriedades mágicas com que temos contato. Um trouxa pode acender uma lâmpada com energia elétrica, mas ainda assim há o raio que dificilmente ele pode controlar. Nós usamos um Vira-Tempo, de acordo com nossa necessidade, mas a magia temporal ainda está solta pelo mundo em sua forma bruta. Não vou descartar a possibilidade de você ter sido enviada por alguém, mas irei pesquisar arduamente na área de acidentes temporais. 

— O senhor sabe o que pode acontecer? Digo, sabe se é possível eu retornar para a realidade de onde eu vim? Eu sei que em alguns casos pode ser que tudo já tenha acontecido e eu estou apenas seguindo um desvio padrão, mas também sei que algumas pessoas deixaram de existir… 

— Este é um ramo particularmente complicado, algo como a nova física dos trouxas…

— Mecânica quântica? 

— Sim, sim! Veja bem, quando o assunto é magia temporal, ou profecias, se me permite o adendo, é muito difícil entender os processos usados pela magia para alterar a realidade. Só o fato de sabermos da existência de uma profecia interfere com seu resultado. Podemos aceitá-la, ainda que não seja exatamente de acordo com nossa vontade, ou negar sua validade e agir de maneira com que ela não aconteça. Tem esse autor, bastante conhecido no campo de imprecisões mágicas, Joseph Maxwell, muito amigo meu; ele propôs que quando há o fator humano, é como se o universo jogasse uma moeda… — Dumbledore pegou então um galeão e o jogou para cima, a moeda rodou em volta de si algumas vezes antes de desaparecer em fumaça. — Cara ou coroa, dependendo o resultado, mudamos o nosso destino. Se não, tudo flui como era para ser, a linha do tempo continua a mesma, a profecia acontece… E só podemos saber se nossas ações influenciaram o resultado depois que ele acontece.

— Eu não entendi o porquê de “fator humano”, isso não é só mais uma desculpa para explicar o porquê de algumas profecias não funcionarem? E como poderia ser analisadas viagens que não envolvam o bruxo ou bruxa?

— Profecias não envolvem apenas seres humanos, isso é visível principalmente em predições sobre desastres naturais… Elas sempre são realizadas. 

— E viagens no tempo? 

— São observados fenômenos temporais em alguns objetos e seres… Por exemplo há registros de um espelho que voltou para um tempo muito distante, anterior à existência de espelhos, e com o feitiço certo, você consegue uma projeção de tudo o que o espelho já viu, inclusive todas as pessoas espantadas com a existência dele e as intrigas que ele causou. Se você procurar com a pessoa certa, pode ver uma seleção dos melhores momentos do espelho em questão. Você sabia que no Departamento de Mistérios há uma sala apenas com espelhos? 

Hermione sorriu com a ideia. A conversa estava agradável mas ela não conseguia deixar de se preocupar com a possibilidade de não conseguir voltar para o seu tempo. Ela levantou e se dirigiu à porta, lembrando de se despedir.   

— Obrigada, Professor, pelo seu tempo. Agora eu preciso ir e suponho que o senhor também esteja ocupado. 

— Não hesite em me chamar, caso necessário. Eu lhe informarei quando tiver informações sobre o assunto. 

Ao Dumbledore abrir a porta para ela sair, encontraram um Tom Riddle perigosamente perto da porta. Hermione olhou para o Professor preocupada caso Riddle tenha ouvido algo, mas Dumbledore não pareceu demonstrar nenhum desconforto. 

— Boa noite, senhor Riddle. 

— Boa noite, Professor. Senhorita Granger. 

Ela apenas acenou como resposta. 

— Professor, sinto muito vir lhe incomodar. Septimus Weasley, monitor da sua casa, enfeitiçou uma mesa para que ela saísse galopando. Aparentemente tudo começou na própria Torre da Grifinória, mas a mesa escapou e está impedindo a passagem de um corredor com acesso às salas. Duas lufanas estão presas na sala de feitiços. — Riddle ainda mantinha sua postura arrogante ao falar, mas parecia que perto de Dumbledore ele era mais rígido que o normal, quase beirando o mecânico. 

O Professor Dumbledore trancou seu escritório e foi se dirigindo ao local onde era necessário deixando ambos para trás. Hermione não pôde se impedir de sorrir sobre o assunto da mesa; Septimus era uma das pessoas favoritas dela nesse tempo. Riddle notou. 

— Acha engraçado duas garotas presas por causa de uma brincadeira idiota? 

— Definitivamente, não. — Hermione estava com um rosto sereno, a memória do sorriso ainda marcada em sua bochecha.— Mas uma mesa galopando pelo castelo, por favor! Tem certeza de que não é minimamente divertido?

— Creio eu que a diversão acaba quando fere alguém. 

Ele diz isso de maneira altiva e Hermione engole a risada cruel que iria dar como resposta. Desconfortável, acelerou o passo até quando julgou que estabelecera uma distância necessária.

Quando porém, virou para entrar num corredor viu que ele ainda estava atrás dela. O maldito andava mais quieto que um fantasma, pensou. Também chegou à conclusão que preferia uma horda de fantasmas lhe perseguindo do que ele. 

— Não é muito educado sair sem se despedir. 

O bastardo acelerou para acompanhá-la. Hermione respirou fundo, lembrando-se que ela não deveria criar uma grande rivalidade com ele para não atrair atenção no futuro e abalar a linha do tempo. 

— Desculpe, não queria ofendê-lo. Agora, se me permite, vou à biblioteca. 

— Não ofendeu. — Deu de ombros. — Que coincidência! Também estou indo para lá, até porque temos que discutir o trabalho de Runas Antigas.

Caminharam em silêncio até a biblioteca. Hermione pegou um livro sobre a história direitos dos sereianos perante a sociedade bruxa. Estava num parágrafo sobre as Guerras Marítimas da Cornualha quando Riddle sentou-se à sua mesa. Ele trazia muitos livros, empilhou-os de maneira alinhada e pegou o primeiro da fila. Hermione revirou os olhos, pensando que tal nível de organização era desnecessário e mais demonstrava arrogância que talento ou competência.     

Ela voltou sua atenção para a questão dos sereianos: o livro relatava sobre o abate de um navio trouxa e seria muito interessante se ela conseguisse prestar atenção no que estava lendo e não na pessoa mordendo o lábio e franzindo a testa ao lado. Hermione perdeu todo o autocontrole que tinha. Ela não iria ficar ao lado do futuro Lorde das Trevas enquanto ele franzia a testa e fingia que era gente, pensou. Estava levantando para se retirar mas Riddle a interrompeu. 

— Temos que falar sobre a obra que vamos traduzir. — Ele mal tirou o rosto de seu próprio livro.

— Na próxima aula a gente conversa sobre isso. 

— Não temos porque esperar, você já está aqui. Vai ser rápido. De maneira geral, eu não quero mais usar os contos do Bardo. Eu acho que o livro é muito tendencioso na questão pró-trouxas e não apoio isso. 

Hermione não pôde deixar de sorrir aliviada. Riddle longe do Conto dos Três Irmãos era exatamente o que ela necessitava, ao menos uma notícia boa. 

— Tudo certo, e por falar nisso… Ouvi que Callidora Black queria ser sua parceira no trabalho. Não me oponho a uma troca. — Ela retornou a sentar, considerando que o melhor era resolver todas as questões pendentes de uma única vez.  

— Mas eu sim! A Senhorita Black não iria me ser útil em nada. Na última vez que tentamos trabalhar juntos, ela fez o possível para acabar com minha concentração. Ao menos com você tenho a certeza de que não terei que fazer tarefas extras: já sou monitor, estou estudando para 11 NIEMS, não posso me dar ao trabalho de carregar outra pessoa nas costas. — Havia algo de errado em suas palavras, Hermione não sabia dizer o quê. Ela bem sabia que ele tinha tendência a realizar tudo sozinho. Só conseguiu supor que ele tinha um prazer sádico ao irritá-la. — Se o seu problema for sobre fazer os contos, faremos os contos. Acho até surpreendente que você apoie tal discurso depois do que aconteceu com seus pais. 

Tanto ele como Hermione pararam por um momento, ela surpresa pela fala e ele aparentemente também. 

— O que você pensa que aconteceu com meus pais? — disse, limpando a garganta. 

— Você é britânica e não tem nenhum relato de que Grindelwald atacou na Grã-Bretanha recentemente. Considerei que seus pais tiveram padecido na Guerra. — Agora ele estava visivelmente desconfortável, como se pudesse enxergar qual o grande erro que cometera. — Tenho um infeliz contato com a Guerra dos trouxas, pensei que você também os enxergasse como ameaça. 

  — Minha mãe era bruxa, mas ela casou-se com um arqueólogo trouxa. — Hermione começou a contar a estória. Ela tinha-a repassado tantas vezes em sua cabeça, que agora ela falava com uma naturalidade que assustava até ela própria. — Não sei dizer se ela veio de uma família conhecidamente pura, mas eles cortaram absolutamente todas as relações com ela. Meus pais nunca me contaram sobre a vida anterior da minha mãe, ainda que eu tivesse algum contato com o ramo paterno da família, trouxa. Minha mãe me educou em casa, a gente viajava pelo mundo com as pesquisas do meu pai. Em dado momento, quando comecei a poder estudar de maneira mais autônoma, minha mãe começou a trabalhar com meu pai em suas pesquisas. O ramo de estudo? Interações comerciais entre comunidades bruxas e trouxas. Alguns seguidores de Grindelwald descobriram isso, estávamos em alguma parte da Europa Ocidental. Invadiram a casa que tínhamos alugado, mataram meus pais e incendiaram tudo. Eu, seja por sorte ou azar, estava no jardim e lá me escondi. Mesmo assim, vi tudo. Não venha me dizer nada sobre linhas pró ou anti trouxas… 

Hermione não tinha precisado ir muito fundo para representar o trauma; ela, afinal, tinha perdido seus pais por causa da ideologia purista. Nunca conseguiram reverter o feitiço completamente, e eles jamais iriam lembrar de sua filha. No máximo, lembravam seu rosto e ficavam com dores de cabeça paralisantes. Sua mente a lembrou cruelmente que agora isso não era de tão grave importância porque eles ainda não existiam. Ao olhar para Riddle, porém, parou de pensar sobre sua família e se esforçou para não demonstrar satisfação ao ver a expressão contrariada que estava em seu rosto. O passado que ela planejara contar não parecia ter ponta solta alguma que pudesse comprometer sua real situação como viajante do tempo. Supondo que tudo ocorresse de acordo com o esperado, Riddle contaria para seus seguidores o que ouvira de maneira triunfante sobre tal assassinato da suposta mãe amante de trouxas, e estaria tudo certo com relação ao passado dela para os alunos que mais se importariam com a linhagem dela. No máximo a incomodariam um tanto nas aulas, mas mesmo o status de mestiça a protegeria de perseguições maiores. 

— Sinto muito por isso, mas ainda mais agora sinto vontade me explicar. Não compactuo em nada com os seguidores de Grindewald, ainda que não siga uma linha pró-trouxas. Acredito que devamos procurar garantir mais a segurança bruxa, e nos prepararmos melhor para um possível confronto. Não sei se você acompanha o que está acontecendo no mundo trouxa, mas a situação está caótica. — Ele fez uma pausa, ajeitou o próprio cabelo e voltou a gesticular displicentemente enquanto falava. — Os trouxas se destroem sozinhos, matam iguais, é só ver o que o antissemitismo já fez. Infelizmente, geraram um poder destrutivo grande demais para serem ignorados. Por isso, não defendo que a comunidade bruxa confraternize com trouxas, pois o risco de exposição é muito alto. O rádio, por exemplo, poderia facilmente denunciar uma comunidade bruxa a um número imprevisível de trouxas.

Hermione ajeitou um desalinho no uniforme, desconfortável. A postura dele ao falar era calma demais, leve demais, em momento algum ele falava assim. Pelo que teve contato, ele costumava ser arrogante, desinteressado ou artificialmente polido, numa espécie de charme manipulador, mas não tranquilo. Ela lembrou que ele vivia num orfanato trouxa em Londres, e se perguntou se ele tinha estado lá, sem magia, durante um bombardeamento. Não que fosse desculpa, não, tudo que Lord Voldemort fez era indesculpável. Mas talvez isso explicasse a postura relaxada: se ele tivesse tal contato com a guerra, provavelmente iria esconder dos bruxos para não demonstrar fraqueza, pensou.  

— Bem, eu creio que devamos ter relações melhores com trouxas. Você me citou tal possível perigo que eles poderiam representar. Mas vamos combinar que não somos exatamente indefesos, não é? Trouxas sofrem muito mais na mão de bruxos que o oposto;  pior ainda, eles nem sabem os perigos que nós representamos a ele. Quantos trouxas já não morreram nas mãos de Grindelwald sem nem saber o que estavam enfrentando? E qual a postura do Ministério? Mandar um obliviate e fingir que nada aconteceu. Com a pesquisa dos meus pais pude ver claramente que em sociedades onde ocorre trocas comerciais entre bruxos e trouxas os níveis de confrontos entre ambos quase zeram. — As pesquisas que ela tinha lido não eram dos pais imaginários dela, mas de um bruxo que as publicaria nos anos setenta, mas definitivamente não iria explicar isso.— Então eu sou a favor de relações abertas e amigáveis com a sociedade trouxa. 

— Não acredito que Hogwarts terá outra Carlotta Pinkstone!— Riddle riu.

— Quem? 

— Uma garota que estudava aqui uns anos atrás, ela levantava essa bandeira. Pouco depois de terminar o sétimo ano ela começou a fazer uns protestos contra o Estatuto Internacional de Sigilo em Magia. Ela fazia magias bem chamativas, como o Patrono ou levitar objetos, em praças trouxas — disse rindo. Quando Hermione percebeu que estava sorrindo, forçou a expressão a ficar séria. 

— O que aconteceu com ela?

— Primeiro tomaram a varinha dela.

— E depois? 

— Ela era uma bruxa razoavelmente talentosa em magias sem varinha… Ela retornou aos protestos.— Ele fez um suspense forçado, o rosto presunçoso. Deu de ombros. — Ela agora está em Askaban. 

— Merlin! Isso é absurdo! — Bateu ambas as mãos na mesa e as esfregou nervosamente no rosto, jogando o cabelo para trás. Como resposta recebeu um chiado reprovador de uma bibliotecária que ainda que não fosse Madame Pince, era tão ranzinza quanto. — Como pode contar uma coisa dessas rindo? 

Ela não precisou que ele respondesse; sua mente a lembrou que estava debatendo amigavelmente com Lord Voldemort. Engoliu o caroço da culpa que subiu-lhe até a garganta. Não esperou que ele respondesse. 

— Eu realmente preciso ir.

— Nós precisamos ir, você quer dizer? A aula de Astronomia começa mais cedo hoje. 

— Não, a aula de Astronomia é só quinta — interrompeu-se quando percebeu que estava pensando no seu calendário original. — Maldição! De qualquer forma, tenho que pegar o material. 

— Quer que eu a acompanhe? 

— Não, amigo. Você não quer mesmo me deixar em paz? 

— Quero mudar a imagem ruim que posso ter passado na enfermaria. Você parece desconfortável com a minha mera presença.  

Hermione suspirou, cansada da mesquinhez em que estava atolada. 

— Eu não estou muito acostumada com esse tanto de gente ao meu redor, está sendo um processo de adaptação difícil. Por favor, não faça isso ser sobre você. Com licença.  

Ela foi andando apressada para seu quarto. Enquanto pegava pergaminhos, penas e livros, chorou. Chorou porque era para a aula de Astronomia ser quinta, porque era para ela encontrar Luna Lovegood quando entrasse na sala, porque até agora não tinha recebido uma única carta do Ron e do Harry e também não iria receber. Sentou-se na cama e soluçou baixo porque ela tinha que lidar com Riddle, porque ela não sabia como poderia voltar para casa, porque o mundo como conhecia não dava certeza de estar lá quando voltasse. Porque ela já tinha dado tudo de si numa guerra  e agora sua própria existência estava em risco, não na forma da morte, mas corria o risco do próprio tempo se esquecer dela e ser como se ela nunca tivesse existido. Foi ao banheiro e enquanto a imagem do espelho a observava limpar as lágrima, perguntou-se o que mais poderia perder. 


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Notas finais do capítulo

Bête Noire: Besta negra, em sentido literal. Como expressão, pode ser utilizada como nêmesis, pior inimigo ou pesadelo, dentre outros significados.



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