Âmago da Meia-noite escrita por Shantalas


Capítulo 9
Magia Sombria


Notas iniciais do capítulo

Parte II de II



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— Um verme como você? Tentando me desafiar? Hahahahahaha!
A velha avançou na direção dele e Daniel ficou cada vez mais letárgico, sua visão desfocou e quando retornou passou a ver sua mãe. Estava branca como leite, magra, com as mãos e as pernas roxas, e manchas leves de tons esverdeados pelo rosto e pescoço. Os olhos dela estavam esbranquiçados e fora de foco, entravam no crânio deixando olheiras profundas. Um garoto da pele escura, da cor de Daniel, passou correndo por ele. Era mais baixo e idêntico, só que com a aparência mais jovem. Foi até sua mãe e a abraçou.
Daniel viu o garoto se aninhar no colo de sua mãe, encostando a cabeça na barriga, envolvendo-a com seus braços. A mulher não expressava nada, seus olhos estavam fixos e impassíveis. Um cheiro podre de carne em decomposição invadiu as narinas do garoto, então, ele sentiu o frio da pele de sua mãe e quando olhou para cima, observou que o queixo dela estava com um machucado roxo. Teve medo quando percebeu que era o jovem Daniel de dois anos atrás, apenas uma frágil criança.
— Mãe! – Chamou manhoso e a mulher olhou de cima indiferente – Faça cafuné em mim! – E maquinalmente ela estendeu a mão sobre sua cabeça e deslizou sem delicadeza pelos cabelos. Repetiu o ato várias vezes.
Um pânico crescente invade o peito do garoto, ele queria sumir daquela cena, queria apagar suas memórias, voltar no tempo ou deixar de existir. A angústia invadiu o peito, entalou em sua garganta e explodiu em sua mente. Então, achou que morreria e logo parou de respirar. Sentiu uma pressão na cabeça, forçou o ar pela garganta, mas foi inútil. Buscou seu pescoço e um par de mãos estavam lá, estrangulando-o. Viu sua mãe rindo por cima de seu rosto, os dentes mais arreganhados que o normal e os olhos saltados e insanos.
O som de uma gritaria, que se ouvia ao longe, aos poucos foi se aproximando. Reconheceu a voz de Kalifa e de Natanael. Seu pescoço doía, era impossível respirar e começou a ficar desesperado. A realidade se reconstruiu ao seu redor, Melanir apertava seu pescoço com uma força monstruosa. A garota sorria debilmente e seu olhar era maligno. Ela estava sentada na cama erguendo o garoto no ar.
— Pare com isso, Mel! Ele está lhe ajudando! – Kalifa dizia apreensiva em pé, ao lado da cama.
— Princesa pare! Vai matar o garoto! – O conselheiro gritava gesticulando nervoso – Princesa?! – Ao chamar por ela Natanael percebeu que não dava o menor sinal de entendimento, então, teve certeza de que estava em transe. Agarrou o braço dela para aliviar a pressão no pescoço do garoto, mas ao tocá-la afastou-se bruscamente e bateu as costas na parede, tropeçando por cima do baú.
O conselheiro gritou de dor e segurou sua mão como se estivesse machucada. Ficou sentado em cima do baú e escorado na parede, observando sua mão, procurando algum ferimento, mas não havia nada. Sem querer esperar para ver o que havia ocorrido, a princesa Kalifa agarrou o braço da irmã tentando liberar Daniel e soltou na mesma hora, dando um grito agudo e contido. O aprendiz de curandeiro balançava suas pernas inutilmente e tentava se libertar da prensa, mas logo sentiu suas forças se esvaindo e se mexia cada vez menos. Sua cor passava do vermelho ao roxo.
Sem saber ao certo como agir, o Duque saca sua espada, mas sua sobrinha Sol se joga em sua frente o abraçando e gritando para não a machucar. Cláudio parecia muito perturbado observando a cena, por um breve momento pareceu que ele teria coragem de atacar a princesa, mas logo reconheceu a loucura a largou a espada.
— Ela vai matá-lo! – Daniel ouviu o Duque afirmar. Sua vista começara a escurecer e seu corpo foi ficando dormente.
Melanir alargou o sorriso, algumas verrugas surgiram e sumiram em seu rosto, desfigurando sua face por um instante em uma mulher velha e horrenda. Daniel passou a observar tudo como se estivesse em um túnel, sentiu um frio como nunca havia sentido e um pássaro pequeno, do cocuruto negro, sobrevoou sua visão embaçada.
Em um obstinado ímpeto, Kalifa se atira contra sua irmã, saltando em cima do braço esquerdo dela, abraçando-o contra o peito e jogando habilmente a parte interna do joelho direito sobre o queixo de Mel, enrolando-se nela como uma cobra. Ignorando a dor que o toque dela causava com uma careta, ela cerra os dentes e põe a perna esquerda sobre o busto da irmã, esticando seu corpo para trás leva o braço que segurava junto. Daniel é liberado de um lado e o conselheiro o puxa para trás, agarrando o garoto.
Ambas as princesas caem sobre a cama, Mel dominada em uma chave de braço e balançando a cabeça violentamente. Kalifa estava ficando com as bochechas vermelhas, reprimindo um grito de dor, ela não suportava mais manter contato com sua irmã, mantendo o braço dela preso entre as pernas e agarrada ao antebraço.
Daniel buscava o ar em um som rouco, passando a mão pelas marcas vermelhas em seu pescoço, ele estava gelado como um morto e banhado de suor, tanto que sua camisa interna estava úmida. Natanael colocou ele sentado no chão e perguntou com preocupação:
— Você está bem garoto?
Era óbvio que não. Uma mistura conturbada de sentimentos borbulhava dentro dele e lágrimas de tristeza, frustração, angústia, desespero e ódio molhavam seu rosto. Ainda podia sentir um frio sobrenatural e a sensação de morte. Passou a mão pelos cabelos enrolados e negros tentando manter o que sentia em ordem.
Kalifa sucumbiu à dor lancinante e largou a irmã e relaxou. Gotículas de suor já se formavam em sua testa. Mel, possessa, rapidamente se coloca de joelhos e ergue as mãos para o pescoço da irmã que se esquiva rolando na cama até cair no chão de frente sem disposição para se levantar, mostrando um desgaste mental e parcialmente físico. Melanir se levanta sobre a cama e gargalha alto, histericamente.
O garoto aprendiz se levanta, e enxuga as lágrimas do rosto. Ele se concentra na pequena porção de ódio que sentia no meio de tantos outros sentimentos. Estava irritado consigo mesmo por se achar uma criança chorona. Então, fez o exato oposto do que seu padrasto lhe ensinara e, germinando com dificuldade a cólera dentro de si, sibilou "Gaien Omun van arien vain".
— O que vai fazer? – Natanael pergunta, espantado ao ouvir o sussurro.
Mais uma vez Daniel sente o calafrio gerado pelo poder da magia sombria e sua raiva multiplica-se dentro de si. Sentia ódio da princesa possessa, do conselheiro por implicar com ele, do Duque por não fazer nada, da princesa Sol por só chorar, do escudeiro Clauzor por ser irritante, de Kal por não estar lá para ajudar, de Jaborandi por não ter lhe ensinado o suficiente, do ancião por ter lhe enviado, do seu padrasto por ter destruído sua vida e de sua mãe por ter escolhido mal seu esposo e sentiu um rancor ainda maior por seu pai biológico, o homem que nunca esteve por ele.
Gritando em fúria, o rapaz se jogou de ombros nas coxas de Mel e os dois desabaram na cama. O rapaz força sua essência para o interior dela e vê a realidade se alterando ao seu redor ao ser puxado para dentro, mais uma vez o mar azul de tristeza estava lá. Sem perder tempo, Daniel aponta para baixo e uma ventania poderosa explode as águas para todo os lados. Sentindo o peito arder como se estivesse em chamas, ele voa até o mar e um tornado se forma ao seu redor, unindo-se à água e se transformando em um híbrido, um turbilhão. Percorrendo seu centro, de forma a não ser tocado por nada, Daniel prossegue até onde Mel se achava em sua forma fantasmagórica e frágil.
A bruxa estava em frente à princesa, uma forma esguia e negra, com bordas bruxuleantes, a feição mordaz e terrível sorrindo com poucos dentes. Ela debocha:
— Omun é meu refúgio, criança!
O aprendiz avança até ela em um rompante e a velha apenas aponta a mão aberta para ele e a fecha lentamente. Logo a ira cega-o e tamanho era seu descontentamento que se arranhou e gritou com todas as suas forças. Ele viu o alvo de seu ódio, um homem de meia idade usando um manto preto. Estava de costas para ele enquanto mexia em um cadáver nu de uma das garotas sumidas de sua antiga vila.
Um Daniel mais novo que o atual descia as escadas do subsolo, estava perturbado, como estivera nas ultimas semanas e então disse a seu padrasto:
— August, mamãe esta lá em cima de novo e não se mexe mais. Você pode fazer ela se mover?
Distraído e ocupado observando o interior do abdômen da garota morta, ele responde, áspero:
— Daniel, pelos deuses, você já tem poder o suficiente para reanimar sua mãe. Em vez de ficar brincando pegue um pássaro da gaiola para mim. Vou tornar este corpo um servo permanente, venha aprender.
O garoto se aproxima da mesa onde havia várias gaiolas com a Toutinegra, em vez de pegar o pássaro, segura uma lâmina que estava na borda da mesa retangular, próximo a outros objetos. Ele se aproxima por trás e levanta os olhos para observar as frágeis costas do homem que destruiu sua vida. Impassível, enfiou a lâmina no lado do rim direito uma vez e depois uma segunda vez.
O homem se virou sem entender, como se para ele fosse difícil de assimilar os acontecimentos e o garoto o furou mais duas vezes na altura do fígado e do diafragma. O sangue começou a se precipitar aos montes, August estendeu a mão para a cabeça de Daniel, mas não conseguiu perfurar seu escudo mental.
— Omun...
Ele tentou dizer e gemeu com a dor da faca lhe entrando e saindo da barriga, despencou de costas para a mesa do cadáver e caiu no chão sentado, Daniel furou sua garganta para se certificar de que não faria conjurações e passou a esfaqueá-lo incessantemente. Quando viu que já estava morto, o garoto se permitiu odiá-lo e perdendo todo o autocontrole passou a golpear com mais força, sentindo os impactos subirem por seu braço.
Já estava banhado de sangue e chorava quando terminou. Seu padrasto estava irreconhecível, apenas um corpo banhado de sangue e cortes. A Bruxa gargalhou. Sussurrando no ouvido do garoto ela diz:
— Mate os culpados pela morte de sua mãe, você é o próximo!
E Daniel sentiu tanto ódio de si mesmo que pensou que iria explodir. Ele sabia que não poderia continuar assim ou sua mente iria se estilhaçar e morreria por dentro virando um demente. Por isso procurou um porto seguro, uma proteção mental, mas não havia sentimento nem lembrança que pudesse usar. Pensou na Mata viva, mas estava com rancor demais de todas as pessoas ali. Então buscou por uma memória solitária.
Lembrou-se da floresta e das arvores que subia, da satisfação ao chegar ao topo. Vivenciou mais uma vez o dia que escalou a mais alta de todas as árvores, lá de cima se equilibrou por uma hora para ver o pôr do sol. O vento quase lhe derrubou, balançando o frágil galho sobre o qual estava e quando se recompôs, foi pego de surpresa pelo último feixe de luz do sol e sentiu-se bem. Sentiu que era imbatível, indomável e feliz. As nuvens ao redor da coroa solar estavam rosadas e os diversos tons do laranja ao vermelho distribuíam-se à vontade por todo o céu. Naquele dia, achou a paz que somente o colo de sua mãe lhe dera antes.
Fechou sua mente como nunca antes em uma poderosa proteção. Sentiu a cólera distante, como se fosse parte de um garotinho de 12 anos birrento que já não tinha espaço dentro dele, pois agora era um homem. O tornado de água ainda o circulava e podia sentir nele a soma de duas magias sombrias.
Yulma lançou um olhar de incredulidade e gargalhou imitando uma horrível voz de bebê:
— O papaizinho transformou a mamãe em um morto vivo foi? Que historinha triste.
— Ele não era meu pai.
Ao dizer isso Daniel comanda o turbilhão atrás de si e ele avança como uma serpente varrendo Yulma dali. A bruxa velha grita de ódio e é expulsa para longe, sendo removida em alta velocidade da mente de Mel, fazendo com que o castelo, a cidade e os campos passem por ela como borrões. Até encontrar a floresta e em seu meio uma clareira, no centro desta uma cabana de madeira e finalmente encontrar seu corpo que segurava o leitão pela orelha, agachada ao chão. Foi tão forte a entrada de sua alma que de forma sobrenatural foi arremessada por 3 metros batendo com sua nuca na parede de madeira. O pequeno leitão correu e se debateu em um canto da casa.
Yulma gritou de rancor e dor, as protuberâncias em sua face se multiplicaram, haviam tantas em seu nariz que se tornaram uma segunda pele, inchada e vermelha, sua testa ficou alongada e ganhou duas pontas obtusas. Ela se ergueu do chão ignorando o braço ferido e puxando dois tufos de cabelo branco com voracidade. Tamanho era o sentimento que fervia dentro dela que mordeu seu labo inferior arrancando um pedaço.
— Yulma? - Uma mulher bonita de cabelo negro, liso e sedoso, no auge de seus trinta anos, entra na cabana mancando de uma perna – Olhe, sou bela mais uma vez!
Yulma congelou, o sangue negro e espesso descia-lhe da boca e alguns dos cortes no braço haviam aberto e sangravam. A velha bruxa perguntou em um tom de voz incrédulo e bizarramente controlado:
— Onde está meu banho de beleza?
Sem graça e relutante, sua ajudante da um pequeno sorriso e responde:
— Eu...eu usei ele.
Yulma faz um gesto e, como se dedos mágicos envolvessem o pescoço de sua ajudante, ela é arrastada, se debatendo e sem conseguir respirar. Após isso desaba no chão na frente da bruxa.
— Yulma, por favor... – Sua parceira suplica cheia de medo.
A bruxa chama magicamente a faca engatada na parede ao lado da porta que voa até sua mão e diz para sua ajudante:
— Vai preferir ter morrido quando eu terminar.
E crava a ponta da faca no canto do olho da mulher.


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