Âmago da Meia-noite escrita por Shantalas


Capítulo 10
Conversa com Claus


Notas iniciais do capítulo

Parte I de II



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Um garotinho moreno corria desesperadamente em um corredor, o chão estava molhando e seus pés espalhavam água para o alto a cada passada. Ele olhou por cima do ombro e viu uma sombra crescente que se aproximava por trás dele. Correu com mais força no corredor infinito, quanto mais avançava mais profundas se tornavam as águas, chegando a engolir seus tornozelos.
Chapinhando, a criança perde velocidade e um par de olhos vermelhos brilham no vulto que o segue. Ofegante, já com a cintura imersa, tropeçou e lutou para não engolir água. Quando emergiu buscando o ar, a sombra estava sobre ele, repleta de furos e cortes, o mais profundo deles na garganta, mostrando partes esbranquiçadas no interior. O sangue por todo o corpo. Seu padrasto ergue as duas mãos para alcançá-lo e de dentro de sua boca aberta saíram um milhão de insetos negros, como baratas fervilhando para fora de uma fossa. Tinham a presença que causava um calafrio em seu corpo. A presença da magia sombria.
Um som de porta batendo foi ouvido e Daniel, espantado, empurrou um grosso lençol que o cobria. O Rei da Gleba Rubra havia acabado de entrar no quarto, o mesmo quarto em que a princesa Mel repousava horas atrás, e olha preocupado para o garoto que estava pálido e suava. A janela pequena estava aberta e a luz da lua entrava por ela. Havia uma lanterna fechada em cima da penteadeira.
— Você está bem, garoto?
O Rei pergunta abrindo a portinhola da lanterna e jogando uma sutil iluminação pelo quarto. Fazia um pouco de frio, principalmente para um garoto magricela que logo se cobre de volta no cobertor. Com a voz rouca, Daniel respondeu baixo que estava bem, o que não era exatamente verdade. Ele se sentia fraco e frágil, seu pescoço doía bastante e uma pequena pontada na cabeça começou a lhe incomodar. Em seu peito sentia algo peculiar, era uma sensação falsa de indiferença, um sentimento sombrio que ameaçava fugir por seus olhos a qualquer momento, mas por algum motivo, não saia e mesmo que forçasse, não conseguiria.
— Não parece bem – Sobre a penteadeira o Homem alto e barbudo agarra uma cesta de frutas que se escondia na escuridão do quarto e um odre. Indo até a cama, ele deposita a cesta no colo do garoto e oferece o odre.
Daniel se dá conta que estava com a boca seca e destampa o odre imediatamente tomando grandes goles de um vinho muito bom, apesar de diluído. Isso conforta seu estômago e passa a se sentir um pouco melhor. O garoto observa bem ao seu redor e se dando conta de que estava no quarto da princesa, ele pergunta:
— O que aconteceu?
— Eu esperava que você me dissesse – Claus diz com sua voz grave e imponente, apesar de transmitir tranquilidade.
— Não entendo, já é noite.
— Você dormiu bastante.
— O que ouve com a princesa? – Daniel pergunta. Olhando ao redor ele faz um gesto para os lados – Porque estou no quarto dela?
O Rei examina o garoto um tempo, coçando sua barba negra e espessa. Ele não estava com seu machado nas costas, mais permanecia com a espada longa mágica na cintura. Então responde:
— Na realidade esse não é o quarto da princesa, uma história comprida e ela continua no mesmo estado que esteve desde que foi ferida, mas a mancha escura que disseram ter crescido – O Rei fez uma breve pausa, estudando o garoto – Desapareceu.
Daniel transparece indignação e sem perceber lágrimas escorrem em sua face. Ele se sentia frustrado e esquisito, por estar chorando sem saber exatamente o porquê. Rapidamente limpa os olhos e respira fundo tentando se controlar. Uma terrível sensação de desespero começou a lhe invadir e sentiu como se ninguém pudesse ajudá-lo.
— Deixe sair garoto – Diz o Rei – Melhor colocar para fora. Não há vergonha nenhuma em chorar.
E foi o que o garoto fez, passou a chorar e soluçar e se lembrou da patética princesa Sol que passou a maior parte do tempo chorando ali no canto da cama. Lembrou-se tristemente também que não conseguiu curar Mel.
—Desculpe – Diz o garoto entre soluços – Não pude fazer nada.
Claus permaneceu calado por um tempo, estava absorto vendo cada gesto do garoto, cada lágrima. Isso intimidou ainda mais o jovem, ele limpou sem jeito as bochechas, sentiu-se como uma piada. Queria sumir dali.
— É estranho – Claus disse lentamente – Eu nunca passei por uma situação assim.
Esfregando bastante os olhos, Daniel olha de baixo para o Rei. Parcialmente escondendo o rosto sob a desculpa de estar secando as lágrimas. Ele aguarda uma continuação sobre o assunto que o monarca falava.
— Você tem idade para ser meu filho – Diz Claus desconfortável – E eu passei muitos anos de minha vida imaginando como eu iria lidar com meu filho, mas acontece que nunca fui pai de um.
“ Às meninas, bastava um abraço, um carinho e um pedido de desculpas, mas não me parece o jeito certo de tratar um rapaz, principalmente se você o quer feroz, bruto como uma rocha. Para que as pessoas possam olhar e dizer ‘ Aí vai um homem que nada teme’ “
O Rei parou, imaginando algo, como se lembrasse de alguém. Então sentou na cama pesadamente, ficando parcialmente de lado para o garoto. Depois ergueu sua enorme mão e deu alguns tapas pesados nas costas de Daniel. O rapaz sentiu como se fossem murros, apesar de reconhecer que o Rei tinha boa vontade, mas não pôde evitar de achar engraçado. Seu ânimo melhorou um pouco ao ponto de conseguir controlar o choro.
Ele sabia que não estava em seu estado normal, o encontro com a bruxa e o uso inadequado da magia sombria havia mexido com seu íntimo e acabou trazendo memórias e sentimentos que achou ter superado.
— Coma umas frutas, talvez se sinta melhor – Claus diz pegando uma maçã.
O aprendiz de curandeiro observa a fruta como se a mesma tivesse um grande significado e então pergunta:
— Tem um jardim aqui?
— Sim, O jardim de Sofia.
— Pode me levar lá?
— Mas é claro – Claus se levanta e agarra Daniel no colo.
O garoto fica constrangido, mas também não sabe como pedir para descer e fica inquieto, sendo carregado como um bebê. Sem dificuldade, Claus abre a porta, o corredor estava vazio exceto por dois guardas que prestam continência quando eles passam. Os corredores do castelo estavam desertos, exceto por alguns vigilantes em pontos estratégicos. Logo os dois chegam a um pátio na parte traseira do castelo, abaixo da torre mais alta.
Um jardim grande e repleto de flores se encontrava ali. Haviam arvores grandes, pequenos carvalhos e faias de copas exageradas. As flores eram metodicamente separadas, se achavam ali lírios copo-de-leite, rosas vermelhas e brancas, Gloriosas, Gladíolos e outras espécies. Bancos de pedra retangulares foram colocados embaixo das árvores para pegar a melhor sombra durante o dia.
O Rei coloca o garoto sentado em um banco de pedra e senta ao seu lado. Daniel fica admirado com a beleza do lugar, ele se levanta e anda ao redor das flores. Ao parar ao lado do Lírio branco, ele agradece às flores com uma reverência profunda, ao terminar, uma sutil brisa balança o jardim e as flores se balançam de um lado para outro serenamente. Coincidência ou não, Claus ficou admirado.
Daniel sente a brisa e se renova a cada fôlego. Ele se aproxima de uma faia cuja copa cobria uma grade área, o rapaz sussurra bem baixo para árvore, toca suavemente o tronco dela e fecha os olhos. Claus se levanta assistindo. O tempo pareceu congelar para eles, o ar ficou pesado e então, Daniel derramou suas últimas lágrimas e o vento balançou a árvore. Quando o rapaz abriu os olhos e se afastou voltando para onde o Rei estava, incrivelmente, uma centena de folhas caíram da arvore por cima do garoto, como se o outono estivesse se adiantando. O Rei ficou impressionado.
Então, os dois se sentam no banco largo de pedra, lado a lado. Daniel estava se sentindo bem melhor, apesar de ainda atordoado e melancólico. Ele distribuiu parte da energia sombria remanescente na árvore que fez com que sua mente ficasse mais clareada. Depois equipou-se com seu bloqueio espiritual, para se certificar que não seria pego de surpresa por uma recaída. Sentimentos negativos atraiam a energia maligna da magia das sombras e a própria Bruxa, em um embate posterior, poderia se apossar dessa vantagem.
— É poderoso, não é? – O Rei pergunta mirando o jardim.
— É – O garoto respira aliviado, de forma profunda – É muito bem cuidado.
— Você é talentoso garoto, consigo ver porque seu ancião almejava tanto lhe dar um título.
Daniel ficou sem jeito, olhando para parte do céu negro que as copas permitiam visualizar. Então se explicou, achando que não era talentoso como o Rei dizia.
— Eu não fiz nada demais, apenas descarreguei a energia negativa na árvore. Uma atitude bem covarde na verdade – Os olhos do garoto percorrem o chão repleto de folhas secas.
— Energia negativa você diz – o Rei comenta - Imagino que não tenha nada a ver com aquelas bobagens que Devan fala. É isso que esta afetando a minha filha?
— É mais fácil de explicar essas coisas quando o ouvinte possui uma relíquia mágica em sua cintura – Daniel afirma com um leve tom de curiosidade - Existem várias faces da magia, normalmente ela é usada para manipulação dos elementos mais simples que compõem todas as coisas. Só que, como tudo na vida, existe sempre um lado obscuro.
“A magia sombria é a face desagradável da magia, sendo hostilizada por magos de conduta correta e proibida nos reinos a fora. A fonte do poder que ela usa vem de um plano, uma outra dimensão, alcançada somente por nossos pensamentos e emoções, esse lugar é marcado com todo tipo de ressentimentos e desgraças passados pelo coração do seres pensantes. O acúmulo desses pesares durante as milhares de gerações de pessoas que viveram no mundo é tão grande que um mago treinado pode extrair uma real energia de lá.”
O Rei estava com o olhar desfocado, quando Daniel terminou ele disse lentamente, com o ressoar grave de sua voz:
— Eu devo ter perdido alguma parte da explicação, não entendo como isso pode estar afetando minha filha, aquela seta de besta trouxe tudo isso? Como em um item mágico?
— É como se fosse... – Daniel escolhe bem suas palavras e prossegue - ... uma maldição, aquela bruxa amaldiçoou a seta para poder... “Envenená-la” com uma porção dessa energia sombria.
Claus fica subitamente carrancudo, seus olhos azuis, de um fundo cinza, lentamente se enchiam de ódio. Inclinou-se para frente apoiando os compridos braços no joelho e cerrou o punho firme apoiando o queixo.
— Então, existe mesmo uma bruxa por trás disso tudo – A voz grave real saiu emitindo um som de falso controle emocional – Então ela possuiu minha filha?
— Não é exatamente uma possessão – Daniel força sua mente uns instantes - Mas como não sei explicar ao certo, vamos dizer que ela pode possuir a princesa sim.
— Conte tudo – O Rei pede, apesar de, para Daniel, ter parecido uma ordem.
— Por onde começar? – O garoto pensa em voz alta olhando as belas flores do jardim dançarem com forme a brisa noturna.
— Comece pela bruxa, o que percebeu? – Havia uma urgência no tom de voz do Rei quando mencionava a bruxa, como se desferisse um golpe cada vez que pronunciava a palavra.
— A bruxa é uma feiticeira muito poderosa, a minha avaliação não é precisa, mas calculo que somente o Ancião possa combater seus poderes. Além disso, ela domina a magia sombria de uma forma que eu julgava impossível de uma pessoa conseguir.
O garoto aprendiz se lembra do embate que teve com a bruxa, por um instante ele observou o interior dela, sentiu um calafrio só de recordar. Era como um abismo onde uma forte ventania o empurrava para o fundo e se ele tivesse coragem o suficiente para pular nele, poderia achar algo no fundo, algo terrível, um fator em comum com eles dois...
— Garoto?
— Omun.


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