Âmago da Meia-noite escrita por Shantalas


Capítulo 8
Magia Sombria


Notas iniciais do capítulo

Parte I de II



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/768567/chapter/8

Os rumores sobre o poder da magia não eram incomuns. As histórias de magos poderosos que realizavam grandes feitos navegavam, principalmente, pela imaginação das crianças e por suas brincadeiras cotidianas. Nas aldeias, os pais e mães preferiam manter aquilo tudo como um mito, para que as suas crianças não desenvolvessem os seus medos sobre o assunto. A falta de conhecimento levava a população em geral a preferir ignorar os fatos sobrenaturais e inexplicáveis que cercavam os magos.
Essa negligência geral fazia com que os magos ficassem cada vez mais raros e esquecidos, tornando o ofício algo reservado e os poucos que se mostravam eram tidos como farsantes. Nas cortes em geral, era conhecida a figura do mago, quase sempre um conselheiro informal do senhor feudal da região, mas, por uma questão de superstição e má fama, o contato era sempre evitado.
Daniel nasceu em uma aldeia, nas proximidades do grande Reino de Septhum. Magia não passava de um boato para a maioria, mas não para o rapaz, que lidava diariamente com ela, pois seu padrasto era um mago, um estudioso dos elementos da natureza. Havia mais de 5 anos, ele se lembrava bem, o dia em que lhe foi ensinado o significado da magia proibida, vulgo Sombria, Arte das trevas ou qualquer alcunha que fizesse referência ao lado obscuro do âmago humano.
— Um bruxo, você diz? Ou Bruxa? Está inventando! – O conselheiro fala com falso ceticismo. Ele estava assustado, como qualquer outro na sala.
A princesa Sol cessara o choro, parecia catatônica com o olhar distante. Já a sua irmã mais nova, pousara uma mão na boca forçando sua mente a aceitar os fatos. O Duque dá curtos passos até a cama de Melanir, a garota dormia tranquila, com o lençol em cima das pernas, a barriga exposta com o pequeno corte de contornos negros.
— Se encaixa com o que você ouviu dos Goblins. – O Duque Cláudio responde ao Conselheiro real.
— Ele está afirmando isso justamente porque ouviu o que eu falei – Natanael fala ao Duque, se aproximando do mesmo. Acreditando no que dizia a cada palavra.
— Você viu as flores.
— Um truque! Uma prestidigitação.
— Ah – A princesa Melanir geme. Ela franze o cenho ainda de olhos fechados, aperta o colchão com as duas mãos e mexe os pés, incomodada.
Kalifa aproxima-se da irmã, colocando a mão em sua testa. Chama o nome "Mel", várias vezes, tentando acordá-la, mas sem sucesso. Natanael se aproxima para dar suporte e a princesa enferma grita, um som estridente e carregado de dor. Ela abre os olhos azuis com as pupilas dilatadas, seu rosto fica rosado com o esforço do grito.
Natanael chama pela princesa desesperado, Kalifa começava a chorar de preocupação, agarrando a irmã nos braços. Sol permanecia imóvel como uma estátua, sem saber o que fazer. Ouvem-se batidas na porta, os dois guardas que estavam do lado de fora entram.
— Saiam! – Ordena o Duque aos homens – Tragam o rei!
Os homens vão embora com a mesma rapidez que entraram e o Duque fecha a porta na cara de Devan e Galahan, ambos com ar sobressaltado. Melanir parou de gritar e desabou, inconsciente, mais uma vez. A mancha escura, que contornava as veias ao redor do ferimento, começa a se espalhar devagar, subindo para o umbigo e descendo para seus pelos pubianos.
— Ela vai ficar bem, não vai? – Sol permanecia em pé, como uma árvore débil e de olhos instáveis.
Kalifa faz uma careta de choro, lembrando uma criança pequena, e deixa a irmã na cama, seca os olhos com as costas de ambas as mãos e vai até Daniel. A princesa segura a mão do garoto e com uma forçada voz rouca de controle ela implora:
— Por favor! Faça alguma coisa!
Daniel sente as mãos quentes da menina, as bochechas dela estavam rosadas e os olhos marejados, sua boca fazia um arco com as pontas para baixo. Ele sente um misto de compaixão com um calor que descia pela barriga, era a primeira vez que ele a via de perto. A íris da bela moça havia deixado o tom cinza e agora parecia um azul vivo.
Daniel suspeitou que não conseguiria dizer não a ela, mesmo tendo usado o recurso mais forte que Jaborandi lhe ensinou, ele se sentiu obrigado a ir mais longe e usar um método do qual havia prometido ao Ancião Umbuzeiro jamais voltar a usar. Tirou o olhar de Kalifa para depositar em Melanir, a enferma estava voltando a fazer caretas de dor, como se sofresse em um pesadelo, o conselheiro passava a mão na cabeça da garota, tentando tranquilizá-la.
— Não há nada que você possa fazer? Por favor.
A princesa caçula do rei implorava, beirando o desespero. Vendo o sofrimento crescente dela, o aprendiz de curandeiro fecha os olhos, tentando refletir melhor naquele momento de pressão, sentiu um calafrio ao pensar em usar seus antigos conhecimentos mais uma vez. Mel guinchou alto, atrapalhando sua concentração. Ele sentiu como se uma música aterradora lhe subisse à mente, em um único som contínuo e agoniante. Não conseguiu prestar atenção à segunda súplica de Kalifa. Ouviu a voz do Ancião dizendo no passado para nunca mais usar tais artes.
Abriu os olhos de súbito. Ele viu que a caçula espremia, nos cantos dos olhos, lágrimas gordas. Então, o rapaz pensou que pelo bem de outros, não haveria problema em usar sua magia proibida. Deixou a princesa com seu choro para ir até a cama. Decidido, puxou Natanael de perto da enferma, colocou um joelho no colchão e segurou Mel pela nuca, colocando o rosto da garota de frente para o dele.
— O que está fazendo? – O conselheiro pergunta aflito, sem fazer menção de interromper o garoto, qualquer milagre para ele seria válido.
— Estou fazendo meu melhor – O rapaz responde segurando o rosto da princesa com a mão esquerda. Ela arfava e expressava dor.
Kalifa abraça sua irmã, Sol, que ainda estava paralisada, as duas se consolam, observando a cama com esperança. O Duque ainda permanecia próximo à porta, como se aguardasse alguma salvação entrar por ali. Perdido em algum devaneio, ele retorna à realidade ao perceber o que Daniel fazia e se aproxima devagar ficando ao lado das sobrinhas.
— Gaien omun van altain.
Daniel sente um frio subir por sua espinha dorsal ao pronunciar tais palavras, ele encosta o polegar da mão direita na testa de Mel e vai imediatamente em busca de seu refúgio mental. Tal lugar era um bloqueio espiritual que seu padrasto lhe ensinou para mexer com a magia. O mago treinava seu intelecto para que a energia vinda das trevas não o afetasse e prejudicasse seu desempenho. O ponto de ignição do bloqueio era baseado em um trabalho da mente que o mago treinava ao redor de uma sensação gerada por uma lembrança, a sensação podia variar de mago para mago e do momento em que o mesmo se encontrasse.
Antigamente, para tornar sua mente bloqueada, Daniel usava a memória do colo agradável e quente de sua mãe, o sentimento extraído daquilo virava seu porto seguro e ele conseguia executar os feitiços sem problema, mas agora essas memórias estavam deturpadas, e o rapaz foi obrigado a achar outra memória. Forçou-se a lembrar da paz que vinha sentindo no acampamento da Mata Viva e dos membros que pareciam apreciar sua presença, lembrou-se da simplicidade de Glenn e da comida de sua esposa, logo se sentiu intocável e mais uma vez pronunciou as palavras malditas como um sussurro ou reza de um sacerdote em um enterro.
— Gaien omun van altain vain.
Todo o quarto ao seu redor fugiu de seu campo de visão, como se ele tivesse sido tragado por um buraco negro e agora pairava sobre um mar infinito em um céu negro, não conseguia sentir seu corpo, apenas um formigamento. Olhou para baixo e viu o mar de tristeza que isolava a princesa Mel, imediatamente sentiu-se triste, mas seu bloqueio mental lhe vez perceber que nada do que sentia pertencia a ele, sendo assim, afundou nas águas.
Afundou em um mar gelado. Sentiu o fluir da magia sombria na correnteza, ela trazia um pesar anormal em seu íntimo, estimulando-o a lembrar do passado. Forçou seu lado racional a trabalhar e reconheceu a fraqueza de seu escudo mental. Mesmo se sentindo invadido, continuou a descer e pensar na princesa. Ao lembrar com força da garota, sentiu uma presença aconchegante, logo olhou uma luz dourada que brilhava na escuridão.
Encolhida em posição fetal, Mel pairava nas águas de olhos fechados, sua expressão estava tranquila. Sua imagem lembrava um espectro da garota enferma deitada na cama, seu corpo estava nu, mas nenhuma de suas partes íntimas era visível, pois estava difuso, como que embaçado e ao olhar fixamente em sua direção, percebia que era transparente.
O aprendiz de curandeiro se aproxima e mais uma vez é puxado, a realidade ao seu redor se distorce e volta a sentir seu corpo em um espaço físico. O local era um grande salão de festas, com várias lareiras carregadas de lenha e fogo. Haviam enfeites no teto, tecidos de diferentes cores pregadas e flores em cada canto. Em um altar, o Rei da Gleba-Rubra estava em pé, trajando suas vestes reais, com coroa e cetro. Atrás dele, um trono de pedra polida com joias incrustadas permanecia vazio. Toda a corte do castelo estava em pé e bem vestida, eles se agrupavam organizadamente em fileiras meridianas, deixando um corredor no meio deles. Na multidão estava Daniel, vestido como muitos outros membros da corte, em um estilo aristocrata.
O rapaz estava dentro de um sobretudo roxo escuro, era comprido, quase arrastando no chão. No corpo uma jaqueta de cintura alta, na cor verde, feita de um couro que lhe lembrava o do seu manto de jacaré que lhe apertava, por baixo dessa peça de roupa ainda vestia uma túnica de manga longa. Para encerrar seu vestuário, usava um cinto de couro e calças brancas. Seus pés estavam em um sapato de bico fino cuja plataforma lhe dava a altura que sempre sonhara ter.
Olhou ao redor para entender o que ocorria e viu que alguém estava na frente da corte, sendo observado pelo rei. Era um homem alto, vestido em uma roupa toda adornada, calças brancas, manto azul e uma jaqueta double negra. Eram as cores do reino de Septhum, Daniel reconheceu quando viu a enorme bandeira do reino ao lado da bandeira das terras vermelhas colocadas na parede atrás do trono. Era azul à esquerda, branca à direita e no centro um escudo negro com um grifo lançando suas garras. Já o símbolo da Gleba-Rubra se tratava de um corte horizontal, bege bem claro acima, vermelho abaixo e uma espada cruzando com uma enxada no centro.
Curiosamente, o representante de Septhum não possuía rosto, era apenas uma figura embaçada. O garoto procurou por Mel naquele local, virando o rosto para esquerda e direita. Viu Kalifa e Sol, belíssimas em vestidos longos, de cintura com armação bem larga e ambas balançavam um leque contra o rosto. Estavam bem à frente da multidão e ao lado delas se encontrava também o conselheiro Natanael, com seu cabelo parcialmente grisalho, todo apertado em trajes nobres.
A porta se abre e a princesa Mel entra acompanhada do Duque, seu tio. Estava exuberante em um vestido azul, com a saia tão armada que Claudio não conseguia se aproximar muito dela. O decote da garota desnudava metade das costas e os ombros. Um broche de ouro segurava seu manto branco na altura dos seios, o manto vinha se arrastando logo atrás. Uma tiara dourada com cristais segurava seus cabelos loiros para trás. Duas meninas acompanhavam seu passo lento em direção ao altar e jogavam pétalas de diversificadas flores.
O ritmo lento da marcha prosseguiu até o Duque entregar a princesa ao homem de Septhum e ir juntar-se às outras sobrinhas. As meninas choravam na plateia e Mel, antes de pegar na mão de seu noivo, virou-se para suas irmãs e cochichou:
— Eu não quero.
— Pelo bem do reino – Sua irmã Sol cochichou de volta
— Força irmã – Kalifa diz um pouco mais alto – Lembre-se, sempre tem a opção de mata-lo e virar bandoleira.
Mel não achou graça, pois estava nervosa. Daniel reparou que, absurdamente, ninguém ouviu a conversa das irmãs. O Rei ergue seu cetro e com sua voz carregada, porém amorosa, de uma forma que o rapaz duvidava que fosse possível que ele falasse, diz:
— Devido ao fato de não sermos reconhecidos como reino por nenhuma igreja e não termos uma religião oficial, eu, o primeiro rei da Gleba-Rubra, Claus Donmark primeiro, filho de Gorb Donmark e atuante governador destas terras, me autorizo para ter o poder de juntar este casal matrimonialmente.
Daniel resolve deixar de atuar como figurante naquela cena e começa a andar por entre as pessoas da plateia, indo para o altar, algumas resmungam contra o garoto, e ele tem dificuldade de passar por entre as armações das saias de duas nobres choronas que consolavam uma à outra.
— Incumbido desse poder – O rei prosseguia, mas sua filha Mel o interrompe.
— Pai, por favor – A menina diz, tímida - Não quero casar com ele. É injusto que você e a mamãe tenham se apaixonado e casado e eu vá casar com qualquer um.
Sem olhar para a filha, como se prosseguisse seu discurso matrimonial, o rei fala alto para todos:
— Ele não é qualquer um – Diz, pontuando palavra por palavra, a plateia ouvia como se fosse tudo normal – É um príncipe de Septhum, terceiro herdeiro do trono. Precisamos de reconhecimento na Assembleia dos reinos.
— Vamos virar vassalos! – A menina diz, birrenta.
Daniel atravessa por debaixo das saias das garotas e leva um tapa de uma e um sorriso sapeca de outra. Com pressa ele percorre em direção à frente, tropeça na plataforma que calçava e esbarra em um homem gordo que lhe xinga, mantendo o tom de voz baixo. O rapaz rasteja pela saída mais próxima e sai no corredor coberto de pétalas.
— Incumbido desse poder de unir casais matrimonialmente – O rei dizia em tom de discurso, como se nunca tivesse sido interrompido – Exijo saber, se não há nenhuma outra garota mimada para contestar essa união ou qualquer outra pessoa que tenha algo contra esse casamento.
O aprendiz de curandeiro, atrapalhado, se levanta no meio do corredor, o rei olha para ele e junto com seu olhar todas as cabeças ali presentes se viram para o centro. Quando Daniel ia falar algo, um homem alto e forte irrompe do meio da multidão derrubando o garoto no chão.
— Eu! – O homem diz com uma voz bonita de cantor, com uma leve semelhança à voz do rei.
Uma ovação é ouvida na multidão e o rei coça a barba grande e pergunta intrigado:
— Quem seria o senhor?
— O verdadeiro amor dela! – Meia dúzia de meninas desmaiam, entre elas a princesa Sol. Mel suspira e observa esperançosa para o pai.
— Mas que diabos?! – Daniel se levanta irado a anda rápido até o altar.
O humor do rei muda, com ele o clima lá fora também. Uma súbita ventania invade o salão, derrubando o chapéu das madames e levantando suas saias. O rosto de rei se contrai em fúria. Mel fica apavorada, lágrimas surgem em seus olhos. Um relâmpago é ouvido lá fora.
— Você vai casar dona Melanir! Ah, se vai! – O cetro já não existia em sua mão e sim a espada longa com as escritas "Ira da tempestade" em uma linguagem antiga.
Sem ter uma origem, o vento sopra mais forte no salão, as pessoas gritam, um homem robusto é derrubado. Daniel vai de encontro à princesa e a ventania passa a empurrá-lo, impedindo que o garoto se aproxime mais. O rosto do rei se desfigura por um breve instante, ele dá um largo sorriso incomum para a sua estrutura facial. Algumas verrugas começam a surgir em seu rosto.
— Princesa Melanir! – Daniel grita protegendo o rosto da turbulência.
— Sua garota mimada! Hahahaha! – A voz do rei vacila e, durante a gargalhada, ela fica mais histérica e aguda.
— Princesa! – O rapaz grita mais alto e a garota confusa, contendo as lágrimas, se vira para ele – Escute! Toda essa tristeza que você sente, não é sua! – Mel continuou fitando-o, com um olhar de incompreensão – Você precisa lutar contra isso!
A ventania tornou-se pior, começou a levar pedaços de parede, pessoas, uma parte do chão. Atrás de todo aquele cenário que agora parecia falso, havia um mar azul esperando para invadir, como se uma parede invisível o segurasse. O rei pulou do altar com a espada na mão e, agarrando a princesa pelo cabelo, ele disse:
— Se não quer casar... – Seu rosto ficou horrendo, seu nariz adunco e enorme, seu queixo pontudo e sua barba sumiu - ...é melhor morrer e dar a vez à sua irmã!
A voz do rei ficou histérica ao fim da frase. Seus dentes apodreceram e os cabelos alongaram, ficando brancos. Sem piedade, enfiou a espada no peito da garota e passou a rir de forma aguda e contínua. O corpo de Mel ficou esbranquiçado, assumindo uma aparência espectral e se fechou na posição fetal. Toda a realidade fora levada pelo vento e Daniel se afogou em uma tristeza absurda na forma de fortes águas marítimas invasivas. O rei se tornou uma velha feia e magra, de poucos cabelos brancos e secos.
— Um verme como você? Tentando me desafiar? Hahahahahaha!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Âmago da Meia-noite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.