Âmago da Meia-noite escrita por Shantalas


Capítulo 4
O Castelo Dongau


Notas iniciais do capítulo

Parte um de dois



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Tudo na entrada do castelo estava devastado. Onde antes havia uma movimentada feira, agora não passava de uma rua abandonada com pedaços de madeira e armações de barracas. Uma muralha alta se erguia frente a um castelo ainda maior. Daniel olhou para cima e viu homens armados, com arcos e flechas, nas torres anexadas à muralha. A ponte levadiça se deitava lentamente sobre o fosso, com homens armados na entrada do portão esperando por eles.

Os populares espiavam, por entre janelas mal fechadas, protegidos em suas casas de pedra, o movimento dos 50 homens montados a cavalo. Faziam fila dupla, aguardando a ponte descer. Daniel estava logo no inicio da fila, na garupa do acompanhante do Duque, homem que ele descobriu ser o chefe da guarda. De má vontade, na garupa do mimado garoto escudeiro Clauzor, se achava Kal. Ele estava com seu perponto cinza e uma espada grande nas costas.

A ponte levadiça enfim deita sobre o fosso que circulava a muralha do castelo e os cavaleiros avançam em pares. Daniel se inclinando da garupa para visualizar a profundidade do fosso, viu um movimento sinuoso na água e reparou depois que havia mais de uma sombra ali submersa.

— É bom não se mexer muito se não quiser virar comida de jacaré moleque – O chefe da guarda disse.

— Eu como jacarés no desjejum – Daniel respondeu em desafio, ajeitando sua capa de Pele de jacaré nas costas.

Kal checa seu antebraço cortado sem erguer a manga, Daniel repara, exatamente como ele havia feito ao entrarem na cidade. Não parecia ser uma questão de dor, era mais como se aquilo lhe desse alguma segurança. Kal também havia tocado no lugar do corte, discretamente, momentos antes de falar com o Duque e sua guarda anteriormente, quando ainda estavam no acampamento da Mata Viva, naquela ocasião Daniel achou que o ferimento estava dolorido, porém, agora sabia que era outra coisa.

Para Daniel, era ruim que ele quase sempre fosse tratado como uma criança. Apesar de sua aparência jovem, ele já estava com 14 anos, uma idade que já era considerada adulta, mas as pessoas ao seu redor nunca levavam em consideração. Todos que se achavam na Sociedade da Mata Viva tinham um problema e relatavam suas dificuldades por uma série de motivos, um deles era para que os ouvintes pudessem aprender algo com isso. Bromélia também costumava dizer que falar de suas dificuldades aliviava as tensões do coração e a pessoa se sentia melhor, porém ninguém relatava nada de grave próximo de Daniel.

A velha ruiva, Bromélia, sempre contava em tom cômico sua história de fuga do castelo por não querer ter suas partes queimadas com a haste de ferro em brasa, porém, Daniel sempre achou estranho o fato de uma mulher da corte do Reino de Septhum, casada e com 3 filhos, abandonar tudo para seguir um velho ancião sem moradia. Ele tinha certeza que a seriedade da história lhe era negada. Os outros membros da Mata Viva faziam a mesma coisa.

Certa vez, Barbasco convidou Daniel para se banhar no rio e, durante o banho, ele pôde ver todas as partes íntimas da mulher morena que parecia gostar de se exibir. Ela perguntou a idade dele e ao ouvir a resposta o chamou de mentiroso, alegando que mal tinha pelos na parte de baixo. Nesse dia, Barbasco pareceu mais relaxada, após brincarem bastante no rio de uma série de coisas bobas, ela confessou que preferia que Daniel nunca crescesse. Daniel chegou a perguntar qual era o motivo de ela estar na Mata Viva, mas ela apenas disse que sua mente pensava uma série de besteiras o tempo todo.

Por ouvir, mesmo sem querer, parte da conversa de uns e outros, Daniel sabia mais ou menos o que havia acontecido com alguns membros da Sociedade, pois era um acampamento pequeno, e as barracas não isolavam o som. Ele sabia que Sangue-de-Dragão era um ex-mercenário sanguinário, porém ele não conseguia imaginar o motivo que o fez mudar de vida. Só que quando se tratava sobre Kal, indiretamente ou diretamente, nenhuma informação chegou em seus ouvidos.

No acampamento, Kal andava exatamente como estava agora, vestido em um perponto cinza, cabelos e barba desgrenhados e quase sempre com a espada bastarda de prata, pendurada dentro da bainha com o cabo acima do ombro direito. Era um homem de poucas palavras, mas desde que saíram do acampamento ele enchia o Duque de perguntas e, graças a isso, Daniel ficou sabendo sobre fatos que ele nem se preocupou em saber antes.

O Duque Claudio, durante o suave galope cortando os campos de plantio que antecediam a cidade, explicou que nesse mesmo dia pela manhã a Princesa Melanir, atual herdeira do trono do Reino da Gleba-Rubra, havia sido ferida no abdômen por uma seta envenenada de um Goblin, uma criatura verde e asquerosa, com metade da altura de um homem. Os dois Goblins responsáveis pelo disparo não foram capturados, mas nas redondezas do castelo, outros foram achados, alguns deles resistiram à captura e foram mortos.

Eram 16 ao todo, cercavam o castelo em diferentes pontos estratégicos, divididos em 8 grupos de 2, cada dupla com uma besta "envenenada". O Duque chamava assim por não saber dizer outro termo, pois na realidade, não era veneno o que foi achado na ponta das setas. Elas estavam com uma pequena parte oca e ali havia um fio de tecido claro e perfumado com algum óleo. O fio estava enrolado e possuía três pequenos nós. Os alquimistas do castelo testaram o óleo e concluíram que não era venenoso, apenas alguma especiaria.

Os astrólogos afirmaram ser um feitiço guiado para derrubar a princesa uma vez que o perfume simbolizava a constelação da Bela Humilde e os 3 nós uma referência à coroa que se achava na cabeça de Graco, na constelação do rei Dragão. Nessa hora, quando o Duque terminara de contar a conclusão dos astrólogos, Kal havia sorrido com desdém e nada mais perguntou, após isso o Duque apenas disse que até antes de sair, nenhuma informação havia sido tirada dos Goblins.

Passando pela ponte levadiça e depois pelo portão, eles chegam ao pátio, ao redor do qual o castelo fora construído. Três torres grandes destacavam-se das outras em altura, duas delas ficavam frente a frente, nos dois lados opostos do local, a terceira torre ficava no centro, de frente para o portão. Era mais de meio dia, o sol já não estava tão quente e o castelo parecia deserto, mas o cheiro de comida ainda fugia das cozinhas.

— Bem-vindos ao Castelo Dongau, sede do Reino da Gleba-Rubra – O Duque Claudio diz de forma maquinal.

A comitiva de 50 homens e cavalos foi se alojando, entregando cavalos no estábulo ao leste do pátio e deixando seus equipamentos no almoxarifado. O Duque foi de encontro a um homem mais velho, bem vestido com um robe de estilo aristocrata e uma jovem garota loira, de olhos cinza azulado, trajando um vestido decotado vermelho escuro com parte branca no centro.

— Alguma novidade Natanael? – Duque Claudio pergunta descendo do cavalo.

O chefe da guarda faz menção de descer também de seu cavalo e Daniel o faz primeiro, se atirando habilmente ao chão de uma distância grande para sua pequena altura. Kal desce logo em seguida e Clauzor também.

— Temos sim – O homem de robe responde. Depois observando Kal, pergunta – Você deve ser o curandeiro que o Ancião enviou. Imaginava alguém mais velho.

Kal sorri, um sorriso cínico, onde só um lado da boca subia junto de um olhar de deboche. Cláudio guia Daniel até a frente do homem chamado Natanael e responde:

— Não, você se engana. Este é o curandeiro.

Se Natanael havia lançado um olhar de dúvida a Kal, não foi nada comparado à expressão que fizera para Daniel. Antes, no acampamento, quando Daniel veio dizendo que seria o representante do ancião para curar a filha do rei, por duas vezes o Duque perguntou se aquilo se tratava de uma brincadeira. Somente quando Bromélia afirmou categoricamente que o Ancião não brincava com a vida de ninguém e que Kal ameaçou ir embora, já que eles não iriam querer a ajuda, foi que o Duque assentiu. Clauzor reclamou durante toda a saída da floresta, sugerindo ao Duque que voltasse e trouxesse o ancião à força.

— Estão de brincadeira? – Natanael diz, cético. A garota loira atrás dele lançava olhares de dúvidas também.

— Não estamos e nem seria momento para isso – Claudio afirma entregando a rédea do cavalo ao escudeiro Clauzor e perdurando seu elmo na sela do cavalo.

O Duque era um homem sagaz. Durante o caminho para a cidade, antes mesmo de chegarem aos grandes campos de plantio, ele próprio havia feito uma série de perguntas a Daniel sobre ervas e medicina. Ficou assombrado ao perceber que o garoto sabia de muita coisa sobre anatomia humana, inclusive dizendo nomes de órgãos internos que Clauzor pensou que fossem inventados. Nessa ocasião, Daniel sugeriu que ele poderia abrir a barriga do jovem escudeiro para então mostrar os órgãos citados a ele. Em meio às gargalhadas de Kal, o Duque deu o assunto como encerrado.

— Natanael e minha adorável jovem Dama, esse é Daniel, nosso curandeiro encarregado pessoalmente pelo ancião para tratar da princesa – erguendo uma mão na direção de Kal ele continua – E este é seu acompanhante, Kalisto.

Virando-se de costas para Natanael e a jovem, o Duque fala, apresentando-os a Kal e Daniel:

— Essa é, eu peço aos senhores reverência, a filha mais nova do Rei, a princesa Kalifa Sofia Donmark. E este é Natanael Borgon, intendente e conselheiro real.

— E um ótimo amigo da família – Kalifa diz com um sorriso envergonhado e cativante – Papai diria.... O Rei, quero dizer.

— Gostaria de ter mais tempo para formalidades – Natanael diz desconfiado – Mas acredito que cada palavra dita aqui inutiliza o tempo que poderia ser gasto para salvar a vida da princesa. Os senhores demoraram um século. O que aconteceu?

— O estado da princesa piorou? – Clauzor pergunta com copiosa preocupação.

— Ainda não, mas não sabemos ao certo qual a sua enfermidade – Natanael diz deixando transparecer uma angústia reprimida. – Vamos subir para o quarto dela, no caminho informo o que descobrimos.

— Claro – O Duque olha para Kal e Daniel – Senhores, nos acompanhem por favor – Depois ele vai até Clauzor e o chefe da guarda e diz – Euclides, obrigado pela escolta. Clauzor, leve meu cavalo até o estábulo, por favor.

— Euclides pode fazer isso – Clauzor diz com birra – Queria ficar de olho nesses...

— Não comece – O Duque diz com energia, pela primeira vez – Conheça seu lugar.

Contrariado e chocado, Clauzor lança um olhar de ódio ao Duque e depois para Daniel e Kal. Então puxa os dois cavalos e vai saindo.

— Clauzor... – O Duque diz ameaçador e o rapaz congela

— Com sua permissão.... Minha senhora – Ele fala se inclinando informalmente para a princesa que o despacha, constrangida, com um murmúrio.

— Se precisarem de qualquer coisa, estarei esperando – Euclides, o chefe da guarda, fala retirando-se com uma reverência à Princesa Kalifa e vai guiando seu cavalo junto com Clauzor.

O conselheiro Natanael adianta seu passo para os portões a oeste do pátio, todos o seguem, a princesa ao seu lado, Duque e Daniel logo atrás e Kal por último. Ao entrarem no primeiro salão do castelo, dois guardas trajando vermelho e cinza, armados de espada e Escudo, os acompanham.

— Porque demoraram? Foi difícil achar o acampamento deles? – Natanael pergunta mais uma vez.

— Percorri o caminho de volta sem pressa, usei o tempo para explicar a eles a situação, uma vez que a princesa está fora de risco.

— Não devia. Podia ter custado a vida da princesa.

O conselheiro diz duramente, sem nem olhar para trás. Pareceu que o Duque responderia algo, mas engoliu em seco. O grupo subia as escadas agora. Daniel e Kal, de vez em quando, recebiam olhares curiosos da Princesa Kalifa.

— Bem – Natanael diz após um minuto – Teve tempo de sobra para sondar esse curandeiro. O que achou?

— O garoto parece saber de muita coisa – O Duque diz – E se meu irmão confia nesse Ancião curandeiro, então eu também devo confiar.

— Veremos em breve – Natanael olha por cima do ombro para Daniel – Seu irmão não está de bom humor.

Só então que Daniel percebera. A empolgação de todos aqueles acontecimentos acabou sufocando os outros sentimentos do rapaz, mas agora ele voltou a ficar inseguro. Não era bom com as ervas medicinais e ele tinha certeza que Kal sabia menos ainda. E se falhasse? Será que o rei o mataria pela negligência do Ancião? Que diferença fazia a presença de Kal ali naquela situação?

Daniel sempre teve dificuldades para entender a cabeça do ancião, as coisas que ele fazia sempre pareciam confusas, mas de alguma forma no fim, acabavam dando certo. Quando Daniel havia recém-chegado na Sociedade da Mata Viva, ele se sentia desolado, sem vontade alguma de fazer qualquer coisa. Os membros da sociedade faziam de tudo para socializar com ele, Glenn oferecia comida, as mulheres ofereciam colo e carinho, principalmente Barbasco e Bromélia, até mesmo Sangue-de-Dragão o convidava para coletar mel das abelhas, mas nada chamava sua atenção.

O ancião havia falado poucas vezes com Daniel e, após uma semana sem vê–lo, disse que a partir daquele dia, Daniel só teria direito ao jantar, e que caso quisesse comer nos outros horários, passaria a colher as frutas para si. O resultado foi uma catástrofe. Daniel emagreceu muito, nem mesmo tinha apetite, e nos jantares tinha dificuldade para comer.

Um dia, Daniel observou em uma árvore, um pássaro pequeno, do tamanho de um punho fechado, com uma mancha preta na cabeça, parecendo uma touca. Era uma Toutinegra. Daniel tentou capturá-la, mas nem mesmo forças ele tinha e desistiu. Logo, de hora em hora, observava esse pássaro, para onde ia, por isso, se viu obrigado a comer para ter forças e procurar pelo ninho do pássaro. Aquilo virou uma obsessão, passou a coletar frutos em arbustos, para ter força e subir nas árvores. Era como se a Toutinegra brincasse com ele, sempre o esperando no topo das árvores.

Ele pediu a Glenn e, contra a ordem do Ancião a esposa dele, uma bela mulher especial dos olhos bem puxados, passou a lhe dar desjejum todos os dias. Glenn costumava dizer que O Ancião era um homem sábio, praticamente como um pai para ele, mas que se ouvisse uma ordem absurda, ele não cumpriria. E assim o garoto passava o dia na Mata, caçando Toutinegra, subindo em árvores. Após algumas semanas, ele já estava sendo chamado para aprender artes medicinais com Jaborandi, artes das quais agora, ele desejou ter aprendido bem mais.

A princesa Kalifa, em um de seus olhares casuais aos dois visitantes, percebeu o nervosismo de Daniel e com tom casual comenta com o conselheiro:

— Mas meu pai é bondoso, sempre trata as pessoas muito bem. Falando assim dele, você pode deixar os convidados desconfortáveis e o que nós queremos é o bem-estar deles 'para que possam dar seu melhor desempenho e trazer minha irmã de volta. Não é mesmo?

Ela sorriu para Daniel que sem perceber sorriu de volta. As palavras dela pareciam ter tido efeito nele, se sentiu menos pressionado. Ele pensou também que sempre tinha a opção de retornar ao acampamento e implorar para o ancião mandar alguém mais capacitado.

— A senhorita é muito complacente, minha princesa – Natanael diz – Espero que permaneça com seu estado de espírito, seu pai e suas irmãs irão precisar.

O olhar da princesa vacilou por um instante em um curto traço de tristeza, mas ela sorri e concorda com a cabeça. Prometera a si mesma que iria fazer de tudo para ajudar a irmã adoentada.


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