Âmago da Meia-noite escrita por Shantalas


Capítulo 3
A sociedade da Mata Viva


Notas iniciais do capítulo

Parte dois de dois



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Daniel sai empolgado, mas em vez de Glenn lhe seguir, é Sangue-de-Dragão que vem em seu encalço. Os dois andam depressa sem dizer nada. Cruzam pelo meio do acampamento e dos idosos. Passam pela clareira onde a panela de pedra, que fervia água com inúmeras folhas, exalava um cheiro doce. Vão direto para além das árvores de cedro, até chegarem em um largo carvalho. Dois homens bem velhos se aconchegavam entre as raízes grandes.

O homem mais velho dos dois tinha a pele seca, bem enrugada, cabelos longos e brancos, com barba igualmente alva e farta. Vestia uma túnica amarela que um dia fora branca, cheia de remendos e furos. Carregava um pedaço de pau com a ponta de cima torcida, era mal talhada e escura. O outro homem era negro, com longos cabelos trançados que chegavam até a cintura. Possuía um cavanhaque e usava um manto cinza velho.

— Algum problema com os visitantes? – O idoso negro chamado Mogno perguntou. O outro velho pareceu não dar importância a presença dos dois.

— Nenhum, senhor, apenas que eles são insistentes. Vim pedir permissão para uma abordagem que os faça mudar de ideia – Sangue-de-Dragão fala.

— Violência nunca é a solução – Mogno se levanta ajeitando suas longas tranças.

— Existem outras opções – Sangue-de-Dragão diz em tom sombrio.

— Com licença, ancião – Daniel diz estendendo o pergaminho ao homem mais velho, que olhava fixamente para seu cajado – o líder deles disse que era para o senhor... Senhora Bromelia me mandou vir lhe entregar.

— Não se incomode em ler - Sangue-de-Dragão diz rápido para o ancião.

O Ancião pega mesmo assim, murmura um obrigado e rompe o selo real, depois abre lentamente o pergaminho e dá uma breve olhada, depois entrega a Mogno e pergunta com uma voz cansada:

— O que o rei quer?

Contrariado, Sangue-de-Dragão conta:

— A princesa foi ferida e está à beira da morte, o rei deles exige a sua ajuda.

— A princesa, ferida? – Mogno diz surpreso – Que fato curioso, mas infelizmente é contra nossas regras ajudar esse tipo de gente.

— Eles não nos entendem – Sangue-de-Dragão fala controlando sua irritação – Deixe-me voltar lá e expulsá-los.

— Vamos ajudar.

O ancião fala e todos ficam surpresos. Sangue-de-Dragão não gosta da ideia e luta para não dizer nada. Daniel fica empolgado e Mogno comenta após refletir por uns instantes:

— Nesse caso, quem o senhor mandará?

— Deixe me ir então – Sangue-de-Dragão diz subitamente decidido – Sou o que melhor se comunica na forma desse pessoal. Não vou me sujar.

— Daniel irá.

Mas uma vez todos ficam surpresos. Daniel olha de Mogno para Sangue-de-Dragão confuso e diz:

— Eu? Não sou bom com as ervas de cura ainda...

— Você servirá – O ancião confirma.

— Ele não está pronto – Sangue-de-Dragão lutava para não questionar, mas não conseguiu frear suas palavras - Se vamos fazer contato com esse povo, eu sou o mais preparado! Ele é muito novo para voltar para a sociedade deles.

— Essa é a questão – O ancião diz sem ânimo para o assunto - você tem vivência demais com eles, Daniel tem pouca, isso vai ser bom para o aprendizado dele.

— Não gosto de contestar suas decisões – Mogno entra na pauta cauteloso – Também não acho que Dragão seja a pessoa certa pra ir de novo até o meio deles, mas o garoto é muito novo, ele pode se perder. Talvez alguém com um pouco mais de experiência.

— Não vai ser nada demorado – O ancião fala – Veremos o que pode ser feito pela princesa e ele estará de volta. Talvez não demore nem um dia.

— Mas ele comentou algo sobre Goblins, talvez seja perigoso para ele de verdade – Sangue-de-Dragão diz em tom frustrado.

— Se quer dar experiência a ele, senhor – Mogno ia falando devagar – Mande um dos nossos com ele, Barbasco fará um bom trabalho.

Como se estivesse com dor de cabeça, o ancião se coça, respira fundo e diz:

— Ela não está pronta para estar no meio deles.

— Então mande Jaborandi – Mogno diz começando a expressar preocupação.

— Alguém que possa proteger o garoto – Sangue-de-Dragão complementa, com um fraco tom de esperança na voz.

— Jaborandi não, irá contaminar a experiência do garoto – O ancião observa Daniel como se o rapaz fosse um fardo – Para ajudar você, mandarei um deles então.

— Um deles? – Mogno questiona

— Kalisto – o ancião diz se levantando com dificuldade. Apoiando-se na raiz e no cajado.

— O que!? – Sangue-de-Dragão diz completamente contra – Mas ele é....

— Já chega Dragão! – Mogno corta, já cansado do assunto – Respeite a decisão do ancião. Se assim ele julga melhor, não temos respaldo para questionar.

Sangue-de-Dragão, ressentido, observa Daniel como se houvesse culpa nele. O ancião vai andando devagar, retornando para a área dos cedros. Mogno observa o pergaminho reparando como era pequeno, ele abre e se depara com apenas uma curta frase.

— O que tem escrito? – Sangue-de-Dragão pergunta.

— Você sabe ler, não é Daniel? – Mogno entrega ao rapaz que pega o pergaminho se perguntando se era certo ler o que estava escrito ali.

Estava escrito em tinta preta:

Você me deve. Assinado: Rei da Gleba-Rubra Claus Donmark Primeiro.

Surpreso e envergonhado, por estar se sentindo invasor da privacidade do ancião, ele corre os olhos pelo pergaminho de forma copiosa:

— Peço, encarecidamente, a ajuda do ancião Umbuzeiro, líder da Sociedade da Mata.

Mogno fita Daniel com ar de dúvida e Sangue-de-Dragão parecia estar prestes a descontar sua frustração no rapaz que resolve sair depressa.

— Com licença – Daniel diz saindo e guardando o pergaminho. Ele sentia que algo de errado estava acontecendo e por tudo que o ancião havia feito em seu favor, se sentiu na obrigação de retribuir.

Em outra localização da mata dos cedros, não tão distante da clareira em que ervas cozinhavam, um homem acariciava a cabeça de uma mulher. O ancião vinha se aproximando deles a passos lentos. Daniel ia mais devagar, quase seguindo o velho homem alvo. Avistou de longe o casal e achou muito estranho os dois juntos e, quase instintivamente, se escondeu atrás de uma árvore repleta de trepadeiras.

A mulher era mais velha, mas sua pele de bronze escondia muitos anos de sua idade. Era bonita, cabelo longo, liso e sedoso e de cor preta. Vestia um roupão folgado marrom que escondia suas curvas. Estava deitada no colo de um rapaz branco. Esse estava no auge da idade adulta. Os cabelos e barba negros e desgrenhados. Sua vestimenta era um estranho perponto cinza que perdera o acolchoamento.

A mulher, que estava quase dormindo com sua cabeça sendo acariciada, não percebeu quando o ancião se aproximou vindo de um ponto cego para ela. O rapaz não esboçou reação alguma, apenas olhou sério na direção do velho.

— Eu estava ainda há pouco falando de você, Barbasco – Diz o ancião com quase imperceptível tom de ironia.

— Ancião! – Barbasco se espanta como se houvesse espinhos no colo do homem – Nós só estávamos...

— O que é pior? O erro ou a mentira para encobrir?

A mulher se cala e fica envergonhada. Seu parceiro esconde um sorriso no canto da boca, ele e o ancião se encaram até o velho fazer um sinal com a mão chamando Barbasco que se aproxima obediente.

— Não tente encobrir seus erros, assuma e tente evitar os próximos.

— Tudo bem ancião, me desculpe. – Barbasco não conseguia encará-lo.

— Pelo menos não usou um dos rapazes especiais. O último ficou cheio de culpa, espero que tenha aprendido...

— Não senhor, nunca mais farei aquilo.

— Foi tudo bem? – O ancião pergunta de forma natural. Barbasco pareceu não compreender a pergunta

— O que?

— Nada – O ancião diz mudando o foco para o homem de perponto – Deixe – me ter uma palavra com Kalisto.

— Ah – Barbasco olha constrangida para o rapaz – Ele não... A culpa foi minha.

— Eu sei. Apenas nos deixe.

O ancião encerra com ela de forma abrupta. Barbasco ainda dá uma última olhadela para Kal que retribui piscando um olho e depois se retira por um caminho diferente do qual Daniel se esgueirava. Aliviado por não ter sido descoberto, Daniel apura os ouvidos para o diálogo que viria.

— Kal, você não deveria. – O ancião diz cansado.

— Não é você quem diz que devo me ressocializar e me conectar com o próximo? – Kal diz com um sorriso cínico.

O ancião o estuda com os olhos e diz:

— Significa que você está mais do que preparado para retornar.

— Como? – O sorriso do rapaz some.

— Eu tenho uma missão para você.

— Vai me punir por causa disso? – Kal aponta na direção em que Barbasco foi.

— Não.

— Aquela mulher treparia com uma árvore se tivesse um pinto.

— Já disse que não. Não tem nada a ver com Barbasco. Você até pode retornar aqui, ao final do serviço – O ancião se apoia no cajado, prevendo a extensão da conversa.

— Está me liberando? – Kal pergunta incrédulo.

— Sim.

— Estou curado?

— Não, mas está na hora de retornar ao seu povo – Disse o ancião sem rodeios.

Kalisto se levanta mostrando ser mais alto que o ancião, ele passa a mão por seu cabelo encaracolado e diz inseguro:

— Não estou pronto.

— Nunca estaremos prontos se não nos disponibilizarmos. – O ancião diz cada vez mais cansado.

— Não irei. – Kal se vira começando a se irritar.

— Uma princesa está sob risco de vida, você dará suporte a Daniel que irá ajudar a curá-la – O ancião fala, ignorando o descontentamento de Kal.

Daniel sabia que todos que estavam na sociedade da mata tinham ou tiveram um problema. Bromelia costumava dizer a todos que após seu terceiro filho, passou a sentir dores horríveis ao evacuar e pra ela era quase impossível andar a cavalo. Um dia, o monge do castelo do reino de Septhum recebeu uma ordem de seu marido para que a curasse das dores, no entanto, o tratamento era queimá-la no ânus com um ferro em brasa. Ela fugiu tão alucinada do castelo que não se lembra como foi parar na floresta, onde o ancião a curou e ela jamais quis voltar ao castelo.

Os idosos que ali se achavam, eram em sua maioria dementes, acordavam uma hora lúcidos, poucas horas depois eram crianças confundindo os outros com seus parentes. As pessoas como Glenn eram chamados mongóis, os pais costumavam matar os filhos que nasciam daquela forma, os que não tinham coragem de fazer, os abandonavam na floresta e o ancião os recolhia.

Fazia pouco mais de um ano que Daniel estava com eles e Kalisto já estava na tribo quando ele chegou. Sempre longe, sem se misturar, passando a maior parte do tempo isolado. Daniel nunca quis saber do problema dos outros, mas sempre lhe contavam para que pudesse aprender algo com isso, porém, ninguém nunca lhe disse nada sobre o que ocorrera com Kalisto.

— Kal – O ancião diz baixo, Daniel quase não entendia. – Por favor – Havia um estranho tom de súplica em sua voz, era triste de se ouvir – Nunca lhe pedi nada.

— Eu tenho medo, não sou como eles, você sabe – Havia um sincero medo no tom de voz de Kal.

O Ancião se aproxima dele pegando seu braço. Kal entrega de boa vontade. A manga longa do perponto é erguida até surgir uma parte do antebraço. O velho puxa de dentro de sua vestimenta uma faca de pedra que usava normalmente para cortar frutas. Então o ancião olha nos olhos de Kal e faz um pequeno corte no braço dele e diz, após se certificar que o sangue saia vermelho:

— Vê? Apenas um humano.

Daniel expôs mais da metade de seu tronco para conseguir ver o que ocorria. Kal estava atônito olhando o corte, o ancião segura em seu ombro empurrando-o na direção de Daniel e diz:

— Agora vá e tire esse impasse das minhas costas.

Daniel percebe que foi visto e tenta parecer natural, como se estivesse chegando, se sentindo embaraçado. Kal passa a mão no corte limpando o sangue e coloca a manga no lugar, depois, olhando o garoto, ele indaga em voz alta:

— Estamos saindo agora?

Daniel se aproxima devagar, esperando que o Ancião dissesse algo, mas após perceber que nada seria dito, ele responde:

— Os homens do rei estão nos esperando.

— Vou pegar a espada de prata e estamos saindo.


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