Âmago da Meia-noite escrita por Shantalas


Capítulo 19
Umbuzeiro


Notas iniciais do capítulo

Parte III de III



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— SEU TOLO INCURÁVEL! POR QUE FOI QUE VOCÊ USOU A MAGIA PROIBIDA?
O velho havia se erguido e largado seu clássico cajado no chão. Seu rosto enrugado se contorcia em fúria e decepção. Bromélia segura seu braço com força e chama seu nome em tom de um aviso amigável:
— Umbuzeiro.
Os membros mais distantes da reunião observavam em choque a reação do ancião, mas ele não parecia ligar para eles. Apenas se libertou da mão de Bromélia com suavidade e deu as costas para Daniel, apoiando uma mão no troco da sequoia.
— Você não prometeu ao ancião que jamais usaria isso novamente? – Mogno pergunta com piedade.
Daniel estava a ponto de chorar, sentia a garganta seca e as pernas tremerem. Seu estômago embrulhava com o breve desjejum que tivera, a comida parecia girar várias vezes deixando-o enjoado.
— Eu – Ele diz atordoado – Eu achei que usar para o bem...
— Você a salvou? – O Ancião se vira rápido para olhar o garoto, mais rápido que um senhor da idade dele poderia fazer.
— Eu não... – Os olhos de Daniel logo marejam e sua garganta parece travada com uma imensa pedra.
— O que foi que eu lhe disse sobre essa magia? – O ancião pressiona, havia mais do que simples decepção em sua voz, mais do que ira.
— Que ela era maligna – lágrimas cortam as bochechas dele.
Bromélia se levanta e pega mais uma vez o Ancião pelo braço, tentando afastar sem usar a força. Ele cede e se afasta um pouco de Daniel, mostrando cansaço.
—Por que foi que me enviou? - Daniel quis saber com uma pontada de irritação. 
Esfregou os olhos com força e disse expressando mais emoção do que pretendia:
— Eu achei que o senhor quisesse isso de mim.
— O que? – O ancião volta a se aproximar de Daniel como se estivesse ofendido – Você achou que EU queria que esse poder fosse usado?
O ancião agarra Daniel pela nuca sem delicadeza, por um instante pareceu que ele fosse agredir seu pupilo, então o garoto sente como se sua vida se esvaísse. Como se sua alma estivesse sendo puxada do corpo pelo pescoço, todas as noções de peso e estabilidade terrestre somem. 
Daniel sente como se pudesse voar na brisa do vento e fica realmente alegre apenas com a ideia de ser como uma folha de outono. Ele poderia cair da copa da árvore e se deixar levar pelo vento, sem se preocupar com nada na vida, nem mesmo com a sua morte, pois no chão, se tornaria fonte de alimento para sua árvore de origem. Só de saber que sua morte teria um destino tão nobre, ele se achava feliz.
Todas as sensações ruins que Daniel sentia foram embora, mas ele tinha plena noção que era imaturo e culpado de quebrar sua palavra com o Ancião. Todos ao redor deles observavam como estátuas. Mogno e Bromélia eram os únicos que pareciam temer o recém fechado punho de seu líder.
Para quem olhou, parecia que algo invisível fora arrancado da nuca do garoto. O velho levanta o punho trêmulo acima da cabeça, como se algo pesado estivesse preso entre seus dedos, então vai até a sequoia e espalma a mão nela, dizendo tristonho:
— Esta árvore tinha o potencial de viver centenas de anos e agora inocentemente vai pagar pelo seu erro.
Subitamente o tronco começa a secar, as folhas se encolhem e ficam negras, alguns galhos racham com um ruído. Os galhos menores secam e se partem com o próprio peso. Os dois corvos levantam e se retiram crocitando, em menos de um minuto a árvore estava morta.
Todos viram seu rosto para cima quando o vento forte derruba as folhas ressacadas e em vez da bonita cor de cobre do outono, o que se precipita é um pó negro que lacrimeja os olhos de Barbasco e tingem algumas partes do vermelho vivo nos cabelos de Bromélia. Aquela cena parecia trazer alguma memória tenebrosa à mente de Sangue-de-Dragão, pois ele aparava o pó negro em suas mãos com uma expressão abismada.
O líder deles não ficou para ver a queda do pó das folhas, ele simplesmente pegou seu cajado e foi embora. Daniel o seguiu para longe da sequoia morta.
— Espere Ancião, você é o único que pode parar aquela bruxa e salvar a princesa.
— E porque eu deveria fazer isso? – O Ancião recuperou sua compostura, mas não parou para conversar, nem olhou Daniel.
— Porque é o certo a se fazer, você não ajuda as pessoas?
Mogno, Jaborandi e Sangue-de-Dragão vieram logo atrás de Daniel. Os dois corvos seguiram seu dono pousando em uma arvore próxima.
— Não nessa situação, não nos envolvemos com esse povo.
— E quanto a isso? – Daniel puxou o pergaminho que o Rei havia enviado e jogou na frente do ancião fazendo-o parar de andar – Aí diz: “você me deve”. O senhor tem uma dívida com o rei.
— Eu o impedi que matasse Kal, agora que Kal está de volta às mãos dele, não devo mais nada.
— O senhor ajudou Kal! – Daniel diz frustrado – Um assassino, porque não pode ajudar a princesa, uma vítima?
— Eu ajudo pessoas delas mesmas – O ancião voltou a andar.
— Por que? – Daniel diz em voz alta.
— Já chega Daniel – Jaborandi corta. – Você já está exagerando, sabe das regras da Sociedade, não ajudamos essas pessoas.
— Mas essas pessoas são iguais a nós! Pessoas que precisam da ajuda de outros. – O aprendiz diz inconformado.
— Não, eles não são. Eles vivem num ciclo vicioso e pagam pelas próprias atitudes. – Jaborandi replica cheio de razão.
Daniel olha calado para seu professor deixando a tensão entre eles aumentar. Então balança a cabeça dizendo:
— Não, isso não está certo. Eu não posso viver com isso.
— Não pode viver com isso? Foi sua regra por mais de um ano – Jaborandi responde perplexo.
— Estou partindo.
Daniel vira as costas para Jaborandi, encarando Mogno e Sangue-de-Dragão que estavam logo ali assistindo. O velho negro o observa triste e coloca a mão em seu ombro.
— Não tente - Daniel diz e sai pelo meio dos dois, esbarrando em Sangue-de-Dragão.
— Eles prometeram alguma coisa pra você? – Jaborandi quase grita a alguns metros de distância – Partindo assim, você só vai dar razão para o que o Ancião pensa de você, apenas uma criança!
— Tem certeza que quer tomar essa decisão agora? – Bromélia pergunta em quanto ele passa por perto da árvore ressecada.
— Já estava decidido – Daniel diz – A forma como eu penso é diferente de como vocês pensam. Não vou negar ajuda a alguém que precise.
— É mais complicado do que isso – A ruiva fala a ele com tristeza.
Daniel para de andar, ele se vira para olhar Bromélia nos olhos. Era como se, pela primeira vez em muito tempo, ele soubesse o que deveria fazer.
— Talvez seja complicado demais pra minha cabeça de criança entender.
A anciã entendeu. Ele não estava rancoroso, mas decepcionado por nunca terem levado ele a sério. Os olhos dela vacilaram quando notou seu erro e ficou sem palavras para dizer e tentar manter o garoto ali.
Barbasco apenas se aproximou devagar enquanto Daniel falava e após o fim da curta troca de palavras, ela o abraçou de um jeito materno. Beijou sua cabeça e acariciou suas costas.
— Volte para nós quando terminar o que tem para fazer. - Barbasco disse e os dois se separaram. 
Então o garoto começou a se sentir em ritmo de despedida e pensou que provavelmente o ancião não o aceitaria. Seus olhos voltaram pelo caminho que ele veio, todos por quem ele passou, ainda o olhavam. Barbasco, Bromélia e, alguns passos logo após a árvore, Sangue-de-Dragão incrédulo e Mogno perplexo e mais adiante Jaborandi, que pela sua expressão, parecia achar que Daniel iria voltar a qualquer instante. No fundo, já quase fora do campo de visão, o Ancião caminhava indiferente, indo cada vez mais para longe.
— Tchau.
Ele disse e foi embora.
Bromélia sentou-se. Barbasco ficou olhando Daniel partir, saindo do acampamento. Jaborandi balançou a cabeça desacreditado e foi caminhando irredutível na direção do seu aluno, porém Sangue-de-Dragão segurou seu ombro, o homem era alto e forte.
— Deixe ele ir, fez sua escolha.
— Você é louco? É só uma criança – Jaborandi tentou tirar a mão grande do companheiro do ombro.
De algum lugar dos céus, o gavião veio muito veloz e cravou suas patas com força no mesmo galho em que estavam dos dois corvos. Algumas folhas caíram com o impacto e as três aves se estranham, sendo que um dos corvos voo para longe crocitando com receio.
— Ele não é seu filho – Sangue-de-Dragão vocifera, como se estivesse segurando seu transtorno por tempo demais.
— Você está certo – Jaborandi recua olhando-o nos olhos.
Mogno não ficou para ver o que aconteceu depois. Ele ficou congelado esse tempo todo com os olhos fixos no chão, até que, como se tivesse levado um choque, ele anda atrás do ancião. 
O velho líder já estava sozinho, afastado em meio a mata. Ele parou quando percebeu que alguém o seguia até ali. Mogno passou por ele e ficou em sua frente. O Ancião estava cansado e impaciente, ele simplesmente respirou fundo e prendeu a respiração quando Mogno começou a falar.
— Vai deixa-lo ir embora assim? Pensando que somos um bando de egoístas?
Umbuzeiro soltou o ar demoradamente, então balançou sua cabeça de um lado para o outro vagarosamente.
— Olha Mogno, porque você acha que esse garoto quer tanto voltar? – O ancião esperou menos que um segundo e quando Mogno ia responder ele falou – Pra ajudar, você vai dizer, mas será que é mesmo?
Havia algo de estranho no jeito que Umbuzeiro falava, como se ele explicasse pela centésima vez para alguém o porque das águas descerem o rio em vez de subirem o rio. Mogno ouvia tudo aquilo como se o Ancião fosse um estranho a ele.
— Me diga, quando o altruísmo acaba e começa a surgir glória? Quando a boa vontade se vai e o interesse surge?
— Do que você está falando? – Mogno diz horrorizado – Pensa mesmo igual Jaborandi? Acha que o garoto está atrás de recompensa?
— Me diga do que você está atrás Mogno? – O velho sombrio se vira, querendo encerrar conversa.
Mogno abriu a boca para responder, mas lembrou que o ancião detestava mentiras. Então balbuciou nervoso:
— Não vou desistir dele.
Mas a frase pareceu ter sido dita mais para ele mesmo do que para o Ancião que foi embora, indiferente.


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