Âmago da Meia-noite escrita por Shantalas


Capítulo 18
Umbuzeiro


Notas iniciais do capítulo

Parte II de III



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Daniel se sente subitamente indefeso na companhia de apenas um soldado. Yan, lendo a expressão do garoto, o tranquiliza.
— Não se preocupe. Vamos ficar bem. Basta amarrarmos os cavalos na beira do rio e nos esconder na floresta. Sabe nadar?
Daniel afirma com a cabeça e eles fazem isso. Yan retira da bolsa no dorso no cavalo uma estaca e corda. O soldado fixa os cavalos dando 5 metros de corda pra cada, próximo ao rio. Depois ele remove sua armadura de metal, a envolve no manto vermelho e deixa em cima do cavalo.
Os dois atravessam o rio a nado sem dificuldade. Enquanto se escondiam na floresta, certificaram- se que teriam um olhar livre para os cavalos e a planície próxima do castelo. Após acharem um local adequado e escondido, Daniel pergunta ao soldado:
— Certeza que isso é uma boa ideia?
— Não acho que alguém esteja nos seguindo, mas se estiver, ele deve se esconder na floresta. A essa altura já nos viu entrando aqui, então se ele quiser continuar a nos seguir, vai ter que vir do rio para seguir nosso rastro, só que ele saberia que só estamos sendo cautelosos, então vai esperar pra ver.
— Ou nos emboscar aqui.
— É difícil.
— Não se ele for a bruxa.
E com essa suposição sinistra de Daniel, ele esperam e esperam. Ficam na mata por mais de uma hora sem nada acontecer. Os cavalos vagueavam impacientes na beira no rio. O Palafrem das madames mastigava a grama que estava próxima e as vezes mordia a corda que o segurava.
Daniel já havia subido até o topo da árvore e voltando duas vezes, na terceira vez que ia subir, Yan brigou com ele. O soldado parecia ser feito de rocha, ficava o tempo todo parado observando à distância, de tempos em tempos abria e fechava os punhos consecutivamente ou esticava os pés. Fora isso, ele mal de mexia. Sua espada estava bem afivelada na cintura. Em sua inquietação, Daniel se pegava encarando-a as vezes, se perguntando como deve ter sido horrível para a garota criada ter sido morta com uma dessas armas.
Lembrar-se da garota morta lhe causou um calafrio quase sobrenatural. Ele vira mais de uma dúzia de corpos de meninas em sua infância e nunca ficou chocado, mas por algum motivo ele sentia aquela morte mais do que qualquer outra. Ele não sabia dizer se o Ancião havia restaurado sua humanidade perdida com a influência do padrasto ou se era um efeito colateral da magia da sombra.
— Quanto tempo você acha que eles demorariam pra ir e voltar do acampamento? – Yan quebra o silêncio de mais de meia hora entre eles.
— Na velocidade em que foram, já deu tempo de ir e voltar.
— Algo não está certo.
Yan mal terminou de dizer a frase e um barulho próximo é ouvido. Os dois congelam e o soldado segura o cabo da espada. Então o barulho aumenta, era sutil, mas dava pra distinguir alguma coisa se movendo pela mata fechada que escolheram para ficar em suas costas.
O coração de Daniel começou a dar socos no peito. Yan faz sinal para ele ficar pra trás e o garoto obedece. A lâmina se liberta aos poucos nas mãos do soldado. Alguma coisa se aproximava, os arbustos apertados entre si começavam a se mover e então Yan se prepara para o combate.
— Não há necessidade para isso meu jovem.
Diz uma voz familiar e Daniel a reconheceu, o homem que lhe ensinara mais coisas na mata viva, Jaborandi. O idoso surge tranquilo, usando uns farrapos como roupa e um belo gavião no ombro.
— Tudo bem, ele é meu amigo – Daniel assume a frente e faz um sinal para Yan baixar a espada.
— Como nos achou? – Quis saber Yan, desconfiado.
— Suas presenças nessa floresta não teriam como passar despercebidas pelos olhos do meu amigo aqui.
O velho levanta a mão que é beliscada pelo afiado bico do pássaro. A criatura era parda com a barriga rajada entre branco e preto. Possuía um palmo e meio de altura com olhos grandes e amarelos. Com suas garras compridas, Segurava-se firme no ombro do velho, mas de alguma forma não o feria.
Yan encarava os profundos olhos do pássaro, havia uma sincera dúvida em seu semblante, prevendo o que ele perguntaria, Daniel responde:
— Ele consegue se comunicar com o animal. Na verdade é mais que isso.
— De verdade? – O soldado levanta uma sobrancelha.
— Ele é meu amigo – Jaborandi responde misterioso.
Enquanto Yan decidia se era verdade ou não o que eles diziam, resolveu embainhar a espada, mas manteve a mão no cabo. Daniel se aproxima de seu professor e pergunta:
— O que aconteceu?
— Eu ia perguntar a mesma coisa – Jaborandi fala surpreso.
— Eles estavam me escoltando para o acampamento – Daniel diz afoito – Mas o Duque disse outro caminho.
— Outro caminho? – Jaborandi mexe em sua longa barba, não possuía a mesma glória da alva e farda barba do Ancião, mas era de igual respeito. – Que outro caminho foi esse que ele mandou vocês?
— Subindo o rio.
— Sim. – O idoso diz sem compreender- Foi esse caminho mesmo que mandamos a mensagem. Nós nos mudamos.
— O que? Por quê? – Daniel franze o cenho, sentindo-se perdido.
— O ancião disse que não queria mais se envolver nos problemas do reino. – Jaborandi responde como se fosse algo óbvio. – Por que seus cavalos estão ali?
— Nós estávamos esperando pra ver se alguém nos perseguia. – Daniel responde.
— Porque alguém faria isso? – Jaborandi indaga, reparando em como o garoto estava elétrico.
— Muita coisa aconteceu – Daniel responde, no caminho eu explico, mas agora precisamos saber o que aconteceu com os outros guardas.
— Pra onde eles foram?
— Eles foram procurar o nosso antigo acampamento.
O ancião ficou chocado quando ouviu isso. Ele arregalou os olhos e disse com mais energia:
— Porque eles fizeram isso?
— Como eu disse – O garoto fica apreensivo – Estávamos desconfiados.
— Tem algum problema lá? – Yan diz ficando preocupado.
— Nós não nos envolvemos. – O velho diz nervoso.
— O que diabos isso significa? – Yan começa a se alterar.
O gavião se agita e aperta o ombro do velho, se equilibrando. Seus olhos ficam mais intensos e visando o soldado.
— Yan – Daniel chama. Ele estava prevendo o que aconteceria – A sociedade da Mata Viva não se envolve com assuntos exteriores. Coisas como cidades, vilas, reinos, organizações, tudo que tenha um caráter social de qualquer escala.
O soldado fez uma careta de incompreensão, mas resolveu não comentar nada. Jaborandi respirou fundo e passando a mão pelo topo da cabeça ele diz:
— Vamos todos para o acampamento, de lá vou procurar pelos outros.
— Vou esperar aqui. Cumprimos nossa missão – Yan diz saindo do esconderijo e seguindo em direção ao rio.
Jaborandi balança a cabeça negativamente. Daniel percebeu que o ancião escondia algo. Então perguntou:
— Porque se mudaram de ontem pra hoje?
O velho hesitou, então respondeu.
— Um exército de Goblins se movendo naquela área.
Yan não estava longe quando ouviu. O homem parou, então virou irado e avançou contra o velho gritando:
— Você não ia me contar isso? – Daniel se meteu na frente – Qual o seu problema? Meus amigos devem estar mortos agora! Porque não avisaram o Duque?
— Eles não iram para o seu reino, estão de passagem.
— Você sabia que dezesseis Goblins atentaram contra a vida da princesa? – Yan empurrou o garoto longe que se estatelou em um arbusto – De onde você acha que eles vieram?
— Nós não nos envolvemos! – Gritou o velho de volta.
— Mais vai se envolver! – Yan sacou a espada e vociferou – Quantos eram?
— Não há necessidade para sua pobre violência.- o velho põe uma mão entre eles - Eram cerca de uma centena e organizados como um exército.
— De onde e para onde? – Diz o soldado autoritário.
— Vieram das profundezas da Floresta Soturna e fizeram acampamento na margem da floresta.
O homem irado ergue sua mão para o velho, Daniel grita para ele não fazer nada, mas é a ave quem o intimida. O gavião se posicionou, prestes a voar, tirou sangue do velho com as garras fincadas no ombro.
— Você não vai ganhar nada com isso! – Daniel se aproxima ficando entre eles.
— Se meus amigos estiverem mortos, vou tirar sangue de vocês!
Yan ameaça e se afasta rápido, seguindo em direção ao rio. Daniel o observa nadando o rio rapidamente, era uma passagem estreita, mas que mataria afogado o mais desavisado nadador.
— Vamos Daniel. Deixe que os homens cuidem de suas coisas. – O gavião levanta voo quando Jaborandi massageia o ombro ferido, felizmente os machucados não eram graves.
O rapaz baixou a cabeça e o seguiu. Os dois seguiram por dentro da floresta. Daniel contou tudo o que ocorreu nesse tempo em que esteve fora. Jaborandi lhe fazia perguntas precisas que iam destrinchando a história.
O velho coça suas duas entradas calvas na cabeça, enquanto eles atravessavam com facilidade um território de mata densa. Incomodado com os frequentes galhos de arbustos e mato alto o gavião voava alto sobre suas cabeças, dando rasantes esporádicos para tentar capturar pássaros menores.
— Existe uma parte que não ficou clara para mim – Jaborandi pergunta de um jeito que Daniel conhecia bem, ele já tinha a resposta, mas queria ouvir da boca dele – Como você, um aprendiz de curandeiro, conseguiu enfrentar o espectro da bruxa no corpo da garota?
Daniel omitira algumas partes da história de propósito na esperança de ninguém perceber que ele quebrou a promessa com o Ancião. Só que ele sabia, era inevitável, eles saberiam, mas tinha um parte dele que dizia: O ancião queria isso.
— Eu usei o que eu sabia sobre hóspede amigo e inseri minha projeção mágica na mente dela, foi realmente um golpe de sorte...
— Você está mentindo – Jaborandi diz severo – É bom que não conte essa desculpa esfarrapada para o Ancião, ele detesta mentiras.
Os dois atingem uma região onde a floresta era mais aberta e as árvores mais espaçadas. Ali o acampamento se desenrolava, as cabanas distribuídas de qualquer jeito. Idosos com o cabelo de variadas intensidades de branco, pessoas de olhos redondos e algumas poucas pessoas jovens. Glenn acenou para Daniel, ele estava com a esposa e o filho de colo. Logo se aproximou e disse:
— Venha almoçar conosco.
— Ele vai ter uma conversa com o ancião e depois se junta a vocês – Jaborandi responde
— Vou aguardar – Glenn sorri alegre – Aposto que tem boas histórias sobre o mundo lá fora.
— Não tão boas quanto você pensa – Daniel sorriu sem graça.
Eles andam pelo acampamento, Barbasco, com sua pele morena e longos cabelos negros se aproxima deles. Ela não diz nada, pela expressão de Jaborandi, já sabia que algo havia dado errado.
Prestes a sair da parte central do acampamento, Sangue-de-Dragão se aproxima lentamente, estava com seu macacão de urso e dois corvos pousados no ombro. Ele não foi até eles, apenas se dirigiu até onde eles iam, local que logo Daniel viu, um pouco afastado de todos, o Ancião descansava sentado em uma raiz peculiarmente conveniente para alguém repousar. Mogno encontrava-se ao lado direito do Ancião, seus longos dreads quase tocando o chão e a ruiva anciã Bromélia acomodava-se ocupando o outro lado.
Todos se reuniram ali, embaixo de uma sequoia jovem, com pouco mais de 10 metros de altura. De repente, Daniel se viu cercado, com Barbasco, Sangue-de-Dragão e Jaborandi logo atrás dele. Ele olhou o Ancião nos olhos, o frágil idoso parecia triste ou cansado.
— Diga a eles – Jaborandi incentivou.
Todos sempre esperavam que o ancião tomasse alguma iniciativa nas reuniões, mas sua postura era sempre imprevisível. Alguns poucos assuntos ele tomava a liderança, muitas vezes os mesmos assuntos ele nada dizia. Alguns debates entre eles, o ancião nem mesmo se movia, mesmo quando aparentava ser o momento de ele interromper quando alguém do círculo se excedia. Um olhar mais desavisado da comunidade, iria alegar que o ancião chefe era Bromélia, que sempre agia com carisma e paciência, muitas vezes tomando as decisões pelo Ancião.
Essa postura peculiar fez Daniel achar por um tempo, que o ancião não passava de um velho folgado. Mas todos ao redor dele sempre tinham um motivo na ponta da língua para defender seu líder. O motivo que Jaborandi mais usava para justificar a atitude do Ancião era que ele se ausentava para aprendermos alguma coisa, como por exemplo tomar uma atitude por conta própria.
Antes de começar, o aprendiz de curandeiro observou o rosto de todos. O Ancião estava cansado. Bromélia tinha um leve sorriso nos lábios e uma feição que passava confiança, era a idosa mais linda que Daniel já vira. Barbasco parecia tensa em seu roupão de tecido grosso. Jaborandi estava estranhamente obstinado. Sangue-de-Dragão permanecia com sua cara carrancuda, mas também preocupado e Mogno estava reflexivo.
— Certo – Daniel começou e mais uma vez contou toda a história sem ser interrompido. Ele não mencionou a princesa, dizendo apenas que falhou, mas irritou a bruxa.
Jaborandi ficou decepcionado, balançado o rosto o tempo todo em desaprovação. Sangue-de-Dragão logo quis saber:
— A bruxa tentou matá-lo?
Barbasco massageou o ombro do garoto perguntando preocupada:
— Ela lançou algum feitiço em você? Está tudo bem?
— Estou bem – Daniel responde envergonhado – Ela não... Conseguiu me atingir.
— Isso é um machucado no seu pescoço? – Barbasco se aproxima examinando o garoto.
— Deixe me ver. - Sangue-de-Dragão afasta a mulher sem delicadeza e pega o garoto pelo braço movendo seu queixo para cima de forma bruta – Isso é marca de estrangulamento!
Os corvos voam com a agitação de seu dono e pousam no galho mais baixo da sequoia. Um bica o outro e eles ficam separados.
— Pelos deuses! – Mogno se aproxima examinando.
— Parece que tem algumas partes faltando nessa história - Bromélia diz olhando para Jaborandi.
— Devo contar? – Jaborandi pergunta - Ou você o faz?
— Tudo bem – Daniel se aproxima do Ancião. Ele estava decepcionado consigo, mas lá no fundo, esperava que o ancião o parabenizasse, afinal, o idoso era sempre imprevisível – Eu me senti pressionado quando todos eles imploraram por minha ajuda, mas eu sabia que não tinha capacidade o suficiente, mas aquelas pessoas sofriam tanto...
Quando ele se lembrou, se emocionou, sua voz ficou fragilizada. O ancião então observou Daniel de verdade pela primeira vez desde que chegara. Não era mais aquele olhar nublado que ele sempre tinha, estava mesmo prestando atenção no garoto e ele ganhou confiança na sua narrativa.
— Então eu percebi que a única maneira que tinha de ajudar a princesa era usar os mesmos meios que a bruxa, usar seu próprio veneno.
— Não me diga que usou a magia sombria – Mogno perguntou em tom de choro, mas ainda respeitável.
— Usei, eu entrei...
— VOCÊ ESTÁ BRINCANDO COMIGO? – O ancião explode – POR ACASO É UM MALDITO RETARDADO?
Daniel não sabia o que dizer, seus olhos se arregalaram de espanto. Todos estavam igualmente espantados e sem reação, exceto Bromélia que fechou os olhos e colocou a mão na testa.
— SEU TOLO INCURÁVEL!


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