Âmago da Meia-noite escrita por Shantalas


Capítulo 17
Umbuzeiro


Notas iniciais do capítulo

Parte I de III



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Ele olha seu reflexo na água e percebe que estava sem seu manto de couro de jacaré, vestindo apenas uma camisa simples com calças, parecendo um garoto comum da cidade. Isso o irritava, fazia -o lembrar quando vagava em sua antiga vila, com uma aparência simples e feição impassível. Todos o viam como um garoto tranquilo qualquer, ninguém percebia que a ausência da agitação comum à idade significava algo terrível.
O palafrem das madames bebeu água próximo a ele e bagunçou sua imagem refletida nas águas lentas do rio. Palafrem das madames era o nome que os soldados da escolta deram ao animal. O motivo era óbvio, a montaria não corria rápido, era manhoso e parecia não gostar de ser montado por homens, apesar de não levar em consideração Daniel.
O fato foi constatado quando os guardas tentaram acelerar o passo, mas o garoto não os acompanhava. Deduziram que ele não sabia cavalgar, o que era comum entre os plebeus que viviam fora do castelo. Então colocaram Daniel montado junto com um deles e outro guiava o cavalo, só que não deu certo. Passaram a achar que o animal era temperamental e o mais experiente deles montou-o, mas mesmo assim ele se recusava a ir mais rápido.
Cada um dos homens tentaram o cavalo e o que melhor montava ele era o próprio Daniel. Isso fez com que o garoto virasse motivo de troça. Paladio, o soldado mais antigo deles, lembrou que as ordens do Duque eram para trazer um cavalo tranquilo, para alguém inexperiente em cavalgar e o garoto da estrebaria entregou justamente um cavalo para passeio de madames.
Ao terminar de beber a água, o palafrem expõe seu gigantesco pescoço mordiscando o sapato de Daniel. O garoto sabia, ele queria carinho, logo estende a mão e passa com força pela crina. O cavalo ergue sua cara achatada mordendo o freio em sua boca, incomodado. O aprendiz foi remover o aparelho.
— Ei madame, não tira a embocadura do cavalo.
Jin disse, caçoando. Era um dos guardas mais antigos, com mais de um ano de experiência. Daniel se perguntava quando as coisas fugiram de controle ao ponto desses soldados ficarem tão íntimos. Talvez tenha sido culpa dele, que assim que saíram da cidade ficou o tempo todo contando os fatos que o rodeavam. Falou tudo, desde de sua chegada no castelo até a morte da criada. Por estar nervoso com a situação anterior, o garoto deixou escapar comentários rápidos sobre a beleza da princesa Kalifa que, mais tarde ele descobriu, não passaram despercebidos.
— Se uma emboscada fosse acontecer, agora seria o momento – Paladio, o mais antigo de todos eles e o comandante, comentava observando ao redor.
Eles estavam na beira do rio, colocando seus cavalos para beber água, ali era próximo à floresta, que ficava logo que se atravessava o rio, no oeste. Ao leste, toda a paisagem era de uma planície repleta de plantações. Casarões se erguiam ao longe, parecendo minúsculos, distante uns dos outros. No sul, era possível ver a cidade e, em destaque, o castelo.
— Você está matando tempo aqui de propósito? – O novato Doug perguntou. Era primo de Paladio junto com outro soldado novato que estava ali, chamado Treves. Os dois eram primos, mas eram tão parecidos que se passariam facilmente por irmãos.
— Você está sendo muito óbvio – Yan disse. Era outro soldado, com um ano de experiência, da mesma época que Jin. – Se eu fosse um grupo de assassinos na espreita ficaria com medo.
— Uma criada morreu, o garoto se impressionou – Treves dizia – E dai? Não significa que alguém queira matá-lo.
— A história dele faz sentido. Eu tenho que ter certeza de que não estão nos seguindo – Paladio diz. Na visão de Daniel, ele parecia ser o único que transmitia alguma segurança.
A diferença de idade deles era pouca, o mais provável era que Paladio fosse uns cinco anos mais velho que os outros. Treves, Doug e o silencioso Kaiou pareciam estar no fim da adolescência e Jin e Yan um pouco mais velhos do que isso.
— Eu não tive um desjejum decente, vamos cuidar disso e dar o fora, o quanto antes – Treves fala massageando a barriga.
— Vocês parecem muito com um grupo de criadores de porco que saem juntos para tomar uma cerveja no fim do dia. – Daniel diz maldoso, tentando descontar um pouco a zombaria de outrora.
— Meu pai era criador de porcos, qual o problema? – Doug diz sínico.
— Não fale em porcos, estou com fome – Treves diz tristonho.
— O garoto está longe do castelo, fora de perigo – Yan comenta – Vamos continuar o caminho.
Paladio puxa sua montaria guiando-o para longe do rio, então sobe no cavalo dizendo:
— Tudo bem, vamos seguir, mas fiquem de olho nos Goblins.
Os seis soldados voltam para seus cavalos, Daniel faz o mesmo, subindo com habilidade. Eles disparam na frente estimulando suas montarias a uma saída rápida, o aprendiz logo fica para trás, tossindo contra uma nuvem de poeira.
— Vocês são uns idiotas, sabiam? – Daniel grita para ser ouvido.
— Melhor saber alguma mágica pra grudar sua língua depois de morder um pedaço dela. – Jin grita de volta se divertindo.
Eles forçaram o palafrem por bastante tempo, até se aproximarem da Floresta Soturna. Cruzaram ainda por algumas casas de camponeses à beira do rio e diques escavados vindos do rio para as plantações. Em uma região do rio mais larga e cheia de rochas, algumas camponesas lavavam roupa e entre elas algumas meninas novas sorriram para eles.
— Viagem longa – Jin diz diminuindo o passo do cavalo e sorrindo para Paladio e Yan, enquanto olhava para as lavadeiras.
Todos diminuem o ritmo, Treves e Doug também encaram as garotas que ficavam cada vez mais para trás. Paladio diz:
— Vamos deixar o garoto e voltar, vão precisar de nós lá no castelo.
— Duvido que notem a falta de alguns soldados – Doug diz sorrindo, com malícia.
— Vamos manter esse passo, o palafrem das madames está aborrecido. Se maltratarmos ele agora, vamos ter uma volta problemática. – Yan fala.
Era verdade, Daniel forçou o cavalo ao máximo para acompanhar os outros e ele parecia descontente, mordendo o freio a toda hora e balançando a cabeça nervoso. Paladio concorda após examinar a situação e eles seguem numa cavalgada lenta.
Daniel aproveitou para pensar sobre uma coisa intrigante, o Duque mandou que subissem o rio, mas a localização do acampamento da Mata Viva era alguns quilômetros ao leste do rio. Inicialmente, sem se aprofundar no pensamento, ele achou que fosse só uma questão de referência, mas depois lembrou que na primeira vez que o exército foi até o acampamento, eles acertaram exatamente onde eles estavam.
Isso poderia significar nada, mas Daniel passou a achar que era uma atitude suspeita, principalmente depois da morte da servente no quarto de hóspedes. Poderia ser que o Duque trabalhava junto da bruxa contra o rei. Não seria a primeira vez na história de todo o mundo de Rammalarius.
Há poucas décadas, antes da Grande Convergência e declínio do reino de Aeros, os príncipes Saulo e Septh brigaram pela coroa e alguns anos depois da conclusão, o ministro achou por bem rebatizar o reino em homenagem ao vencedor. Os mais antigos dizem que o reinado de Septh proporcionou os melhores anos que Septhum já havia visto. Quando o novo rei assumiu, o senado aprovou uma petição para retornar o antigo nome do reino, mas a população, em uma comoção geral, se recusou a aceitar e o nome perdurou até hoje.
— O Duque disse para vocês subirem o rio Gaule comigo – Diz o aprendiz de curandeiro, escolhendo bem as palavras.
— É – Paladio afirma concentrado para perceber qualquer movimento estranho nas proximidades. Ele ia ao centro da formação com Daniel logo atrás dele.
— Mas o acampamento fica para o leste, seguindo a extremidade da Floresta Soturna.
— Ok. Quando chegarmos à floresta pegamos a direita.
— Porque você acha que o Duque não disse isso para você? – Daniel diz incomodado por Paladio não perceber o que ele tentava dizer.
— Você está paranóico – Paladio diz indiferente – Se me recordo bem, o Duque disse que seus amigos estariam te esperando subindo rio.
A cabeça de Daniel estava cheia de conspirações e ele esqueceu desse detalhe, que tornava tudo ainda mais suspeito. Como ele poderia saber da localização do acampamento no caso de mudança? Por todo o tempo que Daniel estivera presente na sociedade eles nunca se mudaram uma única vez. Porque fariam isso justamente naquele momento?
— Como ele saberia onde eles estão?
— Um pombo levando uma mensagem. – Refuta o comandante da guarnição em tom simples e passando a se preocupar com a paranoia do garoto.
— Deixe-me entender o que você quer dizer, madame – Jin diz divertido – Esta insinuando que o Duque quer matá-lo?
— Essa é uma acusação perigosa – o novato Treves diz, sério – Mais perigoso ainda é afirmar isso próximo aos soldados da família real.
— Mas isso é estúpido – Yan comenta, seco – Se ele quisesse matá-lo, ordenaria que o fizéssemos. A essa altura, seu corpo estaria boiando no rio.
— Mas se ele estivesse com a bruxa – Daniel replica – Vocês trabalhariam pra ele?
Os seis homens permanecem em silêncio, cada um deles ponderando a ideia na mente até o novato Doug dizer:
— Isso é loucura.
— Ele não teria chance – Yan afirma – Todos no castelo são fiéis demais ao Rei Claus.
— Sim – Daniel diz – Mas se o Rei perecer junto com a filha mais velha, ele teria maiores chances de chegar ao trono.
— Você está em choque com a morte da criada– Treves fala – É como Paladio diz, está paranóico. Para onde virar seus olhos vai enxergar conspiração.
— Você passou a noite com ela não foi? – Doug diz compassível - Deve estar sentindo a morte dela mais do que imagina. Até mesmo eu ficaria péssimo.
— Não é isso....
Antes de Daniel completar a fala, Paladio fala por cima, em voz alta. Enquanto freia o cavalo de seu galope lento.
— Você não tem como acusar o Duque com esses argumentos, mas não significa que está inteiramente errado.
Todos param seus cavalos e permanecem calados lançando olhares de curiosidade. O terceiro novato que não comentava nada, parecia sempre indiferente a tudo, ele apenas aguardou impassível mais uma vez.
— Eu não acredito que o Duque fosse capaz de algo assim – Paladio fala – Mas talvez a informação sobre seus companheiros tenha chegado a ele já adulterada.
— O que significa? – Yan indaga impaciente.
— A garota morreu – Paladio continua sua explicação – Isso é um fato atípico que não pode ser ignorado, as chances de que o assassino estivesse atrás do garoto são realmente grandes. Significa que algo suspeito acontece no castelo.
— Certo – Yan revira os olhos – Mas o que pretende fazer?
— Continuar a agir com cautela, como estamos fazendo até agora.
— Mas se as coisas estão tão graves assim – Doug diz nervoso – O melhor não seria retornarmos para o castelo?
— Você é estúpido? – Trevez diz, carrancudo – Deixar o garoto no castelo onde tem um assassino que ninguém sabe onde está?!
— Sim – Paladio retoma a palavra – Eu acredito que o Duque seguia esse pensamento, retirar o garoto o mais rápido possível para a segurança dele.
— Mas você disse que a informação que o Duque tinha podia ser falsa – Jin comenta, compenetrado na conversa.
— Ahan – Paladio assente com a cabeça - Existe uma forma muito simples de sabermos a verdade sobre essa situação. Cinco de nós irão direto ao acampamento, o antigo. Depois retornamos para buscar vocês após sabermos se eles estão lá ou não.
— Porque não vamos todos juntos? – Doug pergunta.
— Apenas uma precaução – Paladio responde – Se for uma emboscada para o garoto, eles podem naturalmente deduzir que vamos passar primeiro por lá.
— Acho que vocês estão pensando demais – O terceiro novato, Kaiou, comenta – O garoto sabe que o acampamento era lá, como ele acabou de sofrer uma tentativa de assassinato, com certeza iria primeiro checar o antigo local onde seus companheiros estavam.
— E daí novato? – Yan diz irritado, como se as palavras de Kaiou o ofendessem.
— E daí que os amigos dele devem estar nos esperando subindo o rio.
— Faz sentido. Estamos subestimando a inteligência do assassino. – Doug diz.
Paladio leva uma mão ao queixo e olha desconfiado para Kaiou, estudando o novato. Então ordena decidido:
— Yan, você fica aqui com o garoto. O resto de nós vamos até o acampamento. – Ele se vira para Daniel - Onde você disse que fica?
— A uns seis ou sete quilômetros do rio, se vocês forem uns quinhentos metros dentro da floresta, vão achar ou serem achados.
— Ok – Paladio diz e começa a guiar seu cavalo para o leste.
— Espere aí – Doug estende uma mão - Não seria melhor deixar o Kaiou? Nós cinco temos costume uns com os outros porque trabalhamos sempre juntos.
— Burro – Treves bate no companheiro com as costas da mão - Yan é o melhor combatente entre nós, temos que deixar o melhor para proteger o garoto.
— Sem conversas paralelas! – Paladio ordena – Kaiou você vai na frente. Vamos em galope acelerado! YAH!
Eles partem levantando poeira com Kaiou liderando e Paladio logo atrás. Treves e Doug foram logo em seguida discutindo sobre quem era mais capaz em combate. Jin foi por último dando tchau.


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Notas finais do capítulo

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