Âmago da Meia-noite escrita por Shantalas


Capítulo 15
Masmorra


Notas iniciais do capítulo

Parte I de II



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O homem, agachado em um canto escuro, abaixou a manga de seu perponto cinza e massageou seu antebraço precisamente onde o ancião lhe cortara. Estava com uma fina película de sangue ressecado e que foi removida pela unha do rapaz, abrindo o ferimento de novo e fazendo com que sangrasse um pouco.

Ele ainda tocou o rosto levemente, contando os hematomas e cortes distribuídos, pegando por último no flanco esquerdo e soltando um gemido de dor junto com uma careta. Kal se levanta com dificuldade e espanta um rato que roía seu pão. Ele estava dentro de uma cela minúscula com barras de ferro, em algum lugar no fundo da masmorra, mas não o lugar mais fundo, ele sabia. Os lugares mais profundos das masmorras eram exclusividade de meia dúzia de Goblins que, após a gritaria da noite passada, ele duvidava que ainda estivessem vivos.

Kal tinha a audição muito boa, ele ouviu alguns guardas cochicharem ali perto que o Rei em pessoa desceu para torturar as desalmadas criaturas. O mal humor real fazia Kal deduzir que Daniel havia falhado em curar a garota. O que era uma pena, pois a próxima cabeça a rolar, dependendo do humor do Rei, seria a dele.

Enquanto mastigava um pedaço do pão lentamente, ele lembrava da surra que levou. Teve muita sorte de não ter quebrado um membro e mais sorte ainda de não ter perdido a cabeça quando o guarda baixinho chamado Andur lhe atacou desprevenido, em um saque muito rápido com sua espada curva, mirando diretamente no pescoço dele. Foi por um triz que ele evitou o golpe, graças a reflexos e um instinto dos quais ele duvidava ser dono.

O Rei não gostou nada da atitude traiçoeira de seu subordinado e falou que Kal deveria ser avaliado para saber se de fato era culpado. Após isso o grandão chamado Donavan junto com outros guardas jogaram-no na cela das masmorras.

“Você tem sorte de o Rei ter um grande senso de justiça”, foi o que Donavan havia dito enquanto os guardas trancavam Kal. Curiosamente, ninguém tomou sua espada bastarda de prata, aparentemente, o rei dera a ordem para deixá-lo com ela.

Quando estava para finalizar o último pedaço de pão, ele repara que o rato voltara para perto dele, emitiu alguns guinchos e ficou sob as duas patas traseiras farejando o ar. Kal gesticula varrendo o ar para longe, mas o pequeno roedor apenas se encolhe e volta a se erguer farejando o pão. Percebendo que nada acontecia, a criatura peluda se aproxima sob quatro patas se erguendo mais uma vez próximo à perna dele.

— Mas que diabos...! – O encarcerado diz surpreso. Então chama desconfiado – Umbuzeiro?

O rato fareja o ar movendo seu bigode e nada diz. Não era incomum aos membros mais experientes da Mata viva conseguirem possuir animais, apesar de Jaborandi e Mogno preferirem dizer que deixam uma parte de si com os amigos. Na verdade, havia uma leve diferença, Barbasco explicou a ele uma vez, a possessão é tomar o corpo de alguém à força, já o que era praticado por eles era uma hospedagem amigável. Kal já havia visto Sangue-de-Dragão falar através de um corvo certa vez.

— Jaborandi? – O rapaz tenta mais uma vez. – Mogno? Avisa o Umbuzeiro que deu ruim aqui.

O rato guinchou e começou a querer subir a calça de Kal. Ele ofereceu o resto do pão ao roedor que fez um som satisfeito e pegou com as patas dianteiras, depois foi embora, ágil, por uma fenda apertada entre a parede e o chão.

— Ei, Barbasco...  – Kal chamou, mas não ouve resposta. Ficou parado esperando algo acontecer, até desistir e se sentar no chão, xingando baixinho.

Ele retira a espada junto com a bainha do ombro e desembainha um palmo de lâmina reluzente, observando seu reflexo distorcido, contrastante à luz que vinha da ínfima janela no alto da cela, lembrando até um tipo de monstro. Uma nuvem passageira rouba parcialmente a luz do ambiente, tornando-o uma penumbra. Kal guarda a espada e coloca de volta nas costas.

— Vossa alteza

— Onde estão as chaves das celas? – Uma voz feminina, suave e determinada viaja o corredor da masmorra até os aguçados ouvidos de Kal.

— O molho está aqui – Um tilintar ecoa. – Mas, o que a senhora deseja? – Essa voz era mansa, Kal reconhecia ser do guarda que ele nomeara mentalmente de Guarda esperto, pois ele tratava todos bem, incluindo o prisioneiro o que fazia Kal achar que, caso houvesse uma rebelião, esse guarda poderia ser poupado.

— Eu vim libertar um prisioneiro, esse último que duelou com meu Pai. – A voz feminina disse, Kal percebeu que era conhecida, mas não se recordava de onde.

— Minha senhora – Uma voz mais agitada disse, Kal reconheceu na hora, era o guarda que ele nomeara em particular como O Afobado. O Guarda afobado era visivelmente novato, não só por ser jovem, mas por ter pressa em mostrar serviço, era truculento e só falava em combates. Em uma rebelião, com certeza sua cabeça rolaria. – O rei nos deu ordens explícitas para não deixar ninguém passar.

Um segundo tilintar aconteceu juntamente com o som de agitação de botas. A voz da garota soa:

— Vou precisar só de uma chave – Sons metálicos ocorrem seguidos de uma batida em madeira.

— Não posso deixar que as ordens do rei sejam desrespeitadas – O guarda afobado diz e o som de poucos passos o acompanham.

Kal suspeitava que a voz fosse da princesa, a que foi apresentada a ele assim que chegaram no pátio do castelo, mas o tom dela e o jeito de falar parecia completamente mudado. A voz expressava irritação, mas não era só isso, ela estava descortês.

— Vai tentar me impedir de passar? – Ela diz debochada – Vai ter que usar a espada. Quero ver você explicar a ele o que fez comigo.

— Não preciso de espada... – O guarda afobado ia dizendo, mas logo o som de botas é ouvido, junto com o raspar de roupas.

— Desculpe, vossa alteza – O guarda esperto diz – A senhora pode passar.

Sem perder tempo, passos de bota se aproximam pelo corredor. Kal se levanta e encosta a cabeça na grade para ouvir melhor o cochicho entre os guardas.

—...Está preocupado com a princesa – O afobado dizia - Mas as ordens do rei são absolutas.

— Não se engane, não era com ela que eu estava preocupado. – A voz do guarda esperto sussurra - Você não sabe, pois trabalha no castelo há pouco tempo, o rei mandou treinar suas filhas como se fossem generais de guerra, das três, Kalifa é a melhor em combate corporal e uso de espadas. Agora vá chamar alguém que possa pôr freios nela.

Kal se afasta das barras de metal e dá uma volta na cela agindo naturalmente. Kalifa surge no corredor vestida em trajes masculinos que acabavam acentuando sua beleza, apesar de estragar toda a mística de princesa. Os dois se encaram, a surpresa era mútua em seus rostos.

Kal olhou a garota de uma forma que não havia feito antes. Enquanto trajava o vestido, ele pensou nela como uma criança crescida, agora só enxergava uma mulher bela e destemida. A princesa perscrutou os detalhes do prisioneiro um a um, começando pelos ferimentos e parando por último no cabo da espada acima do ombro.

— Eu estava justamente me perguntando onde eles poderiam ter guardado sua espada.

— Sou prisioneiro do castelo, mas ainda um convidado.

— Esqueci seu nome – Ela diz, se aproximando do portão com a chave na mão.

— Kalisto Victorius, vossa alteza – Ele faz uma falsa reverência.

— Kalifa Donmark, caso tenha esquecido – Ela abre o portão e deixa a chave no trinco, depois faz sinal para ele sair

— Não sei o que esta fazendo – Kal diz fechando o portão e se trancando, girando a chave com a mão do lado de fora – Mas você devia saber, sou um cara perigoso. Melhor ouvir os adultos, às vezes.

Ao terminar, Kal joga a chave no chão. Kalifa ergue uma sobrancelha, junta a chave e passa a abrir o portão mais uma vez, enquanto dizia:

— Eu fico imaginado que criminoso horrível você deve ser.

— Matei um amigo do seu pai, não ouviu por aí? – Ele imita um tom sombrio.

— Eu sei me defender – Ela abre o portão até o limite – Preciso de sua ajuda, me leve até a Sociedade da Mata Viva.

— O ancião não vai ajudar vocês – Kal diz com uma mordaz sinceridade.

— Não estou procurando por ele e sim por Daniel.

— O Garoto foi embora? – Ele pergunta curioso.

— Mandado. – Ela diz, se irritando – Vamos nos adiantar.

— Não tenho certeza se seus amigos carcereiros vão nos deixar passar assim. – Kal comenta saindo da cela e olhando para a direção da saída.

— Não vamos por aí - A garota desce o corredor da masmorra, indo em direção as escadas que davam acesso ao nível inferior. Kal vai logo atrás dela.

 Um lado da masmorra era composto de uma parede com tochas e do outro celas pequenas, várias delas, as paredes que as separavam eram grossas o suficiente para os prisioneiros mal terem contanto físico uns com os outros. Não haviam muitos encarcerados, a justiça de Claus era imediata.

Assassinos pagavam com a vida e ladrões perdiam um dedo, era sempre o mindinho ou anelar. Caso um ladrão fosse pego pela quinta vez roubando, sua vida era ceifada. Haviam também crimes de surra, dos quais o Malfeitor era espancado pela guarda e liberado, geralmente eram delitos menores como arruaça, lesão corporal de indefeso, desacato de autoridades. Por isso, permanecerem alojados nas masmorras era algo difícil.

Eles descem a escada estreita até o nível inferior das masmorras. Ali não havia janelas e o local parecia úmido e abafado. Algumas tochas acessas iluminando o caminho. As celas eram maiores, só que com uma estreita porta de ferro, apenas uma pequena abertura com barras permitia a passagem do ar e lá dentro era escuro.

Kal se perguntava se aquilo era uma boa ideia. Ele só podia ter um panorama incompleto sobre o que estava acontecendo, provavelmente o rei perdera a fé em Daniel e sua filha tinha uma opinião contrária. Independente do que fosse, a situação dele só iria piorar, se é que era possível ficar pior do que já estava. Talvez ajudar a princesa pudesse amenizar sua situação com o Rei, mas o fato de que ela fazia aquilo contra a vontade do mesmo, poderia agravar ainda mais o seu lado.

O mais certo era se aproveitar da situação e ir para longe do castelo, passando brevemente na Sociedade da Mata viva para dar um chute no traseiro do ancião, Kal pensava. Esfregou o antebraço logo após lembrar do velho.

Os dois andaram pelo corredor. Kal espiava ocasionalmente pela janela das celas, se perguntando que tipo de infeliz estaria ali. Em um trecho escuro, onde as tochas esporádicas não iluminavam, Kal sentiu um fedor, depois ouviu o som de alguém forçando seu corpo contra a porta de ferro, então uma voz suplicante:

— Bronson? É você? – Os dois ignoraram o chamado e passaram em silêncio – Cara, por favor, ascende essa tocha da frente. Eu dou o que você quiser dessa vez. É o dedo?

O homem foi deixado para trás sussurrando. Mais à frente, um assobio ritmado é ouvido, vindo de uma sala bem iluminada por dentro. A princesa fazia o mínimo de som possível e Kal a imitou. O assobio foi ficando mais alto, a porta de ferro estava entreaberta e eles viram quando um homem gordo e alto, vestido apenas com uma calça marrom suja de sangue, arrancava a pele de um Goblin.

A pobre criatura estava pendurada de ponta cabeça com um gancho em cada pé, seu tornozelo estava rasgado e a partir daquele ponto, toda sua pele estava sendo puxada. Havia ainda um corte preciso pelas costas que começava do ânus até o topo da cabeça. Um furo profundo no peito, pescoço e cabeça deram vazão a todo o sangue que estava contido num recipiente metálico.

Ambos abandonam a cena bizarra para trás, com a melodia peculiar do assobio se distanciando até chegarem à ultima sala da masmorra. O lugar parecia ser uma cela incompleta, não havia porta e as paredes eram feitas com rochas toscas e mal talhadas. Correntes foram fixadas no teto e paredes, com algemas nas pontas.

— Passagem secreta? Muito esperto de se colocar uma passagem secreta aqui. – Kal diz com ironia.

 A princesa se pendura em uma corrente e usando os pés para ajudá-la, ela sobe até o teto, então fica de ponta cabeça e apoia os pés em uma rocha saliente no teto. Ela a empurra com os pés usando a força do braço ao segurar nas correntes, a garota fica vermelha de tanta força até que a rocha se mexe indo para o lado aos poucos.

Cansada, ela desce para respirar, a abertura fora mínima e como a iluminação era precária, nem dava para notar que ali havia uma fenda.

— A ideia do meu pai, era colocar uma porta aqui, com uma chave que só nós possuíssemos. – Ela diz entre intervalos de respiração pesada. – Vá pegar uma tocha no corredor.

— Não é melhor invertermos os papeis? – Ele pergunta em tom de brincadeira, mas com um fundo de seriedade.

— Eu aguento. – Kalifa alongava os braços.

Kal sai para o corredor, antes de pegar a tocha mais próxima ele se certifica se há alguém vindo atrás deles, pois não era uma boa ideia enxergarem de longe ele manuseando a tocha. Após ver que estava sozinho no longo corredor, ele pega a tocha e volta para a sala ligeiramente. Ele deduziu que os guardas esperassem haver apenas uma saída da masmorra, mas mesmo assim, não iriam custar até achar alguém de autoridade para vir dar um sermão na princesa.

Dentro da última sala, a abertura havia aumentando um pouco mais e a princesa estava sentada no chão recuperando-se. A tocha iluminava pequenos pontos de suor em sua testa.

— Só mais um pouco – Ela diz

— Você é uma verdadeira garota má – Kal diz sarcástico.

— Não sou a filha dos sonhos, reconheço. Mas não vou ficar sentada enquanto minha irmã está à beira da morte, se é isso que meu pai pensa que vou fazer.

— É. Depois disso você deve ganhar uma noite exclusiva com o Gordão ali.

— Browson – Ela diz pensativa. Então sobe as correntes com agilidade e empurra mais alguns centímetros de rocha com os pés. – Sempre achei estranho o meu pai manter homens como ele.

Kalifa se joga de cima da corrente e cai com habilidade. Então, estica o corpo ficando na ponta dos pés e apontando os braços para cima ao máximo.

— Certo – Ela termina de se alongar - Você consegue subir essas correntes? – Ela pergunta casual, mirando o teto.

— Mas é claro – Kal responde no mesmo tom.

— Que bom – Ela diz aliviada. – Do jeito que meu pai deixou seu rosto, imaginei que seu corpo estaria ainda pior. Me dê a tocha e suba.

E foi o que ele fez, passou a tocha para a garota e subiu as correntes, porém, com muita dificuldade, pois seu flanco doía muito. Chegando em cima ele se segurou na fenda com uma mão e se pendurou, largando a corrente. Com muita dor e força de vontade, ele conseguiu se segurar com as duas mãos e subir em um túnel estreito, com espaço somente para engatinhar.

Kalifa joga a tocha para Kal e em poucos segundos ela estava ao seu lado o empurrando para ter mais espaço. Colocando muita força a garota coloca a rocha no lugar e sorri satisfeita para ele, lembrando muito uma menina travessa. Kal ilumina o túnel e percebe.

— Não tem saída.

— Não é por aí.

Ela passa por cima da rocha que tapava o buraco e segue até um caminho que descia, passando por trás da parede da última sala. Dali em diante eles seguem por um túnel sempre inclinado para baixo. O Túnel estreito mal cabia uma pessoa ao lado da outra. Após alguns segundos, eles pararam de descer e foram andando reto, as paredes deixaram de ser de pedra para se tornarem de terra, dali em diante havia muitas teias de aranha no teto, algumas aparentemente rompidas.

Ela parou subitamente, então virou para ele e perguntou:

— Que amigo do meu pai você matou?


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