Por toda vida escrita por larissacosta52


Capítulo 4
Sapore Agrodolce


Notas iniciais do capítulo

Cá estou com o maior capitulo dessa história! E totalmente fiel ao titulo, com um sabor agridoce. Espero que curtam!



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Distante no horizonte, o sol nascia trazendo mais um dia prometido aos habitantes do Vale do Café. Os primeiros raios caiam ainda tímidos pela cidade, mas Otávio observava que seria um dia bonito, ensolarado, ao contrário da tempestade que alguns moradores acreditavam que estava por vir na pequena cidade. Deixou os raios tocarem seu rosto, sentado na beirada da janela do seu quarto, abraçando suas pernas com a cabeça apoiada nos joelhos, ainda pensando sobre o dia de ontem, naquele momento, mais calmo e pensando mais racionalmente.

Depois de revirar tantas vezes na cama, as suas suspeitas foram confirmadas. Sabia que não conseguiria pregar o olho a noite, e assim, para não se sentir mais impotente, preferira pegar os arquivos do caso que estavam investigando e começara a estudar e criar novas hipóteses, ansioso para compartilha-las com Randolfo e Brandão.

Alguns minutos se passaram, onde Otávio se deixou fechar os olhos, descansando no parapeito da janela, tirando um leve cochilo, até escutar umas batidas suaves na porta do quarto.

—Pode entrar Randolfo. – Levantara os olhos ainda um pouco vermelhos mostrando o quão a sua noite não fora produtiva no mundo dos sonhos, mas os papeis espalhados pela cama diziam que houve uma produtividade no trabalho. Randolfo entrou com uma caneca de café preto, parando para olhar a bagunça que estava em cima da cama do melhor amigo.

—Eu ia perguntar se você conseguiu pregar os olhos em algum momento, mas acho que a minha pergunta foi respondida. – Ele entregou a caneca para um Otávio que esfregava os olhos com esperança de afastar qualquer resquício de sono. – Bom dia meu amigo.

—Bom dia Randolfo. Conseguiu dormir bem? – Otávio deu um gole na bebida, sentindo-se mais acordado quase de forma instantânea. Olhou o outro que sentava-se junto à ele, com as costas apoiadas do outro lado da janela, bocejando como um gato preguiçoso.

—Sim, como uma pedra.

—É tão fácil imaginar você dormindo enquanto o caos está acontecendo ao redor, então eu realmente acredito que quase nada é capaz de te acordar. – Otávio respondeu sorrindo, enquanto o outro revirava os olhos, chutando o seu pé. – Exceto, uma coisa. Na verdade, um alguém... uma Benedito.

O rosto de Randolfo abriu-se imediatamente em uma expressão sonhadora.

—Lídia... Estou ansioso para a próxima semana e poder vê-la novamente. – Suspirou, soltando uma risada baixa.

— O que? – Otávio arqueou a sobrancelha.

— Pelo menos com Lídia e a família Benedito distante, eu consegui um pouco de paz sobre todos os preparativos do casamento.

Eu e você, afinal, se você está angustiado por ter Dona Ofélia te perseguindo pela cidade inteira no horário de trabalho, você acaba me perseguindo pra reclamar do cansaço de resolver detalhes matrimoniais.

—É verdade. – Randolfo riu lembrando de alguns momentos de desespero em que passara horas com Lídia e os seus pais falando sobre detalhes da cerimonia e da festa. Até que lembrou de ontem à noite e resolver tocar no assunto novamente. – E você? Pretende se casar um dia?

Otávio bufou, tomando o ultimo gole de café.

— Acho que depois da tentativa infeliz que tive de quase subir ao altar com Lídia, eu já tive o suficiente da palavra casamento, Randolfo. Foi um estresse para todos, inclusive pra mim, você e Lídia. Você sabe.

Randolfo sabe. E como sabe. Considera-se sortudo por conseguir casar com a mulher no qual sempre era alvo dos seus olhares e suspiros mais bobos, mais apaixonados. Lídia era amiga de ambos há anos, e Dona Ofélia sabendo disso, resolveu que já era mais do que a hora de sua filha mais caçula casar-se, afinal, pensava que os encontros quase diários que Lídia dizia ter no apartamento deles, era por causa de Otávio.

Ledo engano.

Lídia tentara negar por muito tempo a atração obvia que tinha entre ela e Randolfo, namorando com alguns caras da capital, mas claro, sem deixar que sua mãe suspeitasse sobre algo. E Otávio, cúmplice dos momentos de anseio e tristeza de seu melhor amigo e insegurança de Lídia em dar o primeiro passo, não pôde negar que nada havia entre ele e a mais nova das filhas dos Benedito, quando Dona Ofélia foram procura-lo no quartel. Assim, quando viu, estava noivo de Lídia e com uma amizade quase destruída por tanta confusão, omissões e mentiras, sendo assim, ao ver a amizade que construíram há anos ser abalada por algo que se tornara tão sério, Otávio, Randolfo e Lídia conversaram e chegaram a decisão correta e conversaram com os pais da moça, mas claro, isso ocorreu depois que alguns sentimentos antigos foram assumidos e trazidos à tona.

Até hoje ele sente calafrios quando lembrava da conversa, mas, estavam vivos e seus amigos felizes e prontos para dar mais um passo do relacionamento prospero de dois anos e sete meses.

— Eu sei, Otávio. – Randolfo sorriu, grato pela atitude que o amigo tomara naquela época. – Bom, o assunto está muito bom, mas precisamos chegar cedo no quartel. Parece que Brandão irá encontrar-se com Mariana Benedito mais tarde para acertarem sobre as entrevistas nas quais ela quer reportar para o Jornal em que trabalha, em São Paulo.

Otávio acenou com a cabeça, levantando-se do parapeito da janela, distraído, sem notar os olhos ansiosos do melhor amigo que estavam fixos nele.

—A não ser que você queira conversar sobre alguma outra coisa...? – Randolfo pontou tentando parecer indiferente. – Talvez... sobre ontem.

O outro homem pensou em responder, mas seu rosto transformou-se em uma expressão concentrada, inclinando o rosto para a janela aberta, parecendo ter notado algo que ele ainda não notara.

—Você tá sentindo isso?

— Isso o que? – Randolfo perguntou, divertindo-se com Otávio distraído por algo que vinha fora do apartamento.

— Um aroma... diferente.

— Eu só sinto cheiro de café.

Otávio balançou a cabeça, ainda não desistindo de tentar adivinhar um cheiro doce que parecia ter invadido seus sentidos. Claro, o cheiro de café era quase inebriante no quarto, mas com a brisa leve da manhã que entrava pelo quarto, Otávio julgava ser de algum lugar por perto.

Mas Randolfo conseguiu adivinhar o seu inútil palpite.

—Não tem como ser outra coisa, Tata. Moramos no quinto andar, sem chance alguma de acusarmos de algum vizinho estar cozinhando, ainda mais nesse horário.

Otávio inclinou a cabeça, parecendo ponderar as palavras do melhor amigo, que agora levantava-se levando consigo a caneca de café agora vazia, e lhe dava um tapinha em seu ombro, caminhando até a saída do quarto.

—Saímos em meia hora.

Ao se ver sozinho, Otávio decidiu arrumar a bagunça que provocara em sua cama, como papeis espalhados, processos, post-its, notebook e alguns marca textos. Mas antes, decidiu fechar a janela. No entanto, sem nenhuma possibilidade de entrada de ar no quarto, ele ainda podia sentir, fraco, frágil, mas estava lá.

O aroma irreconhecível de algo doce. Uma fruta. Mais como...

—Goiabas... – Otávio murmurou, confuso. Por fim, deu de ombros, voltando a pensar no dia que teria pela frente.

Casa dos Benedito

Luccino olhava aos arredores da casa dos Benedito, enquanto Mariana ajeitava sua bolsa no ombro e trancava a casa. Descendo as escadas apressadamente, colocou-se ao lado do amigo, e puxando-o para andarem até o destino que Mariana pensara em leva-lo desde o dia em que chegara de viagem e entrara em contato com Brandão.

—E esse sorriso no rosto, de manhã cedo? Mariana Benedito caiu da cama? – Luccino apontou, brincando, enquanto andavam de mãos dadas pela estrada de terra que os guiava até o centro da cidade e para atalhos perto da floresta. Onde, coincidentemente Mariana o levava, ambos entrando em um caminho estreito rodeado por mato. A brisa passava entre as folhas das plantas e das arvores do Vale, acalmando o calor que aos poucos chegava com o sol das dez da manhã.

O sorriso de Mariana esticou-se mais ao lembrar de um dos motivos de sua felicidade repentina. E Luccino logo arriscou o que poderia ser.

—O motivo desse sorriso deve ter um nome... Talvez, um que comece com B...

—Luccino, pare! – Mariana o empurrou levemente fazendo com que o italiano soltasse uma risada, feliz por ver a amiga quase flutuando entre as nuvens, com o namoro recente. Quando soubera, estava em São Paulo, e Mariana viajando à trabalho. Nem mesmo com o péssimo sinal do Skype, o italiano não conseguiria não notar o sorriso mais aberto, e a expressão leve da moça Benedito. – Ele é um dos motivos, sim. Mas não é o único.

— Pois muito bem, você é amante dos mistérios tanto quanto sua irmã. – Luccino deduziu, encolhendo os ombros.

Mariana concordou, pensando brevemente em Cecília, pronta para soltar um comentário aleatório sobre a irmã, mas seus pensamentos foram interrompidos quando viu a expressão de Luccino mudar, antes risonho e brincalhão para mais séria e concentrada. Mariana só conhecia aquela expressão quando observava o mecânico concentrado, enquanto fazia algumas visitas na oficina do melhor amigo em São Paulo, quando tinha um tempo livre do trabalho. Puxou o amigo pelo braço, ambos parando de andar e Luccino pareceu então sair do estupor que se encontrara, finalmente olhando para a mulher ao seu lado.

—O que foi?

—Eu é que pergunto, Luccino. Ficou distraído de repente... 

Mariana percebeu que os olhos de Luccino de vez em quando olhava para o resto da estrada de terra por onde caminhariam por mais alguns minutos, e para as arvores da floresta.

—Existe aqui por perto alguma planta, ou arvore que dê frutos? – Luccino perguntou, um pouco distraído.

— O que? – Mariana riu, não acreditando no assunto tão sem fundamento que o homem ao seu lado perguntara. – Que tipo de pergunta é essa?

O italiano percebeu a pergunta que fizera, e acanhou-se, balançando a cabeça. Sentia uma ansiedade alastrar por todo seu corpo, sem saber o porquê. Cada vez mais que chegavam no lugar misterioso de Mariana, seu coração batia mais forte, descompassado, incontrolavelmente. Logo ele, que mantinha-se o quanto podia o mais calmo possível diante de tantas situações, e agora ali estava, ansioso e... angustiado. Apenas por conhecer um lugar novo.

—Desculpe, acho que ainda estou com fome. Vamos, precisamos encontrar Brandão e o lugar secreto que você está tão ansiosa para me mostrar, e me deixando tão ansioso quanto pra conhecer.

— Você quase conseguiu arrancar essa informação de mim! Não sei como consegui resistir à esses olhos tão pidões. – Mariana respondeu gesticulando, lembrando divertida de Luccino a importunando durante a semana que passara depois que tinha contado ao melhor amigo sobre um lugar que ele iria gostar bastante.

Luccino pensou em retrucar, mas Mariana o cortou, gritando extasiada, tomando grandes passos até um homem que estava parado em pé em frente à um casebre humilde de madeira, e que aparentemente era o motivo da alegria recente de sua amiga.

—Brandão! – Mariana pulou nos braços de Brandão, que a segurara em um abraço forte, não contendo o riso.

Ambos tão imersos na troca de carinhos, que nem mesmo perceberam o olhar vidrado de Luccino sobre o lugar em que Brandão os esperava. A ansiedade parecia ter aumentado de tamanho, e com uma força que parecia ter tirado quase todo o ar que o melhor amigo de Mariana teria naquele momento. As mãos estavam tão geladas quanto pedras de gelo, e levemente tremulas.

Luccino engolira em seco, ainda olhando para o lugar e sentindo novamente o aroma suave da fruta que ainda não conseguira reconhecer.

—Nem parece que nos vimos ontem. – O homem até alguns segundos atrás, desconhecido para o mecânico, sorriu, a felicidade tão refletida quanto a de Mariana que estava imersa no momento até que ela olhou em direção ao olhar do policial. – Você deve ser o Luccino, correto?

—Luccino? – Mariana o chamou novamente, tirando o jovem Pricelli do transe.

—Sim? – Ele olhou para o casal que o observava há alguns passos à sua frente. Com passos um tanto cautelosos, ele se aproximou, abrindo um pequeno sorriso, estendendo a mão em cumprimento à Brandão. – Luccino Pricelli, amigo de Mariana.

—Melhor amigo, como diz tanto pra mim! – Brandão olhou para Mariana, que sorriu concordando, mas sem deixar de notar na postura um pouco mais reservada do italiano. – De acordo com as palavras dela, você é o melhor mecânico que ela conhece, então estou confiando que você poderá me ajudar.

Luccino riu, se sentindo mais confortável.

—Talvez Mariana faça um pouco de exagero sobre o que disse ao senhor. – A moça Benedito riu, envolta no abraço de Brandão.

—Eu disse apenas a verdade! Graças ao Luccino, descobri um hobby que tirasse a minha cabeça do sufoco do jornal. E além disso, graças as corridas de moto que finalmente foram oficializadas aqui no Vale do Café, eu pude conhece-lo. Não poderia ser mais grata – Mariana entrelaçou os dedos com os de Brandão, que a beijou no rosto.

—Eu também. – Brandão relutantemente tirou os olhos de Mariana, e olhou novamente para Luccino que ora os observava, ora olhava para o casebre de madeira. – Bom, parece que você ficou interessado no lugar. Já é alguma coisa.

—Vamos, abra! Até eu estou ansiosa para conhecer esta oficina, Brandão. – Mariana sorriu, quase não se contendo de ansiedade. Enquanto Brandão tirava uma chave prateada do bolso de sua jaqueta, ela aproximou-se de Luccino, segurando seu braço. - Luccino, tenho certeza que quando você entrar, nossa... Vai adorar!

Luccino deu um pequeno sorriso, tentando parecer encorajador. Quando Brandão abriu as portas do lugar, o italiano sentiu seu coração quase sair pela boca. Sabia que Mariana e Brandão falavam algo a respeito sobre o lugar e o trabalho no qual Brandão pedira para que ele ficasse responsável, mas não conseguia escutar nada. Sentia-se fora de si, nada ouvia, de tão entorpecido que sentia-se ao dar os primeiros passos dentro da oficina abandonada.

Olhava ao redor, tentando capturar todos os detalhes, as caixas de ferramentas tão antigas espalhadas a esmo pelo lugar, e até mesmo as mais variadas penduradas pelas paredes formadas por tabuas de madeiras que, apesar do tempo, ainda tentavam manter o lugar em pé. Seus olhos voltaram-se para a grande escada de madeira que terminava no segundo andar, onde podia ver superficialmente alguns sacos velhos, e algumas caixas.

O jovem Pricelli mal percebia que estava tão entorpecido e encantado pelo lugar, e nem tinha controle sobre os seus dedos ansiosos que tocavam as mesas espalhadas, as ferramentas jogadas de qualquer jeito, a poeira acumulada que sobressaia sobre a oficina na qual ele pressentia que deveria ter sido um lugar que guardava muitas histórias. E talvez, mais do que apenas histórias sobre concertos de motos, carros ou bicicletas.

—Luccino!

Mariana e Brandão o encaravam do outro lado da oficina, enquanto Luccino voltou-se a voz de quem o chamava, totalmente desatento.

—Sim?

—Essa é quarta vez que Mariana te chama, homem. – Brandão falou, levemente preocupado. – Está tudo bem?

—Eu... Sim, claro. – Luccino engoliu o nó que se formara no pescoço. – Eu só fiquei distraído, por um momento. O que diziam?

Mariana e Brandão se entreolharam. Brandão parecia surpreso pelo interesse repentino refletido nos olhos de Luccino, mas Mariana nem tanto. Sabia que o melhor amigo ficaria encantado pelo lugar, sabia que ele gostava de artefatos antigos, e que remetiam a sua profissão, mas o que a deixara desconfiada foi o quão o amigo parecia envolto no lugar, como se estivesse sozinho, enfeitiçado pelo ambiente.

—Estávamos falando da história do lugar. Na verdade não há muito o que saber sobre, mas de acordo com arquivos antigos de jornais do início do século XIX, essa oficina pertencia à um mecânico bem renomado por todo Vale. – Brandão abraçou Mariana, encaixando seu rosto em seus cabelos curtos. – Mas infelizmente, a história dele não terminou tão bem assim.

— O que aconteceu? – Questionou Luccino, tomando alguns passos à frente, o coração ardendo no peito. A curiosidade falava mais alto do que o medo e a angustia que estava sentindo desde o momento que colocara os olhos sobre a oficina. Seus olhos por um momento se voltaram aos fundos da oficina, mas evitou se distrair novamente, apesar de que, tudo o que ele queria era conhecer mais do lugar, tocar e descobrir.

Quartel, Vale do Café.

—Randolfo, onde estão os arquivos do caso Andrade? Eu podia jurar que Brandão os tinha deixado em cima da mesa dele. – Otávio coçou a barba, pensativo.

—Talvez ele tenha deixado na sala de depósitos, onde ficam as caixas dos outros processos e objetos dos crimes. – Randolfo comentou distraído, sem tirar os olhos do celular, envolto em papeis em sua própria mesa.

—Obrigado pela ajuda. – Otávio murmurou caminhando até o final do corredor da delegacia, abrindo a sala de depósitos. Ao procurar o interruptor, viu que apenas uma lâmpada se acendeu, deixando o ambiente fechado em meia penumbra. – Ótimo, mais uma ajuda conspirando ao meu favor.

Bufando contrariado, fechou a porta, e andou até as prateleiras, procurando diretamente nas caixas organizadoras ondem ficavam arquivos mais antigos, no entanto, o que procurava era algo mais sobre informações históricas do acusado que atualmente estava detido na delegacia, devido às recorrentes denúncias. Os dedos ligeiros entrepassavam entre as pastas, os olhos clínicos procurando pelo o que queria, mas sua atenção se despassou por um instante em algumas caixas bagunçadas, com as tampas entreabertas.

Olhou para a porta fechada rapidamente, para depois tomar a decisão de ir arrumar a bagunça, mas viu que os arquivos eram bem antigos, a caixa e assim como os papeis estavam empoeirados, apesar de ainda estarem conservados. De relance, seus olhos miraram o último arquivo, totalmente esquecido junto aos outros. Puxou-o para fora da caixa, apoiando-a na prateleira, atentando-se brevemente para a luz que piscava fracamente, como um aviso de que a lâmpada já teve dias melhores.

O arquivo que chamara sua atenção entre tantos outros, era o mais deteriorado, um jornal em que Otávio apertara os olhos para poder enxergar de fato e compreender as letras minúsculas e quase apagadas da tinta. Nas manchetes haviam notícias corriqueiras do Vale do Café em 1911, nada que o interessasse de fato. Na verdade, sabia que estava perdendo tempo, e com Randolfo perdendo-se em mensagens trocadas com Lídia, com certeza não avançariam em nada.

Suspirou, se dando por vencido, guardando o arquivo, até que pequenas letras garrafais em um canto da borda do jornal surrado entraram em sua linha de visão.

TRAGÉDIA NO VALE DO CAFÉ: A incompreensão que ainda assola e comove a cidade após um ano do misterioso crime”

Os olhos atentos de Randolfo miravam a tela do celular, esperando que Lídia terminasse de digitar a próxima mensagem, mas estranhou ao perceber a demora de Otávio na sala de depósitos. Suspirou levantando e arrastando-se até a respectiva sala, mesmo sabendo que o amigo conhecia as diversas caixas e arquivos como ninguém na delegacia.

Ao abrir a porta, franziu a testa, confuso ao não ver ninguém na sala.

—Otávio? – Murmurou, não recebendo resposta nenhuma e quase de partida, fechando a porta, até que escutou uma respiração pesada e ofegante por trás das prateleiras. Andou cauteloso até o fundo da pequena sala, e estancou ao ver Otávio sentado no chão, uma caixa próxima e arquivos revirados. Não sabia se era pela quase falta de luz do lugar, mas nunca vira o melhor amigo tão pálido.

—Ei, ei! Otávio, fala comigo! – Ele apressou-se agachando-se perto do homem que tentava puxar o ar, assustado como se tivesse visto a pior das assombrações.

—E-eu, Randolfo, eu preciso sair daqui. – Otávio tropeçou pra frente ao tentar se levantar, sentindo a visão turvar, mas Randolfo o segurou pelo braço, o sustentando até ambos ficarem em pé novamente. –Eu preciso, eu preciso sair daqui.

Antes que Randolfo conseguisse perguntar alguma coisa, Otávio conseguiu se soltar de seu aperto, e andou o mais rápido que podia para fora da sala. Confuso, olhou para a bagunça no chão da pequena sala, arrumando novamente os arquivos na caixa. Ao colocar um dos jornais na caixa embotada em seus braços, reparou em uma foto praticamente surrada, mas não conseguia reconhecer as pessoas que estavam posadas na mesma.

Procurou arrumar o máximo que podia, às pressas, e saiu da sala em busca do melhor amigo, porém, ao chegar em frente a mesa de Otávio, viu-se sozinho, perguntando-se o que poderia tê-lo deixado em estado tão caótico.

Ao ouvir sua barriga lamentar novamente, suplicando para que ele colocasse algo para sustenta-la, Luccino se deu por vencido saindo debaixo do carro em que trocava o óleo do motor, limpando as mãos sujas de graxa na roupa e procurando uma goiaba que tinha pego às pressas da fruteira da cozinha de sua casa, antes de despedir de sua mãe.

Gemeu deliciado ao dar a primeira mordida, aproveitando a fruta como se fosse a única coisa a de fato, enganar a sua fome pelo resto do dia, ainda que fosse perto do horário de almoço. Deixou-se descansar por alguns minutos, pensando nas próximas peças que poderia trazer em uma viagem de São Paulo, distraindo-se totalmente ao que acontecia ao seu redor.

Distraindo-se a ponto de não ouvir passos lentos em sua direção, até que sobressaltou-se assustado, quase deixando a goiaba quase acabada cair no chão empoeirado de terra da oficina ao sentir duas palmas de mãos quentes cobrirem seus olhos.

—Pobre goiaba, com um homem faminto desses, nenhuma clemencia poderia salva-la nesse momento... – A voz sussurrou em seus ouvidos, prontamente acalmando o coração de Luccino, fazendo-o suspirar de alivio e provocando o seu riso ao poder enxergar novamente. Virou-se em direção ao dono das mãos quentes que agora pousavam firmes em sua cintura.

—É quase hora do almoço, eu estava com fome! – Luccino tentou se justificar, largando a fruta completamente mastigada em cima da mesa em que estava escorado antes que Otávio chegasse, colocando as mãos sobre o homem fardado. - Não deveria estar no quartel, Major?

—Deveria, mas eu consegui tirar alguns minutos de folga e importunar um certo italiano faminto e... sujo de graxa. – Otávio sorriu apontando em direção à mancha perto do nariz de Luccino.

O mecânico apressadamente tentou tirar qualquer sujeira do rosto, sentindo o rosto esquentar ao mesmo tempo.

—Saiu?

—Não.

—E agora?

—Não, Luccino. – Otávio segurou o riso, não querendo que Luccino pensasse que ele estava caçoando dele. O jovem Pricelli nem percebia que ao tentar se limpar, sujava-se mais.

—Per Dio! – Passou a mão no rosto, parcialmente sujo de graxa. - E agora?

 Otávio segurou o rosto de Luccino entre mãos, acariciando-o, ambos sendo embalados pela brisa quente do dia, e um leve aroma da fruta doce, agora esquecida na mesa perto das ferramentas.

— Agora ficou perfeito.


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