Duet escrita por oicarool


Capítulo 4
Capítulo 4




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A rotina da casa se estabeleceu, a medida que os dias passaram. Darcy Williamson fazia todas as suas refeições com os Benedito, e estava cada vez mais próximo de quase todas as irmãs, especialmente Mariana. Os almoços e jantares eram alegres, e, quando Darcy era capaz de ignorar Elisabeta, sentia-se até mesmo bem-vindo e acolhido. A mais velha dos Benedito, porém, pulava quase todas as refeições.

Darcy sabia que os ânimos entre as irmãs estavam exaltados. Mariana comentara com ele algumas vezes a respeito das brigas e discussões. Nunca as ouvira discutir, por isso presumia que acontecia enquanto estava no trabalho. Era comum, porém, encontrar as quatro Benedito reunidas na sala, em plena reclamação contra Elisabeta. Naquelas noites, em geral, Elisabeta não se apresentava para jantar, e Darcy ouvia o piano até a madrugada.

Aos poucos o inglês passava a compreender um pouco mais aquela família. Felisberto era um homem decente, porém não costumava se envolver em nenhuma polêmica familiar. Tentava apaziguar as eventuais alfinetadas entre as irmãs, e acatava as opiniões nem sempre agradáveis de Ofélia. A matriarca, em contrapartida, era crítica à tudo e todos, e raramente via qualquer demonstração de afeto para com o marido ou as filhas.

Jane era sempre um doce, e a medida que conhecia Darcy, mostrava-se sorridente e honesta com suas opiniões. Cecília era curiosa, alegre e adorava discutir literatura com Darcy. Lídia nunca pensava sobre suas palavras, mas era o que a tornava encantadora. E Mariana era uma aventureira, desde o início. Sua semelhança com Charlotte estava na forma como encaravam a vida, e Darcy não negava sentir um carinho especial pela moça.

A verdade é que as Benedito ocupavam o lugar de sua amada Charlotte. Ao longo das semanas, viraram suas companheiras de carteado e conversas, e Darcy inclusive palpitava sobre suas vidas amorosas. Jane estava imensamente feliz por Darcy ter enviado uma carta à Camilo, e Cecília ficara muito animada ao saber que ele era agora um conhecido de Rômulo. Conhecera até mesmo o Coronel Brandão, de quem Mariana insistia em dizer que não gostava, mas, a julgar pela quantidade de vezes que a moça falava do pretendente, Darcy suspeitava que houvesse mais naquela história.

Elisabeta, porém, nunca estava com eles. As vezes retirava-se no momento em que Darcy chegava, e em muitos outros dias ele nem sequer a via. E a moça o intrigava cada vez mais, principalmente a medida que Darcy passava algum tempo na Sala de Música. E, principalmente, por, sem nenhum tipo de palavra ou contato, parecer que de alguma forma os dois tinham um rotina de uso do local.

Intercalavam as noites, na maioria delas. Nos dias em que Darcy ocuparia a Sala, Elisabeta costumava praticar pela manhã, e quase sempre ele despertava ao som da música. E este fato o deixava surpreso, uma vez que era bastante comum que fosse o último som que ouvia antes de dormir. Mas era óbvio para ele que Elisabeta era dedicada, estudiosa, e já estava convencido que boa parte do que ouvia eram composições dela.

A moça também mantinha a sala impecável. Encontrava tudo exatamente no mesmo lugar – desde a posição do banco, até as canetas em cima da escrivaninha. Os papéis eram alinhados, as partituras milimetricamente organizadas. Mas nunca havia rastros de Elisabeta. As partituras no piano mudavam todos os dias, mas ela nunca as tocava. Eram clássicos, e não suas músicas.

Sua curiosidade era aguçada por todos os pequenos elementos, por uma personalidade que parecia um quebra-cabeças, que o instigava e surpreendia. Encontrara, nas prateleiras, diversos cadernos de caligrafia. Muito mais do que seria necessário, e todos tinham a mesma letra. As partituras guardadas estavam em ordem de compositor, tudo milimetricamente organizado.

Elisabeta contrastava. Não apenas pelo vermelho vibrante de suas roupas, mas pelas particularidades que Darcy encontrava em cada irmã. Naquela sala havia cadernos de todas as irmãs Benedito, mas, enquanto os das outras estavam misturados, rabiscados, coloridos, os de Elisabeta eram organizados, suas anotações eram breves, seus traços absolutamente perfeitos.

E havia nela, Darcy já ousava dizer, uma tristeza, melancolia. Suas composições eram profundas, tocantes. Seu olhar continha sempre uma sombra, e Darcy já percebera a rispidez com a qual Ofélia tratava sua mais velha. Quando Elisabeta não estava, Ofélia costumava desdenhar das atividades da filha. E quando Elisabeta estava, não havia um fio de cabelo que não fosse criticado.

Poucas vezes ouvia a voz da mais velha dos Benedito. Em geral participava pouco das conversas, e evitava responder à Ofélia. Exceto nos dias em que a matriarca escolhia alguma outra vítima para suas críticas. Nestes dias, Elisabeta puxava todas as atenções, até que Ofélia passasse a reclamar sobre ela, e esquecesse suas críticas anteriores. Em princípio, Darcy achou que fosse um acaso. Mas a medida que observava aquela família, muitas coisas pareciam fazer sentido.

As outras quatro Benedito falavam sobre Elisabeta com carinho, afeição. Segundo as próprias, era Elisabeta quem as cuidava quando estavam doentes. A irmã era seu apoio nas horas difíceis, tinha sempre uma palavra de consolo. Era, também, as vezes um pouco dura e as cobrava em excesso. Mas havia uma certa adoração pela figura de Elisabeta, como se cada uma das outras se inspirasse na mais velha.

Por isso, Darcy duvidava de que a tristeza que percebia fosse vista pelas irmãs. Nunca ouvira qualquer palavra à respeito disso. As Benedito também não pareciam perceber o tom das músicas, ou sequer que eram composições próprias. Suspeitava que talvez não fosse possível ouvir dos outros quartos, ou que simplesmente as irmãs não conseguissem enxergar Elisabeta sem a imagem de perfeição que projetava.

Pensando em tudo isso, Darcy começou a testar as notas. E a medida que gostava de uma sequência, a inseria em uma partitura em branco. Aos poucos a música tomou conta de Darcy, a inspiração surgiu em sua mente, e suas mãos apenas obedeceram os comandos de seu coração. Viu-se surpreso por, depois de tanto tempo, ser capaz de uma nova composição.

Não passou por sua mente, em momento nenhum, que quase em frente à Sala de Música, Elisabeta o ouvisse. Estava sentada no chão, encostada na porta, com os olhos fechados. Era uma rotina ouvi-lo, mas não havia dúvidas de que aquele era um processo criativo. E todas as vezes em que Darcy reiniciava a música, parecia que chegava ainda mais ao coração de Elisabeta. Ela sequer percebeu as lágrimas que insistiam em cair.

##

Darcy foi surpreendido, cerca de quinze dias depois, por uma solicitação de Ofélia Benedito para uma conversa. A matriarca quase nunca dirigia a palavra à ele, e muito menos o fazia de forma agradável, quando fazia. Por isso espantou-se, e viu o espanto nos olhos das meninas Benedito, no momento em que Ofélia sugeriu a conversa. Viu-se, segundos depois, seguindo Ofélia até o escritório de Felisberto, que não estava em casa.

— Serei clara. – ela disse, fechando a porta. – Eu não gosto do senhor.

Darcy assentiu, pois não ouvia nenhuma novidade.

— O senhor, para mim, é como um urubu. Aguarda o casamento de minhas filhas para tomar posse desta casa. E, não bastante, brinca com suas presas, envolvendo minhas filhas neste jogo doentio.

— Dona Ofélia, eu não...

— Eu não quero ouvi-lo. Sei que está próximo de minhas meninas, e Elisabeta foi incompetente inclusive para controlar as irmãs. Mas eu não permitirei, de forma alguma, que se case com uma delas.

— Eu não pretendo, senhora. – ele espantou-se, erguendo a sobrancelha.

— Não é o que parece. Estou ciente de seus passeios, principalmente com Mariana.

— Posso garantir que não tenho tal interesse. – Darcy disse, sério, fazendo Ofélia revirar os olhos.

— De qualquer forma, senhor Williamson, apesar de nossa família estar em tal situação financeira, eu sou uma mulher de muitos contatos. – Ofélia o encarou. – Muitas pessoas no Vale do Café e em toda a região me devem favores.

— Não estou entendendo.

— É simples, eu vou apresentar ao senhor duas opções, visto que afastá-lo de minhas filhas não parece ser possível. A primeira delas é que o senhor ajude-me à selecionar bons partidos para minhas meninas.

— E a outra? – Darcy cruzou os braços.

— A outra é que o senhor vire meu inimigo. E não se engane, eu posso fazer de sua vida um inferno.

Darcy olhou para aquela mulher, tão arrumada. Seus traços eram sérios, a linha entre as sobrancelhas deixava claro que fora assim a vida toda. Suas jóias eram caras, suas palavras bem colocadas. Mas Darcy odiava ser ameaçado, odiava sentir-se acuado.

— Dona Ofélia, deixe-me ser claro com a senhora. Eu não gosto de ameaças. E também não sou simpatizante de sua pessoa.

Ofélia abriu os lábios para falar, mas foi interrompida.

— Eu vou lhe ajudar a arranjar bons casamentos para suas filhas. Mas o único motivo é que gosto dessas moças como se fossem minhas irmãs.

— Irmãs? – Ofélia ergueu a sobrancelha. – Por acaso acha que minhas filhas não são boas o suficiente para um homem como o senhor?

— De forma alguma. A senhora filhas belíssimas, e, caso estivesse apaixonado, faria muito gosto de desposar uma das Benedito. – Darcy estava sério. – Não é este o caso, mas garantirei que os melhores partidos da região ouçam falar dos encantos de suas filhas. Mas eu também tenho uma condição.

— Ah, o senhor tem uma condição? – Ofélia foi irônica. – E qual seria?

— Suas filhas terão a palavra final. Se casarão por escolha delas, quando e com quem quiserem.

— E o que o senhor ganharia com isso?

— Me bastará saber que suas filhas estão felizes. – Darcy a encarou com desprezo. – E, como suspeito que isso não seja suficiente para a senhora, eu faço uma contraproposta. Quando todas as suas filhas estiverem casadas, por escolha delas, com homens que as amem e respeitem como merecem, eu me comprometo a não executar a dívida, no que tange à esta casa.

Ofélia encarou Darcy, sem reação. Era um homem estranho, aquele. Não havia qualquer motivo para perder tanto dinheiro. A Fazenda Benedito era uma propriedade valiosíssima.

— Eu não sei quais são os seus interesses, senhor Darcy. – Ofélia aproximou-se. – Mas tem minha palavra.

E, com isso, apertaram as mãos. Quando Darcy voltou à sala, as quatro irmãs o aguardavam com ansiedade. Mas o inglês inventou qualquer desculpa a respeito dos gastos com o futuro baile, e pareceu suficiente para todas as moças aquela explicação. Não sabia o que estava acontecendo com ele. A verdade é que se importava com aquela família.

Já convivia com os Benedito há quase um mês, e Felisberto e as filhas faziam com que se sentisse em casa. De alguma forma, sentia que garantir que elas estivessem felizes o faria um pouco mais feliz. Mas ao olhar para Jane, Cecília, Lídia e Mariana, Darcy não teve dúvidas de que teria sucesso. Sua preocupação, surpreendentemente, era com a Benedito que não estava ali. A que, cada vez mais ele percebia, era a mais distante da felicidade.

##

Elisabeta relia a carta que estava em suas mãos. Sentia-se angustiada com o conteúdo da correspondência, mas não exatamente surpresa. Augusto Toledo havia lhe respondido. E, apesar de ser grato pelos sentimentos de Elisabeta, e estimar-lhe em demasia, não poderia cumprir o acordo. Sentia muito, é claro, e não era culpa dele. Seu pai é quem necessitava de parcerias de negócios.

A lágrima que escorreu foi a única, pois Elisabeta tratou de limpá-la rapidamente. Não queria chorar por Augusto. Entendia os motivos dele, e duvidava muito que sua mãe permitisse tal casamento, caso o Barão de Boa Vista estivesse a beira da falência, prestes a perder todo o seu patrimônio. Elisabeta quase podia ouvir a voz de Ofélia proferindo suas proibições.

Mas a verdade é que gostava de Augusto. Era bondoso, fazia com que se sentisse bem, e fazia com que Elisabeta planejasse seu futuro. Um futuro que talvez envolvesse escrever, viajar o mundo, uma família um pouco menos disfuncional. E agora essa possibilidade estava extinta, e mais uma porta se fechava em sua vida. Não queria sofrer, não queria sentir pena de si mesma.

Ela não era assim. Apenas parecia cada vez mais difícil encontrar ânimo para fazer qualquer coisa. Era como se sua vida estivesse constantemente prendendo-a ao Vale do Café, à Ofélia. Não queria imaginar a reação da mãe ao saber que Augusto havia terminado tudo. Ofélia planejava que o casamento ocorresse antes de que o Barão e seu filho descobrissem sobre as finanças dos Benedito.

Não poderia mentir para ele, porém. Não queria começar uma vida baseada em conveniência, e muito menos gostava da ideia de depender financeiramente de alguém. Se Augusto quisesse se casar com ela, seria por quem Elisabeta era. Mas um riso irônico escapou de seus lábios ao pensar sobre isso. A verdade é que talvez ninguém realmente gostasse dela.

Seu pai gostava da filha perfeita, suas irmãs gostavam da irmã mais velha que era um exemplo. Sua mãe talvez nem gostasse realmente. Mas, quem gostaria dela, se soubessem de suas lágrimas durante a noite? De todas as vezes em que precisava respirar fundo para não enlouquecer? Das vezes em que o mundo parecia estar prestes a sufocá-la? Das tantas vezes em que a tristeza tomava conta de sua vida, tornando tudo escuro?

Quem entenderia que sua música era o refúgio? Que as melodias impediam sua mente de pensar negativamente, de martirizar suas escolhas, que faziam silenciar as palavras de Ofélia? Suas mãos começaram a tremer, e Elisabeta tentou respirar fundo, tentou acalmar seu coração.

Mas viu-se, minutos depois, entrando na Sala de Música em um quase desespero. Sentou-se ao piano – que estava aberto, Darcy estivera lá. Ele deixava o piano aberto, enquanto ela deixava fechado. O banco estava mais para trás, pois ele era mais alto do que ela. E suas partituras estavam novamente guardadas, pois Darcy era incapaz de deixá-las no lugar.

Seus dedos encontraram as teclas, e Elisabeta fechou os olhos. Deixou que a música aliviasse os seus pensamentos, que trouxesse paz à seu espírito. Repetiu e repetiu a mesma sequência, e só após quase uma hora percebeu que não prosseguia por não saber como. Assustou-se ao perceber que, sem dar-se conta, tocava a melodia que Darcy repetia quase todos os dias.

A melodia que fizera com que ela iniciasse uma partitura apenas ao ouvi-lo, que a instigava quase todas as noites, ansiosa pelos novos trechos. A música que parecia falar com ela e sobre ela, como nunca antes sentiu acontecer. Mas não pretendia tocá-la, não pretendia invadir assim a vida de Darcy. Mal podia imaginar como se sentiria se ouvisse alguém tocando uma de suas músicas.

Ainda assim, instintivamente repetiu a sequência. E antes que pudesse evitar, adicionou algumas notas, testou algumas continuações. Surpreendeu-se ao notar que a melodia continuava coerente, como se fosse uma única composição, como se ela não fosse uma intrusa naquela música.

E Darcy a ouvia, com as mãos apoiadas na porta de seu quarto, seus ouvidos atentos, e a respiração ofegante. Ouvira desde suas primeiras notas. Estava ali, no mesmo lugar, ouvindo Elisabeta repetir sua música, suas notas. E agora fora arrebatado por uma continuação, exatamente no ponto em que ele estava paralisado há alguns dias.

Agora parecia óbvio, ouvindo as notas dela, como se sempre estivessem ali. Apressou-se em pegar a partitura original, e ouviu atentamente Elisabeta repetir a sequência, anotando cada uma das novas notas, dando continuidade à seu trabalho. E mais tarde, viu-se copiando tudo em uma nova partitura. Só não sabia ainda o que fazer com ela.

 


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