Duet escrita por oicarool


Capítulo 10
Capítulo 10




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2018

Elisabeta Bennet repetia as teclas do piano, uma a uma. Encarava, insatisfeita, a partitura amarelada, com as bordas rasgadas, plastificada por ela há alguns anos, para que não se deteriorasse ainda mais. Elisabeta lembrava-se perfeitamente da primeira vez que vira aquele pedaço de papel, em um baú na casa da avó materna, jogado no porão da casa da fazenda. Ainda estava em suas primeiras lições de piano quando viu aquela partitura sem nome, sem anotações. E mesmo agora, anos depois, aquela melodia a intrigava.

Mesmo depois de anos estudando piano, de dedicar sua vida à partituras e notas, a audições, concertos, viagens pelo mundo, aquela canção incompleta ainda incomodava Elisabeta. Qual seria a história daquela música? Quem seria seu compositor? Era uma mistura tão única de notas, e cada vez que reproduzia a música, Elisabeta sentia-se transportada para outro lugar. Era intenso, e ainda assim, mesmo centenas de tentativas depois, nunca fora capaz de continuar a composição.

— De novo essa música? – Ofélia, sua empresária, adentrou a grande sala do luxuoso hotel, impaciente. – Elisabeta, você precisa se dedicar. Temos um grande evento esta noite.

— Não precisa se preocupar. – Elisabeta sorriu, cínica. – Sei fazer meu trabalho.

— Pois, se dependesse de você, ainda estaria no Brasil, onde ninguém valoriza a música clássica. Graças a mim você teve a chance de tocar em tantos lugares.

— Fico comovida com a forma como você valoriza meu talento. – a mais nova revirou os olhos.

— Eu sou sua empresária, e não sua mãe. – Ofélia sorriu, mordaz. – Deixo os elogios para seu pai e sua irmã Cecília.

— Minha mãe deve celebrar, onde quer que esteja, eu estar em tão boas mãos. – Elisa respondeu, irônica. – Papai e Cecília estão ocupados no Brasil, seria inviável virem até Paris.

— Elisa, Elisa! – a conversa foi interrompida por uma moça loira, apressada. – Você precisa se arrumar. Ainda temos muito o que fazer, e aquele site de música quer fazer uma live stream pelo facebook.

— Acalme-se, Jane. – Elisabeta sorriu para a melhor amiga, que também era a responsável por organizar todos os seus compromissos. – Por favor, respire.

— Não há tempo. Você tem uma hora para ficar pronta. E eu já vi a banheira do seu quarto. Consigo ler seus pensamentos nesse momento, e a resposta é não. Não há tempo para um banho de duas horas, Elisa. – Jane reclamou.

— Eu não falei nada! – Elisabeta defendeu-se, com um sorriso. – Jane, você precisa se acalmar. Quando é mesmo que passará uns dias com Camilo?

— Elisabeta! – Jane ralhou. – Vá se arrumar!

Elisabeta gargalhou, levantando-se rapidamente, sob o olhar atento de Ofélia, que já iniciava uma discussão com Jane. Não sabia por quanto tempo seria capaz de tolerar aquela mulher odiosa. Se não fosse completamente alheia à burocracia, poderia ela mesma gerenciar sua carreira. Não era como se uma pianista fosse como os astros do pop e do rock. Não tinha assim tantos compromissos. Mas precisava de Ofélia, porque mesmo os poucos que tinha eram suficientes para que se atrapalhasse.

Por ela, passaria seus dias na Fazenda, no interior de São Paulo, no velho piano onde aprendera quase tudo. O silêncio do campo, o som dos pássaros e do vento, era tudo muito mais acolhedor do que os grandes salões pelo mundo. Mas, ser uma pianista era seu sonho de infância, e agora que sua carreira finalmente estava no rumo certo, não poderia dar-se ao luxo de dispensar sua empresária.

Sentia falta do pai e da única irmã. A mãe falecera há alguns anos, muito antes de Elisabeta se tornar profissional. Mas, onde estivesse, Elisa sabia que vibrava por ela. E estar longe de Felisberto e Cecília era necessário, ao menos por enquanto. As trocas de mensagens e telefonemas teriam que ser suficientes, mesmo com a proximidade do casamento de Cecília e Rômulo.

Foi com o pensamento perdido que Elisabeta começou a arrumar-se. Tomou um longo banho – ainda que não tão longo quando desejasse, fez a maquiagem leve a qual estava acostumada para as apresentações, vestiu a roupa cuidadosamente passada. Era uma rotina, quando finalmente deixava de ser Elisa para virar Elisabeta Bennet, a pianista. E aquela era uma grande noite.

##

Darcy Fitzwilliam estava exausto. Tudo estava dando errado naquela semana. Voara à Paris especialmente para fechar um negócio, e seu ex-futuro sócio havia desistido na última hora. Ema não parava de ligar, exigindo que Darcy voltasse para casa para o jantar que preparara, e após virar três copos de whisky, simplesmente desligara o aparelho, sem dar satisfações para a esposa. Sua vida estava um desastre nos últimos tempos, e nada parecia ter perspectiva.

A crise estava afetando seus negócios no Brasil, e era uma questão de tempo até que  sua irmã, Mariana, recorresse a sua ajuda. Ema, em contrapartida, não cogitava a ideia de voltar ao país de origem, e seu feliz casamento se transformara em um mar de brigas e desentendimentos. Afundou-se um pouco mais na cadeira, com o quarto copo na mão. Não voltaria à Londres naquela noite, não pensaria nos problemas.

Sua vontade era andar pelas ruas de Paris, observar a iluminação da Torre Eiffel, ouvir uma boa música. Tudo, exceto pensar em contas, no prejuízo que a não conclusão do negócio iria gerar, nas brigas que o aguardavam em casa. Quando perdera tanto o controle? Quando sua vida milimetricamente planejada fugira de suas mãos?

Archibald Fitzwilliam, caso fosse possível morrer duas vezes, o faria novamente ao ver a situação de Darcy. Darcy e Mariana eram frutos do primeiro casamento do inglês com uma brasileira, e logo após a morte da mãe deles, Archibald casou-se novamente, dessa vez com a mãe de Charlotte. Tinha uma relação distante com a irmã mais nova e a madrasta, mas tinha certeza de que estava prestes a receber as ligações de Margareth, que certamente já estava informada por seus advogados sobre as dificuldades das empresas.

Darcy passou as mãos pelos cabelos, respirando fundo. Virou o quarto copo, pedindo outro em seguida. Afrouxou a gravata, já sentindo o efeito da bebida alcoólica, e ligou novamente o pequeno aparelho celular. As mensagens de Ema brotaram na tela no mesmo segundo, e Darcy quase arrependeu-se. E então o nome da esposa brilhou em uma ligação, e Darcy não teve mais como fugir.

— Ema... – atendeu, de má vontade.

— Darcy, nós estamos esperando você para o jantar. Ernesto já está aqui. — a voz soou do outro lado.

— Ema, eu não vou retornar à Inglaterra hoje. Jante com seu primo, convide suas amigas. Deus, só me deixe em paz. – suspirou.

— Você não pode estar falando sério. Você não pode fazer isso comigo. — Ema gritou.

— Eu não estou fazendo nada com você, Ema. Apenas me deixe em paz esta noite, por favor. – suplicou.

E antes que a esposa pudesse responder, Darcy desligou novamente o aparelho, soltando seu corpo no estofado do bar daquele hotel, sentindo-se cada vez mais infeliz.

##

Dera tudo certo, ou quase certo. A apresentação havia sido um sucesso, como sempre, mas Ofélia passara o caminho inteiro falando sobre o quanto Elisabeta precisava melhorar. E ela já não aguentava mais. Os planos de uma noite relaxante rapidamente passaram a necessidade de uma bebida alcoólica, e foi pensando nisso que Elisabeta entrou no bar do hotel, quando o relógio já passava das duas horas da manhã.

O ambiente estava quase vazio. Quase. Exceto por um homem em uma mesa no canto, com o rosto mal iluminado. O suficiente, porém, para que Elisabeta pudesse ver seus olhos. Em um tom claro, com uma expressão curiosa. E então ele a encarou. Os olhos dele estavam nos dela, e foi como se Elisabeta estivesse em queda livre. Seu coração bateu mais rápido, sua respiração descompassou. Estava presa naquele passo não dado em direção ao bar.

Era como se aqueles olhos fossem parte de sua vida há muito tempo. Como se estivesse reconhecendo um velho amigo. Resistiu ao impulso de se aproximar dele, mas não conseguiu desviar o olhar. Era intenso. A coisa mais forte e poderosa que parecia ter acontecido em sua vida. Era assustador.

Darcy estava preso naquela cadeira, no olhar verde daquela estranha. Como se a esperasse. Deus, como se a esperasse uma vida inteira. Engoliu em seco, a língua já enrolada por tantas doses. E talvez fosse o álcool o responsável por aquela sensação engraçada, familiar. Pela sensação que já a conhecia, que bastava puxar uma cadeira para alguém que fizera parte dele desde sempre. Exceto que não a conhecia, nunca havia visto aquele rosto.

Lembraria se a conhecesse. Era uma beleza extraordinária. Traços delicados, harmônicos. Perfeitos. Foi como se apenas aos poucos o ambiente voltasse ao normal. Darcy passou a ouvir novamente os ruídos de uma música ambiente que espantaria qualquer pessoa, o som das bebidas no bar sendo preparadas. E então o olhar dela fugiu do olhar dele, e Darcy sentiu um vazio em seu coração.

Elisabeta tinha as mãos trêmulas quando sua taça de vinho foi entregue. Mal conseguia segurá-la, incapaz de compreender o que havia acabado de acontecer. Mas não resistiu ao impulso de olhar para aquele estranho mais uma vez, e lá estava ele, olhando para ela. Dessa vez ele sorriu, e Elisabeta não soube que força se apoderou dela, apenas que, alguns segundos depois, estava sentada em frente à ele.

— Darcy Fitzwilliam. – ele estendeu a mão.

— Elisabeta Bennet. – a contragosto, Elisa ofereceu a mão.

Darcy a tocou, e um arrepio forte passou pelo corpo dos dois. Tão forte, que fez com que retirassem as mãos.

— Elisabeta? – Darcy perguntou, e então disse, em português. – Você é brasileira?

— Eu sou brasileira! – Elisabeta abriu um grande sorriso. – Mas você tem um certo sotaque.

— Inglês. – Darcy ergueu a sobrancelha, desculpando-se. – Minha mãe era brasileira.

— Me desculpe sentar assim. – de repente Elisabeta deu-se conta do absurdo do que fazia. – Não sei o que me deu.

— Tudo bem. Eu acho que estou mesmo precisando de companhia. – Darcy sorriu. – Nós já nos conhecemos?

Um estudou o rosto do outro, por alguns segundos.

— Não, eu não acredito que já nos conhecemos. – Elisabeta respondeu, confusa.

— Estranho. Eu sinto que já a conheço, Elisabeta. – o sorriso dele se desfez, como se constatasse algum muito sério.

— Eu também tive esta impressão. Mas acredito que me lembraria de você. – Elisabeta bebeu um longo gole.

— Eu certamente lembraria de você. – Darcy sorriu novamente, dissipando aquela tensão.

Mas não totalmente, porque era forte demais, intensa demais a sensação de que não era a primeira vez que se viam, de que não era a primeira vez que interagiam. Era como se fizessem parte da vida um do outro.

— E então, Elisabeta, o que faz em Paris?

— Estou aqui a trabalho. – ela sorriu, olhando para as próprias mãos.

— Eu também estou aqui a trabalho. – Darcy resmungou, bebendo um pouco mais. – Pelo menos deveria estar aqui a trabalho. Agora estou aqui para beber e esquecer os problemas.

— E precisa vir a Paris para isso? – Elisabeta riu, olhando-o novamente.

— Não seria a primeira vez. - respondeu, amargo. – Me desculpe, Elisabeta. Acredito que eu pareça uma pessoa melhor na maioria dos dias.

— Você me parece uma pessoa aceitável. – ela deu de ombros. – Afinal, por algum motivo eu senti vontade de te fazer companhia.

— Vamos brindar, então. A dois estranhos em um bar, em uma madrugada qualquer em Paris.

No momento em que o copo de Darcy tocou a taça de Elisabeta, foi como se novamente o tempo parasse. O olhar dele buscou o dela, e ambos engoliram em seco. Não era apenas familiaridade. Era algo a mais. Era como uma atração, como se fossem sugados um para o outro. Como se nada ou ninguém existisse, a não ser os dois, naquele momento.

Então, a música mudou para algo tranquilo, quase sensual, e Darcy viu-se tomado por impulsos que nunca antes tivera. Por uma vontade de puxar aquela estranha para seus braços, provar seus beijos, seu gosto. Uma vontade de esquecer-se da esposa, dos problemas da empresa, e perder-se nela. Ele levantou-se, de repente, tentando controlar seus pensamentos, seu corpo.

Mas já havia bebido um pouco a mais, e desequilibrou-se momentaneamente, o suficiente para Elisabeta também levantar-se e ajuda-lo a ficar em pé. E foi esse movimento que fez com que ficassem próximos demais. Elisabeta segurava firmemente o braço de Darcy, o calor do corpo dele chegando ao seu. O rosto dela aproximou-se do dele, e estavam apenas alguns centímetros de distância quando o telefone de Elisabeta começou a tocar.

Em um pulo, os dois se afastaram, e Elisabeta foi embora, sem olhar para trás.


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Notas finais do capítulo

Oh, meu Deus, o que aconteceu?
Sim, gente. Infelizmente nossos lindos personagens de 1910 tiveram uma morte trágica, e foram impedidos de viver o amor da forma como mereciam.
E agora eles se encontram novamente em 2018, com vidas completamente diferentes - e muito mais complicadas.
Não me matem, por favor. Eu passei um tempo sem escrever e queria muito fazer uma história baseada em Além do Tempo. A ideia era fazer isso com uma história nova, mas a verdade é que Duet é simplesmente perfeita para isso.
Espero que sintam tanta vontade de acompanhar as aventuras de 2018. E, a quem se decepcionar com o desfecho, sinto muito pelo desapontamento.