Yōso - Contrato de Aluguel escrita por Cristina Barbosa


Capítulo 2
Capítulo 2 - As lágrimas da garota sem nome




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/767802/chapter/2

    Havia um aglomerado de estudantes na calçada, conversando e dando risada. O sinal não havia tocado ainda, mas quase todas as salas estavam livres. Como de costume, estávamos nós três no ponto de ônibus. Nossos olhares iam do final da rua, de onde o ônibus viria para o portão da escola.

    — Cadê a Lu? — Rafael perguntou pela terceira vez nos últimos cinco minutos.

    Heitor ao meu lado quase revirou os olhos.

    — Te disse que estávamos fazendo prova.

    — É prova de qual professor? — ele tornou a perguntar.

    — Carlos — respondeu, mas logo depois completou ao ver o sorriso dele crescer. — Ela não vai responder qualquer coisa para sair.

    — Eu não disse nada, oras.

    Rafael tentou parecer ofendido, mas não colava. O professor Carlos, além de ser o mais tranquilo dos professores, tinha uma verdadeira admiração por Luana e Heitor já que eram os melhores alunos. Para Rafa isso poderia servir de vantagem. Um barulho no final da rua denunciou que o ônibus estava chegando, enquanto uma garota saia correndo do portão.

    — Hey, meninos.

    Sua franja estava um pouco colada na testa pelo suor e sua respiração estava entrecortada. Enquanto chegava até nós, ela olhou para trás vendo o ônibus pertinho. De repente meu coração estava acelerado, sem eu ter corrido nada.

    — Ufa, deu tempo.

    Fiquei paralisado a olhando subir no ônibus e senti o dedo de Rafael me empurrando para que eu subisse, junto de seu olhar dizendo que não havíamos terminado aquela conversa.

    Assim que subi, notei que o ônibus estava amarrotado de pessoas, o que não era nada legal e não teria como eu sentar ao lado de Luana como de costume. Ela se esticou, passando por entre braços e corpos e se escorou ao lado do banco, inacessível. Heitor não se dera o trabalho de procurar um canto e se segurou na barra ao lado, poucos centímetros de mim e lá ficou.

    Segui um pouco mais, tropeçando nos pés e pedindo desculpa.

    — Zar, vamos mais para trás. Vai ser melhor. — Rafa chamou, abrindo espaço.

    — Certo.

    O segui porque estava começando a ficar sufocado e o cheiro de combustível estava entrando pela janela que deveria me ajudar a respirar. Nunca me dei bem com viagens de carros, era a criança que enjoava e certamente continuaria desse jeito. Meu avô sempre dizia que, meu pai, um amante de passar horas dentro de um carro viajando, se sentiria ofendido. Vomitar faria todos me odiarem em dois tempos. Rafael sabia muito bem disso, fora o alvo de um momento nojento, que não gostaria de repetir.

    — Neguin, aqui — alguém disse, dentro do amontoado de pessoas e o meu amigo suspirou.

    De primeiro não reconheci e não entendi porque a expressão de Rafael havia mudado, mas após passarmos por algumas pessoas e ter mais reclamações eu o avistei. Ben, o vizinho problemático do meu amigo, estava sentado sozinho em um dos bancos do ônibus. Deduzi pela cara de todos que ninguém estava interessado em partilhar do mesmo assento que ele. Ben estava com a costumeira camisa larga e a corrente no peito, a única diferença é que não usava o boné, por isso seu cabelo curto, quase raspado, estava a amostra. As cicatrizes perto da boca e na sobrancelha, ganhas em brigas que Rafael preferia não citar, davam um ar meio sinistro a ele. De longe, vi o volume da faca que ele carregava embaixo da camisa. Era a típica pessoa para se manter a quilômetros de distância, mas Rafael havia crescido sendo amigo dele, quando era uma boa pessoa e sentia a necessidade de ajudá-lo.

    No entanto, a parte boa dessa aproximação é que sua família não fazia parte dos furtos de coisas do quintal.

    Não ao menos na calada da noite.

    — Me empresta um dinheiro ai, to passando por uns sufocos, cê sabe. — Sua voz grossa saiu baixa, assim que o nosso amigo sentou ao seu lado. As pessoas viraram para observar.

    Rafael quase riu, Ben usara uma palavra singular para descrever o ato de pegar dinheiro e nunca mais devolver. Isso o estava cansando, eu sabia, principalmente porque seus esforços estavam sendo em vão e o garoto se envolvia ainda mais com bebidas e drogas.

    — Nem vem. Você tá vindo de onde?

    — Não te ofereci o lugar pra fazer pergunta não, tá ligado?

    — A sua mãe sabe?

    Eu quase não pisquei e Ben estava com a mão fechada em volta da gola do uniforme de Rafael. O gesto pareceu casual e fizera todos desviarem os olhares.

    — Você não é meu pai, tá ouvindo?

    Não que eu fosse medroso, mas o olhar que o Ben lhe deu junto de tudo o que sabia sobre ele foi o suficiente para que eu continuasse atrás de dois homens, como um escudo. Como um garoto de quinze anos conseguia parecer tão velho e tão intimidante? Não fazia ideia.

    — Quatro olhos. — Acenou ao perceber que eu o olhava e eu precisei acenar de volta.

    Ele tinha uma aura sinistra.

    Ao meu redor, os passageiros estavam tensos, mesmo sem olhar diretamente eles perceberam quando Ben guardou o dinheiro que Rafa entregou e a sua faca apareceu de relance.

    Mas, dentre as pessoas ao meu redor, uma garota me chamou atenção. Ela estava há cerca de quatro bancos na minha frente e tremia. Passei pelos dois homens, para me aproximar um pouco mais dela e o ônibus por um quebra mola de última hora, sem aviso e puxou para o lado.

    Não consegui me equilibrar e cai sentado entre Rafael e o seu vizinho. 

    — Gosta da fruta, é? Tem cara mesmo — Ben zombou, com as minhas tentativas de desentalar do banco, já que metade da minha perna ficou presa. — Mas eu não gosto não, vamo, sai.

    — Não enche — Rafa murmurou, me ajudando e senti a mão de Ben também me empurrando. Havia conseguido sair.

    — Desculpe e obrigado.

    Enquanto tentava passar com dificuldade por entre dois homens, percebi que minha carteira não estava mais no bolso da calça e não precisei virar o rosto para saber que Ben havia pegado. Suspirei, agradecendo internamente por meus documentos estarem na mochila e continuei passando por entre as pessoas. Estava há dois bancos da garota e conseguia ver um pouco mais do seu cabelo preto, os cachos bagunçados num rabo de cavalo baixo e uma mecha rosa. Olhei ao meu redor, para ver se alguém havia percebido o estado dela, mas não, a pessoa que estava sentada ao seu lado, tinha a cabeça escorada na janela do ônibus, como se dormisse. Os outros, não olhavam.

    Andei mais um banco, como pude, sem olhá-la e respirei fundo. Com cuidado, virei apenas o olho. Ela chorava como se sua vida estivesse sendo arrancada, sem preparo e sem anestesia, como se o último suspiro estivesse sendo dado. Nunca vi uma mulher chorar tanto assim. Sem precisar olhá-la diretamente, fui deixando os segundos passarem, suas mãos indo incontáveis vezes em direção aos olhos secar as lágrimas que brotavam insistentemente. Na terceira vez que ela limpou o nariz com o lenço encharcado percebi que o choro não estava diminuindo. Eu precisava fazer algo, porque quanto mais ela tremia, mais eu me sentia desconfortável.

    Eu não sabia se ela queria companhia, talvez as pessoas ao seu lado tivessem tentado se aproximar e ela explicara que apenas queria chorar sozinha. Tinha que ser isso, porque não era possível que olhassem para todos os lados, menos para o banco onde ela se encontrava. 

    Esperei. Ela não estava melhorando. Sem pensar muito, dei um passo para o lado.

    — Oi. Tu… — Não, sem tudo bem, sem constrangimento. — Você sabe se terá ônibus às seis horas?

    Admito, não sou muito bom puxando assunto.

    — É, bem… sim… pelo menos é o que diz… ali. — Ela apontou a mão trêmula para o papel fixado, a cerca de um metro, bem na minha cara.

    Reformulando, péssimo em puxar assunto.

    — Ah, claro… tem razão, obrigado. — Pensa, pensa, pensa. — Já te vi por aqui antes?

    — Acredito que não. — Eu também não, mas ao menos ela não estava chorando — Cheguei de… viagem... essa semana.

    — Entendo, deve ter sido apenas impressão.

    — Talvez.

    Ela voltou a olhar para as mãos, o esboço do sorriso que quase dera sumindo enquanto observava os dedos. Vasculhei em minha mente qualquer boa continuação de conversa. 

    — É fã dessa série? — perguntei apontando para a estampa da sua camiseta.

    — Sim, você também?

    — Com toda certeza — Sorri, eu realmente era. — A última temporada foi uma dos melhores.

    — Sério que você achou isso? Odiei o final, as explicações que deram — ela disse, fazendo uma careta que acentuava ainda mais a cara de choro.

    — Pois foi justamente esse motivo que eu gostei.

    — Não sei como.

    Olhei ao redor, em busca de mais algum tópico de conversa, foi então que vi, por cima de uma das bolsas que ela tinha no colo, um colar. O pingente era um cilindro vermelho, talvez de pedra, menor que o meu dedo mindinho e tinha alguns arabescos entrelaçados. Era realmente bonito, quase brilhante.

    — Bonito colar.

    Seus olhos se arregalaram e ela olhou para baixo apressada. Em dois segundos havia colocado de volta o colar na bolsa e virado para mim com um sorriso aberto.

    — É um amuleto… era da minha avó, depois da minha mãe.

    — Ah! Que legal, depois para a sua filha.

    — Eu tenho que ir.

    — O que?

    Ela agarrou todas as bolsas e se levantou com dificuldade, todas as pessoas se afastando para lhe dar espaço. Logo depois dera sinal para o motorista parar e desceu, sem olhar para trás em nenhum momento. O que foi que eu fiz? Será que ela não queria ter filhos? Claro que era isso, isso ou não podia ter filhos. Mas que droga, eu não podia ter sido mais inconveniente, talvez o motivo do choro fosse inclusive esse. Nem seu nome eu havia perguntado.

    Após alguns minutos, que passaram voando porque eu não prestei atenção, pensando na garota sem nome e se ela estava bem, chegamos a nossa parada e nós quatro descemos. O céu estava completamente escuro e a brisa da noite fria formava um dos melhores momentos do dia, voltar para casa a pé observando as estrelas e as fases da lua. Luana ao meu lado, parecia ansiosa.

    — Ele chega hoje, não é? — perguntei, enquanto andávamos até a esquina.

    — Sim, já devem estar voltando.

    Paramos na esquina, cada um com a mochila nas costas.

    — Até amanhã.

    Rafael seguiu para a direita, sua casa era a mais próxima, mas mesmo assim ia correndo. Segundo ele “todo tempo é tempo de se exercitar”. Estava fazendo um grande esforço para não engordar mais, após todo o trabalho que tivera. Luana e Heitor, por morarem na mesma rua, seguiram a esquerda, continuando a conversar. Eu era o único que continuaria naquela rua.

    Observava as estrelas enquanto caminhava, ou melhor dizendo, confundia uma constelação da outra, já que eu não sabia onde cada uma começava ou terminava. Durante uma constelação que eu achava que era a de Órion, para a outra que eu tinha certeza, uma risada arrepiante ecoou na rua. Instantaneamente parei e apurei minha audição, eu devia ter ouvido errado e era apenas uma criança brincando.

Passei as mãos nos braços duas vezes, porque meus pelos teimavam em permanecer eriçados e continuei andando. Dessa vez sem olhar para as estrelas. A segunda risada veio e senti meu corpo gelar. Esse bairro não era violento, por isso meus avós havia o escolhido, mas eu não ia pagar para ver. Acho que já disse que não sou uma pessoa medrosa, mas sem pensar duas vezes, comecei a correr.

    Cheguei na minha rua em metade do tempo que eu costumava chegar e com o coração batendo mais rápido que qualquer corrida que eu fizera na vida. Estava gelado e ainda sentia que alguém me seguia, mas mesmo assim, diminui os passos. A última coisa que queria era que minha avó se preocupasse com algo. Pelas grades do portão da casa vizinha, vi Ernesto no seu quintal.

    — Boa noite, seu Ernesto! — o cumprimentei alto.

    Ele não respondeu e apenas virou a cadeira de rodas para dentro de casa, como das outras vezes. No mesmo ano que meu avô morreu, Ernesto sofreu um acidente, o deixando de cadeira de rodas. No dia que tentei visitá-lo, minha avó falou algo sobre ele ter perdido uma parte da audição, por isso não me escutava. A audição dele, nos últimos anos, talvez tivesse piorado.

    Quando finalmente abri o portão, suspirei aliviado, soltando todo ar de uma vez.

    — Boa noite, querido. Está suado. — Minha avó se aproximou quando abri a porta da cozinha e olhei para baixo.

    Estava com a camisa grudada em minha barriga, apesar de ainda estar com frio, isso sem contar nas enormes pizzas abaixo dos meus braços. Tratei de colocar um sorriso no rosto.

    — Estava correndo, vó.

    — Rafael é bem persuasivo.

    — O que? — perguntei, confuso com a menção.

    — O Rafa, não foi ele quem te convenceu a correr? — explicou, colocando a xícara na pia.

    — Ah, claro, claro. Ele listou tantos benefícios que não aguentei. Sabe como é, ele vive falando sobre isso.

    Ela acreditou, sem questionar e começou a preparar o jantar, não fui tão ruim. Claro que ela quem me deu de bandeja a desculpa e quase não a peguei, mas vou ignorar isso.

    — Vó, antes que eu esqueça — a chamei, enquanto subia para o meu quarto. — Ernesto está em casa.

    Acordei, mas permaneci com os olhos fechados ouvindo o bip insistente do meu despertador tocar, me trazendo uma tarefa que eu sempre adiava: trocar esse som. Ainda não havia achado o melhor toque, no mês anterior tentei um instrumental de piano, mas quando me dei conta acordei uma hora depois do que devia porque o toque era calmo demais. Esse, no entanto, estava fazendo minha cabeça doer. O bip parou e sabia que ele voltaria a tocar depois de dois minutos e permaneci de olhos fechados aproveitando esse tempo.

    Antes dos dois minutos, porém, senti um peso no meu rosto acompanhado de um miado ainda mais insistente que o despertador. Maya havia percebido que eu não acordara e isso para ela, era uma desfeita das grandes. Logo após o despertador voltou a tocar.

    Ok, dor de cabeça iniciada com sucesso.

    Abri meus olhos com dificuldade e dei de cara com um vulto preto e dois olhos verdes enormes, desfocados, me encarando.

    — Certo, senhora, acordei. Satisfeita? — Recebi apenas um miado e ela voltou a deitar na cama ao meu lado.

    Desliguei o despertador e comecei a procura por meus óculos. Normalmente ele estaria na mesinha ao lado da cama, mas Maya sempre o pegava durante a noite, por isso eu o guardava em diferentes lugares, naquela manhã ele estava na gaveta. Peguei os óculos e percebi os olhos da minha gata analisando o local.

    — Nem vem.

    Antes de me arrumar, vi que tinha uma mensagem não lida de Rafa e abri.

    “Não pense que escapou, queremos saber o que você tem.”

    Iria fingir que não vi a mensagem e continuar a me arrumar, o que por sinal, estava atrasado. Precisava tomar café antes de ir, porque não aguentaria nem meia hora antes de ficar fraco. Desci as escadas com a minha bicicleta preta ao lado e Maya atrás. Parei no portal da cozinha, logo a frente estava minha avó no fogão, remexendo a panela e cantarolando uma música que não reconhecia. O contraste da minha ausente animação a alegria de minha avó chegava a ser assustador. Bocejei mais algumas vezes, verificando o relógio na parede ao lado da porta que dava para a área no quintal, já eram 6:15. Tinha apenas cerca de vinte minutos para ajudar a minha avó a terminar de cozinhar e comer, antes que meus três amigos aparecessem para andar de bicicleta.

    Quando éramos crianças, mas precisamente no aniversário de 10 anos do Heitor, ele partilhou com a gente que sua mãe havia comprado uma bicicleta e nós, como invejosos que somos, pedimos insistentemente aos nossos que fizessem o mesmo e logo em seguida começamos essa rotina: acordar todo santo dia, às seis horas para andar de bicicleta por aí. Me faltava coragem de acordar, mas perceber que meus dias duravam mais era o suficiente para que eu não desistisse, além de ser minha única atividade física. Andei mais um pouco, bocejando e observei minha avó começar o refrão da música que cantava.

    — Bom dia, vó.

    — Ah! Bom dia, querido! — me respondeu, após pular com o susto. — Dormiu bem?

    — Sim... e a senhora?

    O cheiro de tomate vindo da panela me pegou desprevenido, fazendo meu estômago roncar. A expressão satisfeita de minha avó ao perceber isso, fez um sorriso aparecer em meu rosto. Com expectativa, me aproximei mais um pouco da mesa, que me separava dela, para que pudesse enxergar o que estava começando a ferver dentro da panela, eu e meu estômago pedindo para que fosse o que estávamos pensando.

    — Para panquecas? — perguntei esperançoso, apontando para a carne que cozinhava.

    Ela balançou a cabeça com um grande sorriso, tendo plena consciência que aquela resposta acertava diretamente no meu ponto fraco. A notícia de que meu prato preferido seria o café da manhã, me fez correr ao balcão para pegar todos os ingredientes para a massa. Instantaneamente, eu estava com a animação da minha avó.

    Em pouco tempo, terminei a massa e estava no fogão com ela. Eu, como um exímio virador de panquecas, me arriscava cada vez mais, jogando elas alto ao mesmo tempo que contava a minha avó sobre como estava indo minha semana de aulas. Ela também aproveitava para me contar momentos parecidos que passou quando estava na faculdade de Jornalismo há quase quatro décadas. Porém a minha atenção estava dividida em duas tarefas que exigiam certa concentração, o que me rendia alguns sustos com as panquecas quase caindo no chão e broncas da minha avó de que eu limparia o que caísse, tentando disfarçar suas risadas a cada tentativa minha frustrada. A missão de bancar a avó durona nem sempre era bem sucedida.

    Eu estava despejando a última massa, quando lembrei que o trigo na dispensa estava acabando.

    — Vamos fazer as compras essa semana ou na próxima, vó? — perguntei, no momento que pegava mais uma panqueca no ar. — Vó?

    Levantei o olhar para ver o que ela estava fazendo e percebi que estava no celular. Pelas rugas que se formavam em sua testa, algo nada bom estava acontecendo.

    — Está tudo bem?

    Minha avó desligou a chama do fogão, sua animação desaparecendo por debaixo de um suspiro pesado.

    — Parece que alguém aqui de perto desapareceu.

    — Não sabe quem é? — perguntei, com um embrulho no estômago.

    — Ainda não, estou esperando responderem — minha avó disse séria, indo pegar os pratos para as panquecas.

    — Talvez os meninos saibam de algo.

    Dei uma olhada no relógio, faltavam cerca de cinco minutos para que eles chegassem. Me sentei ao lado de minha avó, com os olhos grudados no celular e tentei comer, mas meu estômago estava embrulhado. E se fosse alguém conhecido? Continuei, mastigando devagar a comida e olhando para a porta da cozinha a cada minuto, um dos três saberiam de alguma resposta.

    Um toque de piano vindo do celular em cima da mesa, interrompeu meus olhares. Achei que era uma mensagem porque minha avó tinha a mania de deixar o mesmo toque para tudo, mas como prolongou, ela correu para atender.

    Ela começou uma conversa apressada e nada do que dizia era suficiente para que eu formulasse uma resposta concreta sobre quem estava desaparecido. Para completar ela foi para a sala a dois cômodos e tive que desistir quando escutei vozes adentrando no quintal.

    — Chegamos! — meu amigo Rafael exclamou, pela voz estava sorrindo e logo depois apareceu na porta da cozinha. — E estamos entrando.

    Rafael não sabia.

    O sorriso espontâneo indicava isso. Porém, a falta de sorriso quando Heitor entrou logo em seguida, indicava o oposto, ele sabia quem desapareceu. Entrei em alerta quando percebi que Luana não estava com eles.

    — Opa — cumprimentei, engolindo o resto da comida. — Cadê a Lua?

    — Mandou mensagem dizendo que vai nos encontrar lá na frente — Heitor respondeu ainda de pé ao lado da porta.

    — Certo. Querem panqueca?

    — Comi em casa, mas está com um cheiro ótimo.

    Rafael se aproximou do fogão para fazer sua própria panqueca e tive a certeza que teria o dobro do recheio que caberia.

    — Não vai querer, Heitor? — perguntei e o seu sorriso sem jeito junto com o cheiro do recheio, me fez lembrar o motivo. — Desculpe, esqueço às vezes.

    Heitor era ovolactovegetariano há seis meses. Nome que demorei para aprender e significava que ele não comia carne, mas ainda comia ovos e leite. Dizia "ainda" porque um de seus objetivos era parar com tudo. Desde esses seis meses, nós em vez em quando esquecíamos desse detalhe e precisávamos correr de última a procura de algo que ele pudesse comer, antes que o próprio chegasse, para não criar um clima estranho.

    — Tranquilo. — Ele sorriu, mas ainda um sorriso vago.

    Ao meu lado, Rafael engolia uma mordida generosa, antes de tirar um embrulho do bolso e vasculhar a cozinha com o olhar.

    — Maya está dormindo?

    Não precisei responder porque ela se encontrava esparramada na entrada da cozinha. Ele fez um carinho nela e deixou o embrulho em cima do balcão, que certamente era mais algum brinquedo ou pelúcia.

    Minha avó ainda conversava no celular, mas pelo tom em sua voz, parecia já ser outro assunto. Deduzi que a conversa não terminaria tão cedo e comi o resto da panqueca apressado. Peguei minha bicicleta, rumo ao quintal, não antes de Rafael pegar mais uma panqueca.

    — Heitor, você sabe algo sobre a pessoa que desapareceu?

    Ao meu lado, Rafael tossiu, se engasgando com a comida.

    — Como é? Alguém desapareceu?

    Olhei para o meu amigo mais novo a espera de explicações e ele assentiu, como imaginei que faria. Antes mesmo dele responder, fomos surpreendidos com um carro adentrando a calçada bem a nossa frente. Paramos bruscamente e ao meu lado, vi Rafa engolir trocentos xingamentos que gostaria de fazer. O motorista freou logo após pararmos e abriu o vidro do carro, a traseira dele há menos de um metro da gente.

    — Desculpe! — o homem disse e pude ver apenas um bracelete em sua mão, acenando, antes dele entrar na casa de Seu Ernesto.

    — Que falta de educação — Rafa bufou, pela falta de interesse.

    Dei de ombros, com meus olhos ainda pousados em Heitor. Ele continuava com o sorriso totalmente sem graça no rosto, mas não olhava para mim. Segui seu olhar encontrando Luana com os olhos inchados e sua bicicleta ao lado, vindo em nossa direção.

    — Oi, meninos.

    O cumprimento era o habitual, mas não estava acompanhado do sorriso.

    — Está tudo bem? 

    — Quer que eu fale, Lu?

    Me virei e percebi que apenas Heitor não refletia a confusão estampada em nossos olhares.

    — Eu falo. Vocês lembram do meu tio Marcelo?

    — Foi o que deu o Zeus para o Heitor, e estava chegando de viagem, não é?

    Zeus era um dos quatro cachorros do nosso amigo, era enorme e de aparência assustadora, o que não me deixava esquecê-lo e como Rafa lembrou, fora Marcelo que o entregara. 

    Marcelo era casado com a única tia da Luana que morava na cidade e Heitor era o que tinha mais apreço por ele, não apenas por morar na mesma rua, mas também porque tinha o mesmo gosto por animais grandes e com dentes enormes, que chamavam de cachorros. Eu também era grato a ele, por ter me indicado a veterinária de Maya.

    Começamos a andar devagar, esperando nossa amiga que tentava fechar a mochila, com a mão cheia de fotos que tirou de dentro.

    — O que tem ele?

    Foi com a pergunta de Rafael que a minha ficha caiu. Não era possível. Claro que não podia ser, mas o olhar de Luana dizia o contrário. Ela não tão pouco sabia quem havia desaparecido, como era sobrinha dele.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Yōso - Contrato de Aluguel" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.