Yōso - Contrato de Aluguel escrita por Cristina Barbosa


Capítulo 1
Capítulo I – Dia de visitar o quarto número três




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Finalmente o relógio marcava seis horas. Num dia normal, eu estaria acordando apenas a essa hora, mas não era um dia qualquer. Quarenta e cinco minutos ouvindo o tic-tac do relógio como uma canção de ninar. Cinco vezes que eu quase cochilei, mas os miados de minha gatinha, Maya, que adotei aos meus dez anos, sempre me tiravam dos últimos instantes antes de apagar. E minha avó ainda permanecia na cozinha.

    Sei disso porque do meu quarto eu ainda ouvia o terço na televisão e de vez em quando ela batendo a colher na beirada da panela para tirar o excesso de comida. 

    Eu havia contado quantos livros tinham nas prateleiras espalhadas pelo meu quarto, em cima do computador na minha frente e na parede ao meu lado. Havia chegado à conclusão que tinha livros demais sem ler e não compraria outros até acabar eles. O mapa acima da cabeceira da minha cama, colado na parede, tinha dezoito pontinhos vermelhos em locais que nunca visitei, serviam apenas de enfeite e da porta da sacada do meu quarto eu conseguia observar as flores tristes que nosso vizinho dera anos atrás. Eu havia esquecido de regar e minha avó me mataria se soubesse disso.

    Quando o relógio marcou uma hora desde que acordei e eu havia mordido toda a minha língua de nervosismo, o ranger do degrau defeituoso da escada, de quando meu avô derrubou a minha antiga cama na mudança, anunciou que minha avó estava fazendo o oposto do que eu queria. Fechei os olhos segundos antes dela abrir a porta.

    — César? — ela murmurou. Senti seus olhos em mim e fiz força para permanecer imóvel. — Está dormindo?

    Maya miou duas vezes, tentando avisar de minha mentira e senti o peso de sua pata no meu rosto.

    — Ei, deixe ele dormir, Ma. — Pelo seu movimento ela estava tirando a pata dela, fiquei tenso porque sentia meus olhos tremerem.

    Apesar do miado insistente, a ouvi caminhar até a porta, fechá-la e logo depois a escada barulhenta, só assim abri os olhos.

    — Você quase estragou tudo, senhorita — disse, fazendo cara de bravo que logo se desmanchou quando ela ficou de barriga para cima.

    Esperei enquanto fazia carinho em sua barriga. Esse simples gesto chegava a ser irônico se fosse parar para pensar nos primeiros meses de Maya comigo e na quantidade de mordidas que levei quando tentava me aproximar. Só insisti porque meus avós diziam que “a faltava amor”. Eu tinha a marca de uma dessas tentativas, na minha bochecha esquerda. A parte boa era que o seu pelo preto esquentava a minha mão gelada e servia como calmante. Na sala, partes de palavras desconexas indicava que o padre estava se despedindo. De novo o degrau defeituoso sinalizou que minha avó subia e eu fechei os olhos a tempo.

    Como em todos os anos, ela abriu a porta apenas para fechar logo em seguida, conferindo, na esperança que eu fosse com ela.

    — Venho logo, Maya.

    No fundo, acho que sabia que meu sono era mais falso que todas as viagens marcadas no mapa atrás da minha cama.

    Esperei dois minutos após a porta da cozinha fechar antes de sair da minha cama. A temperatura do ambiente caiu drasticamente assim que pisei no chão. “É agora ou nunca”, pensei enquanto descia as escadas correndo para verificar se ela tinha mesmo saído. Na televisão, que minha avó esqueceu de desligar, o padre dava início a missa. Voltei às escadas sabendo que ela chegaria atrasada. No fundo, não havia muito problema, afinal seu principal objetivo era o cemitério.

Isso eu não gostava, eu realmente tentei nos primeiros anos após meu pai ter morrido. Fui todas às vezes que ele completava um aniversário de morte, não sei se essa é a palavra correta, mas a questão é que no sexto ano eu não vi motivo mais para isso. Não quando eu sabia o motivo para meu pai ter morrido e comecei a entender o que estava acontecendo. Não era fácil ouvir sobre como a vida era passageira e que a certeza que temos era apenas a morte quando eu sabia que poderia ter sido evitado. Ver o túmulo dele então, era demais. Isso porque, numa certa noite, quando tudo parecia ir bem, minha mãe foi embora.

    Eu tinha sete anos na época, meses antes de meu aniversário, meus pais que nunca brigaram, passaram a brigar com muita frequência. Começou com discussões rotineiras, sobre a professora que não iria me dar aula, por isso ela teria que mudar seus planos, ou como a comida estava sem sal. Havia sempre um motivo, ela sempre encontrava um motivo e parecia que o fato do meu pai ser muito calmo apenas piorava. Lembro de estar com ouvido na porta do meu quarto, o que se tornara costume, quando a briga mais séria começou.

    — Você precisa entender que as coisas não são assim, apenas me diga o que está acontecendo para que eu possa te ajudar! — meu pai dizia e só então percebi o quanto sua voz soava suplicante.

    — Você não pode! Você é um fraco, que não sabe cuidar de uma família. Você não consegue um emprego, você sabe que é um péssimo fotógrafo! Procure um emprego de verdade. Nós iremos passar fome e eu não quero estar aqui quando isso acontecer!

    Eu não me atrevi em abrir a porta para espiar por entre a fresta, mas tinha certeza que eles estavam cada um de um lado da mesa da cozinha, como das outras vezes, como se estivesse se protegendo um do outro. Mas nesse dia tinha uma coisa diferente, minha mãe estava com a mala pronta.

    — Com o seu emprego, estamos conseguindo passar por isso. Você não pode sair assim, nós temos um filho.

    — Como se o problema fosse apenas isso, John! Estaríamos vivendo apenas por uma criança, você sabe que eu não te amo mais.

    — Nós podemos resolver isso. Eu não sei o que aconteceu depois da viagem, mas podemos resolver.

    — Você não me ouve? — Ela tornou a gritar e eu precisei morder o lábio com força, minha mãe não era assim. — Eu não te quero mais, você quer saber o que aconteceu? Quer? Eu encontrei outra pessoa, uma pessoa muito melhor que você.

    Ficou silêncio por um tempo, apesar deu poder ouvir as batidas do meu coração descompassado. Ela devia estar reconsiderando, percebendo o quanto suas palavras foram pesadas e que meu pai realmente estava tentando arrumar um emprego, tinha desistido da ideia de ser fotógrafo. Um barulho denunciou que a porta da cozinha fora aberta.

    — Quanto ao César. — A voz dela era firme, sem nenhum resquício de tremor. — Mandarei um dinheiro para ele todo mês.

    — Você não pode fa…

    — Apenas me deixe ir.

    E ela foi, eu corri para a janela do meu quarto, porque não acreditava que isso estava acontecendo. Cheguei a tempo de ver ela correndo, em direção ao portão, como se sua vida dependesse disso. Não a vi mais.

    Meu pai ficou desolado e por passar grande parte de seu dia procurando emprego, me deixou na casa dos meus avós. Apenas a noite eu o via, sempre com aquela cara de morto vivo, que eu via nos desenhos. Claro que ninguém nunca me falou o que houve, todos fingiam que a minha mãe tinha apenas ido viajar, como a última vez, a vez que fizera ela brigar com meu pai.

    Eu, inocente, quase como um ritual, todos os dias após a escola ficava sentado ao lado da janela do meu quarto, a mesma que vi minha mãe ir embora. Estava crente que ela iria aparecer, ignorando tudo o que eu havia escutado. Dia após dia a minha esperança foi morrendo, escutei um mês após ela ter ido embora, que nenhum dinheiro havia aparecido. Meu pai estava preocupado, mesmo após saber que ela estava com outro. Foi a primeira noite que eu dormi na casa dos meus avós, segundo eles meu pai tinha começado a trabalhar, mas eu sabia, sabia que ele fora procurar ela, a mulher que tinha nos abandonado e que ele ainda amava. 

    É fácil imaginar o que aconteceu, meu pai também não voltou. Mas ele não me abandonou, não, minha avó fez questão de deixar claro, não como minha mãe, ele agora estava em paz. O motivo eu soube logo depois, por minhas tias durante o velório, ele havia sofrido um acidente de moto. “O pobre coitado foi atrás da mulher que o abandonou, olha o que aconteceu”.

    Minha avó cuidou de mim desde então. Deve ter sido difícil passar pelo que passou e continuar sorrindo enquanto a memória do seu filho estava no garotinho que ela precisava cuidar.

    Terminei de subir as escadas um pouco apressado, não sabia quanto tempo ainda tinha antes que ela chegasse e precisava disso. No andar de cima, que meu avô fizera após eu vim morar com eles, tinham quatro quartos. Quando eu era criança havia nomeado eles, o quarto número um era o que eu dormia; o número dois, os que meus amigos costumavam dormir quando vinham, ou minha prima, era o da visita; o número quatro era um abandonado que minha avó deixava sempre trancado e eu não fazia ideia do que tinha lá; o três era o que eu entraria naquele dia.

— Ok, vamos lá.

    Após respirar duas vezes entrei no quarto, logo à frente do meu e o observei com cuidado. Ele não costumava ser aberto com frequência, por isso o cheiro de mofo foi a primeira coisa que senti, antes de observar a fotografia de meu avô em cima da escrivaninha branca na parede a frente. Ele estava sorrindo no meu aniversário, meu pai que havia tirado essa foto e ela estava rasgada na metade porque ao seu lado deveria estar minha mãe.

Me aproximei mais da escrivaninha e abri a primeira gaveta. Nela se encontravam todas as fotos que minha avó guardava de recordação. Em uma delas um bebê pequeno e dois jovens de dezessete anos o segurando, essa era a única foto que nós ainda tínhamos de minha mãe. Os olhos amendoados e cabelo longo ora cacheado, ora ondulado, estavam ali apenas por não dá para recortá-los. Não conseguia sentir algo.

    Logo abaixo, eram as fotos do meu avô jovem, no casamento deles. Infelizmente ele nos deixara, há cerca de quatro anos. Consigo, porém, ao contrário do meu pai, lembrar da morte dele tranquilo, quase em paz. Podia dizer que havia chegado a hora, morreu dormindo. Não sofrera e isso me deixava feliz. Sem ele minha avó não teria conseguido seguir em frente, por isso, sinto gratidão por ele ter ficado até quando todos superaram, sei que não foi fácil.

    — Sinto sua falta — murmurei, passando os dedos por seu rosto. Só percebi que havia falado alto quando Maya apareceu na porta, curiosa.

    Não queria me atentar apenas a isso, era o momento de lembrar deles, não de sua morte, mas de sua vida e ainda havia muitas coisas para olhar. Procurei em volta do quarto e na outra extremidade tinham caixas no chão. Meu avô fizera questão de guardar todas as minhas tarefas escolares e geringonças de quando eu era criança, mesmo que minha avó dissesse que eram bagunça. Porém, o que realmente me chamou atenção, foi a estante ao lado. Lá estavam todos os livros que meu pai costumava ler. Abri ela com cuidado e me deixei sorrir pela primeira vez que entrei no quarto. Umas das coisas que meus avós fizeram para dar um novo ânimo e diminuir a tristeza foi começar a ler histórias de dormir para mim, todas as noites.

    O primeiro livro, cheio de poeira, era dos contos populares. Eu já os conhecia, mas as encenações de meu avô davam um ar totalmente novo para eles. Uma das minhas lembranças mais vívidas, era a voz estridente da mamãe pata, da história do patinho feio.

— "Este patinho feio não pode ser meu!" — ele falava, usando o tom mais alarmante possível.

    O livro empilhado ao lado dele tinha manchas de café, do dia que derrubei a xícara da minha avó sem querer. Era de aventura e contava a história do garoto que desbravava o mar a procura do tesouro escondido. Ele tinha a minha idade na época, então foi muito fácil de levá-lo como inspiração para a minha pequena vida.

— "Há um tesouro, meu nobre garoto, que destrói tudo por onde passa. Ele não pode cair em mãos erradas" — li a primeira frase de uma página aleatória que achei. Havia sido uma boa história.

    O outro livro era uma coletânea de contos e o mais velho. Se não me falhasse a memória, minha avó materna que havia me dado, em uma de suas visitas. Meus avós leram quase todos eles e passando pelas páginas encontrei o que eu menos gostei. Era a história de uma maldição envolvendo magos renascidos e amuletos.

— "O rosto de uma jovem apareceu, Aya e ali começaram as mortes."

Esse foi, sem dúvidas, o que me deu mais medo. O seguinte era sobre uma viagem no tempo com peças específicas, uma aventura de três amigos a procura delas. Por isso meus sonhos eram relativamente diferentes, em um dia eram felizes demais, em outros um tanto preocupante, como quando ela lia sobre as mortes nesses contos.

    Duas lágrimas caíram quando vi ao lado dos livros, o álbum de fotos de meu pai. Nelas estavam sua essência, fosse à borboleta que ele achou durante uma viagem, no ângulo que tirou a foto da flor e em como ele era detalhista com tudo isso. Nelas estavam sua paixão.

    Eram nesses momentos, que eu reservava para lembrar o quanto meu avô e meu pai foram importantes na minha infância. E como minha vida mudou por causa de minha mãe.

    — César! Acordou?

    Me assustei, derrubando o álbum que segurava, o que deve ter sido suficiente para ela saber onde eu estava. 

    — Sim, vou descer.

    Respirei fundo e enxuguei o meu nariz, que fazia questão de escorrer. Passei pelo corredor dos quartos e fui em direção as escadas. Antes mesmo de chegar até o final da escada, Maya apareceu, se espreguiçando e me esperou no final.

    — Oi! Dormiu muito, hein? — disse, com a voz fina que sempre assumo.

    Dei mais alguns passos, passando pela sala onde se encontrava a televisão e cheguei até o portal da cozinha. Minha avó estava de costas, seu cabelo castanho escuro estava preso num coque e ela segurava a xícara de chá com a mão que tinha cicatrizes de queimadura. Evitei olhar para os seus olhos vermelhos quando ela se virou. Apesar da idade, ela era uma mulher de poucas rugas e muito bonita.

    — Dormiu bem, querido? — perguntou, num tom cauteloso.

    Ela deve ter percebido que os meus olhos também estavam vermelhos.

    — Sim. Maya me acordou. — Sei que ela sabia que era mentira, mas não pude evitar.

    — Pedi para ela não fazer isso. — Ela quase sorriu. — Seus amigos virão?

    — Sim, estou esperando eles.

    Dito isso, ela voltou a atenção para a louça suja. A partir dali tentou falar sobre os meus avós maternos, que moravam no seu país de origem, Espanha, mas o assunto foi embora mais rápido do que havia chegado de tão constrangedor que o silêncio ficou. Não que eu não gostasse deles, longe disso, eles não tinham culpa, apenas não era o dia. 

    — É, bem… Então… a senhora escreveu algo essa semana? — perguntei, passando a mão pelo cabelo.

    Após se aposentar do setor de Redação do Jornalismo, minha avó encontrou outra paixão: escrever poemas e contos. Não pretendia publicar, segundo ela “estava velha demais”, mas era encantador como ela usava as palavras. Além de que, servia como escape para um momento de silêncio.

    Quando ela assentiu, percebi a oportunidade de mudar o assunto e corri para a sala de estar ao lado da cozinha, onde o caderninho com seus textos estavam. Ela me esperava com um sorriso leve no rosto e fiquei aliviado do clima ter mudado.

    “Há dores amargas, que azedam a alma, outras cruéis que a perfuram, mas também existe a perfeita mistura das duas. Isso que sinto a...”

    Engasguei e na minha frente ela estava paralisada, como se eu tivesse falado seu maior pecado. Era claro, o texto havia sido escrito para o aniversário de morte do meu pai, só então percebi o título “Querido John”. Comecei a passar as páginas muito rápido a procura de algo que não fosse triste, enquanto ela tirava os pratos da mesa um tanto apressada. Minha garganta estava seca quando voltei a ler outro texto.

    “Sentada aqui, observo o azu...”

    Escutei o portão abrir e soltei o ar. Virei o rosto em tempo de ver duas cabeças aparecerem na porta da cozinha, com os melhores sorrisos, Heitor e Rafael. Meus melhores amigos desde que me mudei para a cidade com meus pais, semanas antes da separação. Rafael, o garoto com o maior sorriso, foi o que juntou nós quatro, com sua capacidade de ter diferentes ânimos para cada pessoa. Foi Rafael quem nos apresentou seu primo que não se parecia em nada com ele, Heitor. Heitor era o mais parecido comigo, exceto pelo seu cabelo preto liso e por ter coisas muito mais interessantes para transmitir, fosse sobre alimentação saudável ou como cuidar dos animais. Se o Rafa era a alma do nosso quarteto, ele era a tranquilidade. O que me fazia lembrar apenas de Yin Yang, uma tatuagem que eu sabia que meu pai tivera.

    — Dona Sara! A cada dia mais linda — Rafa disse, abrindo a porta.

    Com a mão no ar, por apenas um segundo, seu olhar se deteve na falta de sorriso em minha avó e na vermelhidão que provavelmente estava no meu rosto e pareceu lembrar de algo. Nós nunca ficávamos assim, a não ser por aquele dia e ele sabia que dia era. Eu podia ver em sua pele negra, um rubor começar a se espalhar, apesar de singelo. Por um momento achei que ele iria recuar a mão.

    — Quer comida, não é? — minha avó disse, com o melhor sorriso. Seu olhar estava fixo em mim, me observando ir até à sala guardar o caderno. Rafael voltou a sorrir.

    — Não resisto. Só não diga a minha mãe.

    — Que você prefere a minha comida que a dela? — minha avó murmurou, como em segredo, ainda rindo. — Pode deixar.

    — A senhora é um anjo — disse, antes de ir até o fogão e rechear uma tapioca.

    Se fosse antes, Rafa teria recheado duas e ainda teria dado uma mordida na minha, mas há dois anos ele decidiu que precisava emagrecer após ter passado mal na escola. Após ter o peso que desejava e os exames em dia, não queria mais parar com a dieta. Havia criado gosto pelos exercícios e evitava ao máximo comidas que fizessem mal e tivessem muito açúcar. Heitor estava o ajudando, já que a dele era, de longe, a melhor alimentação do grupo.

    — Agora que resolveu sua pendência — Heitor disse, olhando Rafael comer. — Vamos?

    — Sim e a Lua?

    — Ela nos encontra lá na frente.

    Dei um tchau breve a minha avó e corri subindo as escadas para pegar a minha bicicleta preta, minha companheira de anos. Voltei para a cozinha com uma mão no guidão e a outra com a tapioca enquanto eles também pegavam suas bicicletas e seguíamos para o portão.

    — Você fez o trabalho do Carlos para entregar amanhã? — Rafa me perguntou, se referindo a um trabalho que eu não fazia ideia.

    — Carlos passou trabalho?

    — Em dupla, era a sua vez de fazer — disse, fazendo uma careta.

    Eu e Rafael, por estudarmos na mesma sala, fazíamos quase tudo juntos. Também éramos uma dupla em trabalhos independentes envolvendo computadores e celulares, área que queríamos cursar numa futura faculdade. Por isso a cada semana, um era responsável pelas atividades escolares e o outro pelos trabalhos que conseguíamos. Segundo o meu querido amigo, era a minha vez.

    — Poxa! Eu estava estudando para a prova.

    — Que prova?

    — Dele, pra amanhã também — disse, vendo o rosto do Rafa empalidecer.

    — Não queria dizer nada, mas vocês estão ferrados. — Heitor deu de ombros, nos fazendo olhar para ele. — E eu vou estar ocupado.

    — Só um pouquinho — Rafa gemeu. — Deve ter uma hora livre.

    — Você sabe que não vou mudar os planos.

    Heitor estaria ocupado, já que tinha uma rotina específica e gostava de segui-la. O que significava que ele não poderia nos dar aquela mãozinha extra que em vez em quando dava, porque apesar de estudar em outra sala, tinha os mesmos prazos que nós e um planejamento muito melhor. 

    — Adeus jogo de hoje — Rafa murmurou, lembrando das nossas partidas antes de dormir.

    Ele continuou a conversar com Heitor enquanto andávamos, procurando maneiras de convencê-lo a liberar nem que fosse uma hora para estudar com ele, mas eu não os olhava. Estava com a garganta seca e as mãos suando, porque no final da rua, vinha pedalando até nós a última integrante do nosso quarteto, Luana. Tinha olhos azuis que eram capazes de fazer qualquer tempestade passar, além de pequenas sardas nas bochechas e no nariz.

    — César? Hey! — Heitor me cutucou e dei um pulo. — O que você acha?

    — Sobre o quê?

    Eles seguiram meu olhar atordoado, avistaram Luana e se encararam, com a testa enrugada. Mas o quê?

    — Meninos!

    Ela desceu da bicicleta e andou os últimos metros que faltavam, enquanto prendia o longo cabelo preto com sua presilha arco-íris. Quando ela me abraçou, logo depois dos outros dois, meus lábios se esticaram e acho que paralisaram ali, com um sorriso de orelha a orelha. Meus dois amigos ainda olhavam para mim enquanto eu inutilmente tentava ficar sério, mas, na verdade, nem eu sabia o que estava acontecendo comigo.

    — Rafa contou alguma piada, foi? — Ela cutucou o meu braço e se virou para ele. — Qual foi?

    — O que?

    — Não me diga que foi aquela do papagaio. — Ela fez uma careta, sorrindo.

    — Por quê?

    — Sua cara. Não foi uma piada?

    Eu ainda a olhava com uma cara boba e na mesma hora desfiz o sorriso exagerado.

    — Não foi nada.

    — Dona Suzana te mandou isso — ela disse e tirou a atenção de mim, entregando uma sacola para Heitor. — Falou que era importante.

    Heitor olhou pela brecha da sacola, apenas para confirmar o que tinha dentro e esticou a mão para Rafael.

    — Só não perca.

    Era o livro que ele havia pedido emprestado, como muitos outros. Heitor incentivou o hábito de leitura em Rafael e como ele não tinha nenhum livro, nós dois nos alternávamos para emprestar os nossos. Eu mesmo ainda tinha uns quatro livros na casa dele, Heitor então, deveria ter o dobro. Segundo Rafa, “ler vários livros simultaneamente eram muito melhor que ler um de cada vez”, mas nós sabíamos que ele fazia isso porque estava tentando “salvar” seu vizinho problemático, Ben, por meio da leitura. Apesar de não acharmos que adiantaria, fazíamos questão de ajudá-lo com isso.

    — Claro que não vou perder — respondeu meio ofendido. — Quando fiz isso?

    Só bastou um olhar para Rafael lembrar que havia feito sim isso e muito pior quando o livro chegou com marcas de sangue e soubemos que eram de Ben.

Após dez minutos, aproveitando o sol pedalando em velocidade lenta, chegamos ao local que costumamos ir após as aulas ou quando estávamos de bobeira, a lanchonete do Tadeu. Tadeu foi nosso professor estagiário de geografia no primeiro ano do ensino médio, mas ele apenas finalizara a faculdade porque após ensinar uma turma um tanto complicada como era a nossa, desistiu da ideia de ser professor, criando a lanchonete no mesmo ano.

    Na fachada as cores predominantes eram rosa, marrom e creme, ideia de Luana para que remetesse ao sorvete. A logomarca havia criada por ela também, que começava a ter certeza que escolheria algo relacionado a arte para faculdade. Adentramos a porta de vidro e a primeira coisa que fizemos foi ir para o quartinho ao lado da entrada, onde Tadeu deixava que guardássemos as nossas bicicletas, após a de Luana ter sido roubada mesmo com a corrente.

    Por dentro a lanchonete tinha as mesmas cores. Creme para a parede inteira e faixas com marrom e rosa; isso é claro, se tirasse duas manchas dos meus dedos em marrom, bem atrás do quadro com uma cesta cheia de frutas, posto lá para escondê-la. Eu não tinha coordenação o suficiente para pegar em um pincel sem me sujar todo e tudo a minha volta e como as tintas que Tadeu comprou foram a conta, tive que roubar um dos quadros da minha avó para tapar o buraco. No fundo, se ignorasse a temática errada, ficou bonito.

    As mesas redondas eram úteis para o meu parceiro da dupla “sem coordenação” não aparecer com roxos frequentes e o balcão com todo tipo de lanche o ajudava a manter as contas em dia e a poupar tempo, já que o que ele mais gostava de fazer era enfeitar sorvetes. No fundo, em frente a fritadeira, com os cabelos castanhos ondulados e um sorriso de moleque, estava Tadeu. Ele era uns seis anos mais velho que nós e mesmo assim conseguia a proeza de parecer ter a nossa idade.

O cheiro de fritura tomou conta do local enquanto seguimos mais para o fundo da lanchonete, passando pelas mesas ocupadas, indo em direção a que sempre nos sentávamos. Havia sido escolhida com muito cuidado para que fosse a mais perto da janela, a pedido de Luana e a mais perto dos sorvetes e longe das coxinhas, por insistência de Rafael. Isso tornava a sua dieta mais fácil.

    — Rapazes!

    Tadeu contornou o balcão rápido e estendeu o braço, para um por um tocar sua mão, depois se virou para a minha amiga.

    — Senhorita. — Fez um gesto típico com a mão de cavalheiro. — Irão querer o cardápio ou…

    — O mesmo de sempre — completei com um sorriso.

    Ele deu um sorriso que escondia seus olhos. Havia se tornado comum Tadeu nos oferecer o cardápio apenas por força de hábito, porque literalmente nós sempre pedíamos a mesma coisa, com exceção de quando nós usamos seu espaço apenas para conversar.

    — Ô, garoto! Venha aqui — a senhora da mesa ao lado gritou, apesar de não ser necessário e o nosso amigo escondeu a careta com o sorriso antes de ir atender.

    — Conseguiu terminar o trabalho? — Heitor perguntou a Luana, cada um sentado a minha frente.

    — Consegui com dificuldade, matemática não é meu forte. — Deu de ombros, ela era muito de humanas.

    — Qual trabalho? — perguntei porque como os dois estudavam juntos, não dava para saber.

    — Do Carlos. Minha parte estava muito difícil. — Ela suspirou, com uma careta.

    — Igual a minha.

    — Muito difícil. — Repetiu como se fosse óbvio e eu vi ali um bom momento para tentar algo.

    Uma manhã em casa, estudando enquanto tentava lhe explicar todos os assuntos que eu faria questão de revisar na noite anterior. Ela perto de mim. Precisava saber o que estava acontecendo comigo porque isso estava me confundindo, queria ser capaz de voltar a conversar com ela sem parecer que me engasguei e que a qualquer momento cairia duro no chão de nervosismo. Não sei o que aconteceu comigo, eu não era assim e não aceitaria continuar desse jeito. Claro que eu não estava gostando da minha amiga. Claro que não, queria nem imaginar a bagunça que isso causaria. Era só uma fase.

    — Posso te dar algumas aulas de reforço se quiser — Heitor sugeriu, interrompendo meus pensamentos.

    Essa era a minha fala.

    — Eu te ajudo Lua… com as aulas.

    Rafa e Heitor trocaram olhares, pareciam estar esperando por isso. Nem ao menos eu estava entendendo o que tinha comigo e eles já estavam desconfiando de algo.

    — Ainda estou livre de manhã. Heitor trabalha.

    A minha infeliz falta de emprego, talvez me ajudasse. O olhar deles estava fazendo minha garganta secar.

    — Está tudo bem, meninos. — Ela sorriu e eu também, involuntariamente. — Vou assistir várias videoaulas até o vestibular.

    — Posso te mandar algumas, tenho uma pasta com várias.

    — Sério? — ela exclamou animada.

    Não, nenhum pouco.

    — Sim, baixei semana passada.

    Não, não baixei não.

    — Essa semana passo na sua casa com o pendrive.

    Isso! Tinha que baixar várias videoaulas numa internet péssima, mas quem ligava? Consegui soar bastante casual. Me virei e além de ver Tadeu chegando com os nossos pedidos, vi dois pares de olhos bem indagadores.

    — Você tá mentindo — Rafael sussurrou, ao mesmo tempo que Tadeu exclamava animado que os pedidos chegaram.

    Talvez não tão casual assim.

    — Cachorro-quente e batata frita para César, coxinha para Luana, sorvete para Rafael e batata frita para Heitor. Está certo?

    — Sim, cara. Valeu — Rafael respondeu, pegando seus dois sorvetes.

    — Precisando é só chamar.

    Sorvete era a única coisa que o Rafa não conseguia tirar de sua rotina e Heitor só pedia batata frita porque era o que ele considerava mais saudável, dentre todas as opções industrializadas.

    — Como está indo a procura de emprego? — Heitor me perguntou, assim que Tadeu saiu para atender os outros.

    — Bem mais ou menos, por enquanto sem notícias. — Dei de ombros sem grandes esperanças. Ao menos os trabalhos por minha conta ajudavam.

    Ao meu lado, Rafael se engasgou, bateu de leve na mesa e exclamou feliz, as tossidas.

    — Esqueci de contar, consegui um emprego!

    — Sério?

    Nós quatro gritamos em uníssono, assustando a senhora que antes gritara com Tadeu. Rafael era o segundo a conseguir emprego e nós não podíamos deixar isso passar em branco.

    — Tadeu! Refrigerante, Rafa conseguiu um emprego!

    Havíamos feito isso quando Heitor conseguiu o dele, como ajudante na pequena biblioteca da cidade, há seis meses, por isso Tadeu entendeu de primeira o recado, jogando a mão para o ar e exclamando um “Yes”. Sim, nosso brinde seria com refrigerante.

    — Ah, qual é, Heitor! Só hoje — Rafael resmungou, passando o copo para ele que recebia com o nariz enrugado. — Até eu vou tomar.

    — Faz mal, Rafa. Principalmente para você. — Segundo Heitor, esse era sem dúvidas alguma, a pior coisa que poderíamos ingerir.

    — É apenas um copo.

    Parecia até que estávamos tomando a bebida mais proibida do mundo.

    — Só hoje — Tadeu pediu sorrindo, puxando a cadeira ao lado para sentar e brindar também. — Ao Rafa!

    — O cara que vai pagar a conta hoje!

    Levantamos o copo para cima e batemos. “Esses jovens”, a velhinha murmurou e gritou de novo por Tadeu, sem necessidade, talvez ela fosse um pouco surda igual meu vizinho. Ele tomou o conteúdo do copo em um segundo e correu para atendê-la.

    — Traga mais um sorvete!

    Tomei o refrigerante vendo Heitor, com cara de ânsia, tomar o seu meio copo com dificuldade, gole por gole, como se fosse um martírio. Eu estava admirado. A cena era um milagre, porque eu não lembrava da última vez que vi Heitor fazer isso, nem quando tivemos essa mesma comemoração ele tomara. Ao meu lado Luana se remexeu, procurando algo no bolso.

    — Lua? — murmurei.

    — Tenho que ir.

    A cabeça do Rafa girou rápido quando a ouviu falar.

    — Já vai?

    — Sim, me desculpe, Rafa. Preciso ajudar a minha tia. Meu tio Marcelo chega hoje a tarde, ela pediu para eu ficar com os cachorros enquanto ela busca ele no aeroporto.

    Admito que havia esquecido disso. Marcelo, tio de Luana e seu vizinho, estava viajando há quinze dias na Inglaterra, realizando um sonho de adolescente.

    — Tudo bem. Até a tarde.

    Luana o abraçou, entregando o dinheiro para pagar a sua parte, que foi rejeitado firmemente por Rafael. Levantou e bagunçou o cabelo de cada um, ato que eu odiava já que meu cabelo era bagunçado por natureza, porém não disse nada porque minha garganta secou e tinha certeza que eu gaguejaria se tentasse.

    — Tchau, Tadeu!

    — Tchau, senhorita Luana.

    A segui com o olhar, enquanto ela abria a porta e pegava sua bicicleta no quartinho ao lado. Não me virei, até a única coisa a minha frente ser a rua vazia.

    — Desembucha.

    Levei um susto, os meus dois amigos haviam parado de comer e me observavam.

    — Desembuchar o que?

    — Tu tá estranho, esquisito — Heitor explicou e arregalei os olhos.

    — Não sei do que você tá falando.

    — Então você é naturalmente gago, vermelho como pimenta e tem algo entalado na garganta? — Rafael fez cara de espanto. Mas que filho da mãe.

    — Ou só quando está perto da Luana? — Outro filho da mãe.

    Engoli em seco e os olhos dos meus amigos brilharam em concordância. Ok, eu estava engolindo em seco com frequência esses últimos tempos. Eu não podia falar para eles, isso seria confirmar que algo estava acontecendo e mais ainda, seria o risco de deixar o clima um tanto constrangedor. Abri a boca duas vezes, pensando em qual desculpa contar e a abertura de um anime tocou. Era o celular de Rafael. Salvo pelo gongo.

    Ele o pegou, lançando um olhar quase que mortal e atendeu.

— Fala, Ben.

    Era o vizinho dele, o que me dava um certo tempo para sair dali, porque as conversas quase sempre eram bem rendidas. Murmurei um tchau para Heitor, que fez uma cara de “você vai fugir?” e dei de ombros. Eu iria.

    Não dei tempo para os meus amigos reclamarem que eu não respondi às suas perguntas e sai rápido, tendo certeza que ainda teria um interrogatório para lidar depois.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem :)



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