Yōso - Contrato de Aluguel escrita por Cristina Barbosa


Capítulo 3
Capítulo 3 - Um bom gancho de esquerda




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    — Foi ele a pessoa que desapareceu? — murmurei. Devia ter algum engano.

    Rafael gemeu e eu não precisei olhar para saber que ele estava passando as mãos pelo cabelo, exasperado. Heitor permanecia com as mãos no bolso e o olhar vago.

    — Era para ele ter chegado da Inglaterra ontem, minha tia foi buscá-lo no aeroporto, falou com ele antes — ela começou, segurando as folhas com força. — Mas chegando lá, ele não estava. Sumiu.

    Luana levantou as folhas e ver o esforço que ela fazia para não demonstrar tristeza, mesmo que seus olhos estivessem inchados de tanto chorar, formou um nó enjoado na minha garganta.

    Na folha tinha a foto de um homem negro de cabelo rastafári. Marcelo. A palavra DESAPARECIDO apenas intensificou o nó.

    — A polícia foi informada, mas ainda não têm pista. Então se o virem ou tiverem alguma notí…

    — Fica tranquila — Heitor a interrompeu, ainda com o sorriso tenso para que soasse despreocupado.

    Entendemos o recado de primeira. Despreocupados.

    — Te ajudaremos com isso.

    Me adiantei e peguei algumas das fotos da mão dela e Rafa rapidamente fez o mesmo. Nós três nos olhamos enquanto voltávamos a andar. Iriamos aliviar o lado da nossa amiga, deixá-lo leve. Sabíamos que ela precisaria ajudar a tia, que devia estar péssima e esse era mais um motivo para soar tranquilo.

    — A polícia é boa, você sabe, em cada canto tem policial espalhado. Eles o acham nem que seja no infe…

    Rafael parou. Digamos que não foi a melhor escolha de palavras, mas vindo de Rafael, que sorria ridiculamente, poderia ter sido pior.

    — Claro. E nós faremos o possível. Procurando na... — Heitor disse, olhando de esgueira para Rafael — … parte sem policiais. 

    Luana quase riu e subiu na bicicleta, respirando três vezes profundamente.

    Nós seguimos o nosso percurso de bicicleta, ele começava na minha casa e ia até uma estrada de barro onde voltávamos, por volta das oito. Nós intercalávamos períodos intensos com períodos mais calmos, afim de aproveitar o sol e conversar. Apesar de não sermos muito faladores, com exceção de Rafael, quando estávamos juntos se tornava difícil parar de conversar, mas naquele dia era diferente. No começo até que tentei, comentando sobre as videoaulas que baixavam no computador.

    — Traz o pendrive hoje, para eu colocar as videoaulas de matemática.

    — Hum? Claro, o pendrive, trago — Luana respondeu com a voz rouca.

    Ela voltou a sua atenção a estrada a frente muito rápido.

    — Você vai gostar do professor, parece muito com aquele de Biologia.

    — Bom. — Ainda a voz rouca.

    Tempo ao tempo. Transparecer tranquilidade estava exigindo um esforço sobre-humano dela, por isso me calei. Os meninos, ao meu lado, pareceram ter entendido primeiro que eu aquilo, porque não tentaram.

    Marcelo e Alice, esposa dele, eram quase como segundos pais para a Luana. Eram vizinhos, por isso ela e seu irmão buscavam refúgio lá nas noites que seus pais brigavam. Os meus pais se separaram quase na mesma época que os dela, mas ao contrário dos meus, eles nunca se deram bem. Os seus tios foram ainda mais importantes nessa época.

    Marcelo cuidava dos dois sobrinhos durante o período da manhã, enquanto seu cunhado acertava a papelada do divórcio e trabalhava. Alice cuidava deles no período da tarde. Deu trabalho para que a guarda ficasse com o pai e por grande insistência e luta, para a felicidade total de uma nação, quer dizer, ao menos a nossa, os dois continuaram morando com o pai, e a mãe foi para outra cidade. Desde então, os laços da minha amiga com os tios se estreitaram e não conseguia imaginar pelo que ela estava passando.

    Passamos pela estrada ao lado da ladeira cheia de pedras. Cai duas vezes quando descia ali. A primeira por uma aposta idiota com o Rafael. Eu acabei ganhando, mas em compensação precisei aguentar os ferimentos, pela batida nas árvores ao final do barranco e a raiva da minha avó, então não era bem como se eu tivesse ganhado algo, exceto uma semana de sorvete pagos por ele. A segunda quando fui rápido demais, foi nesse dia que achei Maya filhotinha ao lado da árvore que bati.

    De relance olhei com cuidado para a minha amiga, ela parecia tranquila.

    Quando chegamos na casa de muro amarelo de uma velhinha bem legal, onde nos despedíamos, estávamos exaustos. Minha camisa estava grudada e minha testa tinha uma mecha do meu cabelo, que eu já devia ter cortado, grudada também. Enquanto tentava recuperar o fôlego, vi Luana respirar mais três vezes, sem nenhuma ligação com nosso exercício.

    — Hoje a tarde nos vemos — Rafael começou, coçando a cabeça.

    — Sim, até a tarde, meninos — Luana fez uma careta, devia ser um sorriso.

    — Fica bem, certo? — disse e vi seu falso sorriso vacilar. — Vamos fazer o possível.

    — Eu estou. — Subiu na bicicleta. — Meu tio é forte.

    Sem dar muito tempo para mais respostas, ela saiu.

    De lá até onde eu e Rafael também nos despedíamos era cerca de dez minutos que eu preferencialmente gostava de ir andando, já que estava colocando meu coração para fora a cada respiração, mas dificilmente levávamos esse tempo e devem imaginar o porque: não íamos andando.

    Rafael, em seu desejo absoluto de não perder momentos de atividades me arrastava em mais uma rodada de bicicleta e chegávamos em dois minutos no local.

    — Vou entregar algumas fotos no meu trabalho — ele começou, com uma pontadinha de orgulho ao falar do trabalho, que esforçou em apagar. — Começo hoje.

    — Sim, vou andar um pouco entregando também. — Estou sem respirar.

    — Ela vai aguentar — disse, como se estivesse respondendo uma pergunta minha, mas que, na verdade, estava reafirmando para si mesmo. Rafael não sabia lidar bem com pessoas tristes que não eram curadas apenas com risadas.

    — Vamos ajudá-la.

    Ele voltou a pedalar, ainda muito rápido. E eu, bem, preferi ir observando a paisagem, com a minha bicicleta preta ao lado, sem nenhum fôlego para continuar.

    Ao abrir o portão de casa, avistei minha avó sentada na cadeira em frente a cozinha. Maya estava em seu colo, sendo acariciada num movimento automático, porque a outra mão da minha avó estava num terço e ela olhava fixamente para o chão.

    — Vó? — eu disse, fechando o portão.

    — Ah, César, querido. Estava te esperando. Como está a Luana?

    Enquanto minha avó se aproximava, colocando a contra gosto a gata na cadeira, tive a certeza que ela estava sentada esperando há tempo. Precisei explicar, mesmo sem acreditar, que ela estava “bacana”.

    — Estou indo lá para saber no que posso ajudar. Você pode ficar com a Maya?

    Mesmo minha avó sabendo que gatos eram autossuficientes e que não sentiam tanto nossa falta, ela evitava ao máximo deixá-la sozinha, principalmente depois da preocupação que passamos quando ela fugiu há uns meses.

    — Claro.

 

    O objetivo era: distribuir as fotos de Marcelo no máximo de ruas que eu conseguisse antes que minha avó chegasse em casa e visse que deixei Maya sozinha. Eu até que estava indo bem, já havia estado em grande parte das ruas vizinhas, ficando parado em pontos estratégicos e entregando a quem passasse. Eu estava na pele de um entregador de panfletos e isso me fez perceber o quanto era difícil ver pessoas ignorando minha mão estendida e virando o rosto ao passar. Prometi a mim mesmo que pegaria mais panfletos na rua. No meio da manhã, mudei a estratégia e corri para um mercado.

    Em meio a tantas coisas achei uma fita e voltei para a rua. O sol estava ficando cada vez mais quente e eu, como sempre, havia esquecido meu casaco. Comecei a grudar em todos os cantos possíveis as fotos e torcer para que realmente fossem possíveis. Ao contrário dos panfletos, eu não sabia do retorno, se as pessoas ignorariam as fotos coladas ou jogariam no lixeiro mais próximo, como os que ainda aceitavam pegar. O que sabia é que eu estava igualzinho a um camarão e precisava sair do sol.

Eram quase doze horas quando avistei a lanchonete do Tadeu. Não sabia se Luana havia o contado e como sua lanchonete era bem popular, seria um bom ponto para mais um panfleto. Dei uma corrida até lá, porque não aguentava mais o sol.

    — Foi a praia? — Tadeu perguntou, assim que pisei na lanchonete, voltando a mexer na mesa. — Você nem me convidou.

    — Porque não fui — disse e percebi que ele teimava em ajeitar a cadeira já certa. — Ela está bonita assim.

    — Você acha?

    — Claro que sim — exclamei e então olhei para os lados, o quadro que cobria a mancha dos meus dedos não estava mais lá, nem a mancha. O local estava limpo demais. — O que aconteceu?

    — Ah! Esqueci de falar para vocês. Vendi a lanchonete.

    — O que?

    Meus olhos se arregalaram e eu quase deixei cair os panfletos. Tadeu foi buscar algo no quartinho que nós guardávamos as bicicletas, não percebendo que eu estava ali paralisado, tentando assimilar. Só podia ser brincadeira, ele não venderia o local assim do nada, mas o quadro que ele segurava nas mãos quando voltou, o quadro que eu roubara de minha avó, dizia justamente o contrário.

    — Seu quadro, obrigado por ele. — Sua mão ficou inutilmente estendida em minha direção. A ignorei.

    — Porque? Você não gosta mais da lanchonete? Vai trabalhar do quê? Porque não disse que estava à venda?

    — Calma, Zar. É bom conhecer outros lugares. Não estava à venda mesmo, mas um rapaz ficou interessado e de verdade, ele parecia bem empolgado. Não resisti.

    — Não resistiu? — Eu ainda tinha os olhos arregalados, Tadeu havia batalhado muito por aquele lugar para simplesmente, não resistir.

    — Eu sei, eu sei, é loucura. Mas vai me fazer bem conhecer novos lugares — disse, com um sorriso sonhador.

    — Você vai viajar? — Tentei evitar, mas não consegui tirar o desgosto na minha voz.

    — Vou, fica tranquilo, vocês vão gostar do novo dono. Ah! Falando nele.

    Me virei rápido e lá estava, de pé olhando para o local, um garoto. Eu o daria pouco mais que a minha idade. Tinha o cabelo um pouco acima do ombro, ondulado e duas mechas estavam caindo em frente aos olhos cor de âmbar. Sua pele era cor de oliva e seu sorriso de orelha a orelha.

    — Esse lugar é muito bonito — disse e me olhou. — Prazer, sou o Henry, novo dono.

    Trinquei os dentes, não era para eu ficar chateado, mas foi mais forte que eu. Ele estendeu a mão, tinha uma cicatriz de queimadura que começava no punho até o final do antebraço e um bracelete dourado. Apertei sua mão com toda força que eu tinha, mas ele ainda sorria.

    — César.

    — Muito bom. — Tadeu sorriu, nos vendo. — Faltam apenas alguns ajustes.

    — Tadeu, pode me fazer um favor? — Me afastei, puxando seu braço e diminui o tom de voz, porque o garoto parecia ouvir. — Quando você vai embora?

    — Daqui a pouco.

    — E ia sem se despedir? Sem avisar?

    — Mandaria uma mensagem avisando. Você sabe, não curto despedidas.

    — Tem certeza que aquele cara é gente boa? — tornei a perguntar, porque seu sorriso estava me irritando. Nem Rafael permanecia com um sorriso tanto tempo assim.

    — Tenho, Zar. Ele chegou de viagem essa semana, está afim de conhecer novas pessoas, novos lugares. Está vendo como somos parecidos? — disse, segurando meu ombro.

    — Tinha que ser justo aqui? — Ainda não acreditava, era o nosso canto e Tadeu era o principal nisso tudo.

    — Ele vai cuidar bem de tudo. Ajude ele, certo? Com tudo o que precisar. — Ele viu que eu não tinha concordado por isso continuou. — Isso me fará bem. Mando mensagem para todos, assim que sair do avião. Se quiser mando mensagem todo dia.

    — Quero. — Ele gargalhou, me dando um abraço rápido e indo falar com Henry.

    Plantado em frente a lanchonete, com o quadro na minha mão, eu estava sem reação. Tadeu não venderia esse lugar tão rápido, não, muito menos estaria assim tão radiante, mesmo se quisesse de verdade. Foi dois anos de perrengue por causa das dívidas e muito trabalho duro para conquistar cliente, ele não iria simplesmente jogar tudo para cima. Henry estava querendo conhecer gente nova, mas havia mexido com o lugar errado.

    — Esse tal de Henry não o obrigou a vender a lanchonete, Zar — Heitor disse, tentando soar paciente.

    Estávamos nós três sentados em frente a escola com panfletos. Luana teve que faltar, estava ajudando a tia com tudo e eu e os meninos ficamos responsáveis por chegar muito mais cedo do que de costume para interceptar todo aluno antes de entrar. Eu havia contado sobre a mudança de Tadeu e quem seria o novo dono. Rafael batia o chaveiro na mochila, parecendo decepcionado, mas não havia dito nada até ali. Heitor, apesar de estar assim também, não era tão extremo.

    — Vai lá saber, talvez tenha apontado uma arma para a cabeça dele ou algo do tipo — exclamei e Rafael quase riu.

    — Ou Tadeu apenas queria sair daqui e não percebemos isso — Heitor murmurou, o suficiente para me fazer calar. Tadeu estava sempre tão sorridente que nunca cogitei a ideia dele não estar feliz. Eu apenas achava.

    — Vamos esperar as notícias dele. E ficar feliz se ele estiver gostando — disse, batendo no meu ombro e levantando porque o primeiro aluno chegava.

    Eu queria dizer que na escola tive um desempenho melhor na entrega das fotos, mas chegou a ser pior. Não conseguimos parar todos os alunos, porque o sinal já havia tocado e precisamos ser arrastados por Heitor, que achava uma ofensa nos atrasar alguns minutos, nem que fosse por uma causa nobre. Foi a mesma coisa quando o último sinal tocou, saímos em disparada e ficamos no portão, parando as pessoas que chegaram atrasadas e respondendo às perguntas de quem teve tempo de assimilar sobre o desaparecimento e queria mais detalhes. Até que precisamos ser arrastados de novo por Heitor, dessa vez porque o ônibus havia chegado e iria sem a gente.

    — Me agradeçam depois.

    Rafael riu e subiu no ônibus, seguido por mim. Como sempre, esse era o horário de maior movimento e a única coisa que vi foi novamente o amontoado de pessoas em pé, antes de Rafael começar a ser espremido para entrar no meio daquilo tudo. Suspirei e adentrei, necessitava de um espaço um pouco mais ventilado. Segui Rafa, que passava por braços levantados e entre barrigas. Quando ele desapareceu e suspirou percebi que talvez fosse um bom lugar e me esgueirei para lá, colocando minha cabeça para dentro.

    No local onde ele estava havia um círculo bem feito que caberia tranquilamente umas cinco pessoas, mas todas estavam preferindo se espremer ainda mais logo a frente. Entendi de primeira o porquê disso, quase que no meio do círculo, despreocupado, estava Ben.

    — Foi para a escola hoje? Não te vi lá — Rafa perguntou estranhando o uniforme da usual camiseta.

    Me virei antes de ouvir a resposta. Meu amigo era o único que sabia lidar bem com Ben e não era por ser amigo dele que eu não corria algum risco. Andei apenas alguns passos quando, entre duas pessoas e um banco, consegui ficar escorado.

    Os dois continuaram conversando, mas eu não ouvia direito. Me atentei em olhar para frente, em direção a estrada, que eu via muito pouco, para não enjoar. A mecha rosa da pessoa sentada à minha frente chamou a minha atenção, estiquei a cabeça e vi um pouco mais do cabelo cacheado em rabo de cavalo. Era ela. 

    Me apressei a pedir licença às pessoas ao meu lado, torcendo para que ela não estivesse chorando. Ao passar por debaixo de um braço, uma cotovelada na minha cara me faz gemer.

    — Me desculpe, foi sem querer.

    A movimentação do cara e a minha para sairmos um da frente do outro a fez virar o rosto, o que vi foi suficiente para eu parar todos os meus movimentos e me fixar nela. Ela estava sorrindo.

    Sorrindo!

    Procurei por vestígio de olhos vermelhos ou inchados, mas encontrei apenas um olhar radiante. 

    — Oi, que bom te ver!

    — Sim — disse. — Como você está?

    — Bem, naquela hora acabei não perguntando, qual o seu nome?

    Enquanto falava, fui me aproximando mais dela.

    — Beatriz! E o seu? — ela respondeu, enquanto eu tentava tirar minha mochila presa entre duas pessoas.

     — César. Prazer, Beatriz.

    Quando finalmente consegui a alcançar, estendi a mão e apertamos.

    — Vem da escola? — ela perguntou, observando meu uniforme.

    — Sim, sim, e você?

    — Não, não fiz a minha transferência ainda.

    — Qual série você vai frequentar? — perguntei, curioso.

    — 3.º ano, espero que eu consiga acompanhar.

    — É a minha série, quem sabe você estuda comigo. — Sorri.

    — Quem sabe. É bom novos ares, novas pessoas. Faz bem, sabe? — Sua voz estava meio perdida.

    — Claro. Depois tenho que te apresentar meus amigos, você vai gostar deles.

    O ônibus parou para algumas pessoas descerem e eu me espremi ao lado para que elas passassem. Consegui ver, de um lado Heitor, segurando na barra perto da porta, prestando atenção no que ouvia do fone, do outro, há apenas alguns passos Rafael e Ben. Eles não estavam mais conversando e ao perceber meu olhar, acenou.

    — Seu amigo? — ela me perguntou, enquanto eu tentava entender o que Rafael dizia pelo olhar.

    — Sim, ele é bem legal.

    As pessoas ao meu lado começaram a se movimentar, indo para os lados enquanto Ben andava para a frente do ônibus, Rafael o seguindo um pouco atrás. Ele estava mal-humorado, por isso fui para o lado.

    — Não tem nenhum lugar pra sentar ainda nessa droga de ônibus.

    — Qual é, daqui a pouco já vamos descer.

    — Ah! Pelo amor, neguin. Deixa de ser otário, você aceita qualquer coisa, eu não.

    Recebi um cutucão no braço, Ben estava parado ao meu lado.

    — Esse é o seu amigo? — Beatriz murmurou quando a olhei.

    — Qu…

    — Oh! Essa gorda aí, sua irmã vai ficar desse tamanho.

    — Ben!

    — Não dá nem pra sentar do lado dela, porque a pessoa vai ficar espremido. E a gente aqui em pé.

    Eu levantei o olhar para ver com quem Ben estava falando. A princípio não havia entendido, mas foi ver ele apontando o dedo descaradamente para o meu lado e ver o olhar de Beatriz ganhando um tom duro que constatei: dessa vez não havia ninguém ao lado dela.

    Em um instante a garota estava digerindo tudo o que havia ouvido e no outro ela levantara. Num gesto rápido como se eu fosse apenas uma pena, ela me empurrou para o lado e voou em cima do Ben. Meus olhos se arregalaram vendo a cena. Ela deu um tapa nele, que o fizera rodar e acertar o tronco em Rafael, que estava com os olhos brilhando e não mexeu um dedo. Logo depois Beatriz voltou a pegá-lo pelo cangote e deu outro soco.

    — Você nunca mais vai chamar alguém pejorativamente de gordo!

    Ela era faixa alguma coisa em alguma luta? Porque não era possível que uma força assim tivesse aparecido do nada. Ben estava completamente sem reação.

    — Eu sou gorda sim, e daí?

    Os passageiros que ainda restavam estavam se afastando. Sabiam quem Ben era e Rafael não estava disposto a intervir, pelo contrário, parecia estar amando aquilo. Por isso eu estendi meu braço, tocando seu ombro.

    — Ei! Beatriz, já está bom.

    Ouvi ela prender a respiração e virar para mim, como um leão olha para sua presa. Sua testa suava e seu corpo estava quente. Seus olhos eram, o que podia-se dizer, vermelho vivo. 

    — Esse é o seu amigo?

    Ela também me agarrou pelo colarinho da camisa, me levantando com uma força exagerada. Ela não estava brava, ela estava muito brava.

    — Não, claro que não. É apenas um conhecido.

    Tentei sorrir, apesar de minha garganta começar a falhar. Pelo canto do olho, vi a cara de espanto do Heitor e ele, com mais umas três pessoas, falar com o motorista, que permanecia com os fones de ouvido. Se fosse para resolver isso, teria que ser agora.

    — Ben é um idiota. — Tentei respirar. — Se você puder me colocar no chão.

    Seu olhar foi acalmando e ela respirando, em um segundo fui colocado no chão, de novo como uma pena. Puxei o ar duas vezes enquanto ela sentava e o motorista parava o ônibus. Ao mesmo tempo, alguém subia.

    — Que balbúrdia é essa? — o senhorzinho perguntou.

    — Não aconteceu nada, está tudo bem — menti na cara dura, porque a garota ao meu lado começava a chorar.

    Mas as pessoas não iriam deixar passar, claro que não.

    — Ele está mentindo, essa daí começou a me bater do nada, eu tava quieto — Ben exclamou, sentado no chão do ônibus, com a mão no maxilar que saia sangue.

    — Esses dois começaram a brigar! — Uma mulher apontou para a garota chorosa e para Ben.

    — Mas ora! Eu vou chamar a polícia.

    — Esses dois não! Ela — Ben interveio tentando se levantar, muito irritado.

    — Senhor. — Uma voz grave e penetrante veio de trás. — Me desculpe pelo ocorrido.

    Todos nós nos viramos. Para o meu espanto o garoto com o cabelo bagunçado e a cicatriz no antebraço se aproximava com um sorriso gigantesco, mesmo que eu não tivesse visto motivo para riso. Usava uma regata longa como Ben costumava e tinha as duas mãos no bolso.

    — Me desculpe pela Beatriz — ele começou, olhando fixamente para o motorista, enquanto os olhos da menina se arregalavam, o choro sendo interrompido. — Ela não consegue se controlar, sabe como é, mulheres.

    Ele deu uma risada que ainda não combinava com o momento e que fez meus pelos eriçarem. Minha mente estava funcionando rápido, Henry a conhecia, estava confortável com a situação, mas Beatriz estava o oposto, encolhida no banco o olhando assustada.

    — Ela causou tumulto, acertou aquele menino ali — o motorista disse e recebeu um resmungão de concordância de Ben. As pessoas estavam mudas.

    — Sim, olhe o que essa louca fez no meu queixo! — Ben exclamou, achando que estavam do lado dele.

    — Um belo gancho de esquerda, Bia — disse, olhando novamente para o motorista e para cada uma das pessoas, mas eu não prestei mais atenção.

    Beatriz recuou no banco ao som do apelido e eu finalmente reconheci o sentimento que ela transparecia. Medo, claro. Era isso, mas por quê? Tadeu dissera que Henry havia chegado de viagem e Beatriz também, talvez ele fosse seu irmão? Que a dedaria para o pai, por isso ela estava tremendo. 

    — O senhor entende, não é? Dou minha palavra que isso não vai acontecer novamente. — Eu não confiaria em alguém que não conseguisse passar muito tempo sem um sorriso debochado no rosto, mas o motorista considerou.

    — Aqui nesse ônibus ela não sobe mais.

    — Claro, senhor, cuidarei disso.

    — Espera aí, como assim, tudo certo? Ela me atacou! — Ben estava irado, mas foi apenas o cara olhá-lo para ele calar.

    Ele se virou, havia resolvido rápido o impasse com o motorista e parecia contente com isso. As pessoas também pareceram aceitar e com a chegada desse cara inclusive esqueceram que Ben quem era perigoso ali.

    — Vamos, Beatriz.

    — Não, Henry, eu desço na outra parada. — Ele parou do meu lado, sem prestar atenção em mim.

    — Eu te acompanho até em casa.

    — Não precisa, estou bem.

    — Não, Bia, você vai querer que eu passe a noite lá.

    A menção de seu apelido e lábios entreabertos de Henry foi o suficiente para ela levantar, um pouco cambaleante e passar na minha frente. Não olhou para mim uma única vez e continuou andando, com a mão do garoto possessivamente fixa no ponto mais baixo de suas costas. Foi aí que a minha ficha caiu. Ele devia ser seu namorado, mas tinha algo errado.

    Namorados não deixam suas namoradas tremendo de medo quando aparecem.


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