Mariposas escrita por Lorita de M


Capítulo 6
Tédio




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Anja apoiou o queixo no balcão, olhando para a porta de vidro com os braços estendidos para os lados. Quando algum transeunte se detinha diante das vitrines ela se endireitava e abria um sorriso, mas nenhum deles entrava. Apenas retribuíam sem muita vontade o sorriso e seguiam caminhando – se é que chegavam a fazer isso. O zumbido dos ventiladores parecia quase um mantra, e seu vento empurrava alguns cachos para diante dos olhos dela, que ela apenas afastava para que depois caíssem ali outra vez. Não era um dia quente, era na verdade um dia frio, mas sua tia insistia em manter os ventiladores sempre ligados durante o dia para que o ar “pudesse circular”. Depois de muitas tentativas, Anja desistira de contrariá-la.

Encarando a porta lembrou-se da garota resmungando sozinha diante do vidro, abaixada e com um fio de sangue escorrendo da mão sem nem perceber, e dos olhos imensos em sua expressão de surpresa. A lembrança fez com que sorrisse. Abriu distraidamente uma das gavetas no balcão e tirou de lá uma caixinha de cigarros de chocolate vencidos. Tomou um deles e o girou entre os dedos, a superfície embranquecida e quase rachando. Era uma de suas diversões nos últimos tempos fazer uma lista mental de todas as coisas vencidas que já encontrara espalhadas pela loja e os cômodos anexos no andar de cima. Encarou o cigarrinho e enfiou na boca, como via a sua mãe fazendo há tempos atrás. Tragou como se tivesse de fato algo para tragar e soltou uma grande baforada de nada, visualizando as formas indefinidas e confusas da fumaça se espalhando pelo ar e envolvendo-a como num sonho. Imaginava que a fumaça assumia formas, imagens em movimento se transportando pelo ar. Era colorida, conseguia sentir seu cheiro peculiar, conseguia senti-la acariciando sua pele. Absorta, levantou-se e moveu os dedos suavemente através do ar como se pudesse brincar com a fumaça, desenhando padrões infinitos e belíssimos que se dispersavam logo em seguida. Tragou mais uma vez, soltava baforadas para todos os lados, rindo como uma criança.

A porta de madeira que levava às escadas para o andar de cima bateu. Foi o que a trouxe de volta para o tédio e o barulho insuportável dos ventiladores. Uma mulher de meia idade, o cabelo ensebado preso desajeitadamente e os movimentos bruscos acentuados pelo brilho que as lantejoulas costuradas em suas roupas faziam ao refletir a luz, deteve-se e encarou Anja.

— O que está fazendo? — grasnou. A garota percebeu que estava de pé, com o cigarro de chocolate dependurado na boca, as mãos estendidas como se estivesse posando para alguma coisa. A mulher apontou para o cigarrinho — Não está mais comestível.

Ela cuspiu o bastão de chocolate na mão e o jogou na lixeira, rapidamente colocando a caixa com os outros de volta na gaveta onde os encontrara. Com as costas da mão afastou mais uma vez a madeixa insistente que caía sobre os olhos e deu de ombros.

— Sabia que seria incompetente — a mulher disse, como se estivesse praguejando — Seu pai tem a bondade de conseguir alguma coisa decente para você fazer e é assim que lhe agradece.

— O meu pai não tem bondade alguma — Anja respondeu, objetiva, num tom de voz neutro e encarando a interlocutora de tal maneira que a fez desviar o olhar e resmungar.

— Mal-agradecida — arrastou os pés até chegar à porta de vidro, algumas lantejoulas desprendendo-se da roupa no caminho — Quantas vendas já fez hoje?

— Essa loja não tem cliente algum — ela respondeu, maliciosamente — Por isso não fiz nenhuma.

— Deve ter espantado os clientes. Tenha certeza de que até o fim dessa semana você terá o que merece. Vou arranjar alguém melhor para ficar no balcão e você vai dormir no descampado da rua — a mulher terminou a frase berrando, e saiu tempestuosamente da loja, afastando-se na rua. Anja suspirou e escondeu o rosto nas mãos. Conhecia bem a esse ponto as ameaças vazias da tia, mas elas não deixavam de irritá-la. A verdade é que parte dela queria que fossem reais, parte dela preferia dormir no descampado e na chuva a ter de suportar tudo aquilo. “Deve ter espantado os clientes” imitou mentalmente “As roupas na vitrine devem ter espantado os clientes. Esses ventiladores horríveis devem ter espantado os clientes. Que clientes? Tudo sobre esse lugar deve ter espantado os...”.

— Anja?

Ela ergueu o rosto. Dina estava parada diante da porta, a mochila pendurada em um dos ombros.

— Dina. Está perdida outra vez?

A garota sorriu e se aproximou, deixando a mochila deslizar até o chão perto do balcão.

— Eu não estava perdida. Só estava me abrigando da chuva.

— Sei. Tom não está com você?

— Não. Por quê? — Dina ergueu uma sobrancelha — Queria vê-lo?

— Mas que bobagem. É só que parece que estão sempre juntos.

— Quase sempre.

Ela se apoiou no balcão e apenas respirou por alguns instantes. O rosto estava corado, provavelmente tinha estado caminhando. No olhar podia-se ver algum nível de dúvida, como se ela não soubesse bem por que tinha decidido entrar ali.

— Então você trabalha aqui quando não está no campus? — ela disse, para romper o silêncio que lhe estava ficando desagradável. Anja assentiu e sorriu de canto.

— Quase sempre.

Dina revirou os olhos. Observou as roupas expostas nos mostradores e não conseguiu esconder o estranhamento. Olhou para Anja com um olhar questionador, e ela, em resposta, apenas sorriu mais.

— É tudo muito estranho mesmo — afirmou — Mas por algum motivo minha tia acha que as pessoas gostariam de comprar essas coisas.

— Você mora com a sua tia?

— É. Em tese moro com o meu pai também, mas ele nunca está em casa.

— Ah. Sinto muito?

— Não sinta — Anja se espreguiçou, descontraída — Eu queria mesmo é que ele saísse definitivamente — fez uma pausa — Bem, deixa para lá. E o Tom? São amigos há muito tempo?

— Está querendo saber bastante sobre o Tom — Dina estreitou os olhos. A outra riu e ergueu as mãos como que se defendendo.

— Gosto de saber sobre quem está prestes a ser meu amigo. O que te faz pensar que não perguntei a ele sobre você também?

Dina juntou as sobrancelhas numa espécie de careta engraçada. Mexeu os ombros nervosamente.

— Que absurdo — riu nervosamente. Parou de rir — Perguntou?

Anja moveu as sobrancelhas misteriosamente e sorriu. Estava se divertindo.

— Pare com isso! Perguntou? E o que aquele idiota falou sobre mim?

— Quanta hostilidade — a garota riu — Não perguntei nada, Dinorá Papillon. Talvez pergunte.

— Me chame só de Dina — ela resmungou, pendurando a mochila de volta nos ombros — Em todo caso, só passei para dar um oi. Estou cheia de coisas para fazer.

— Então vá fazer as coisas que tem para fazer.

— Estou indo fazer exatamente isso! — Dina caminhou decidida até a porta e se voltou no último instante — Até mais, Anja.

Anja balançou a mão, se despedindo, até a outra desaparecer de seu campo de visão. Riu sozinha até que a risada se esvaneceu e ela se viu sozinha com os ventiladores outra vez. Suspirou.

— Talvez seja bom — disse, sem perceber que tinha falado em voz alta.


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