Mariposas escrita por Lorita de M


Capítulo 5
Cinema




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Os três estavam parados em silêncio contemplando a placa com luzes em neon que diziam “C NEMA”. Estava pendurada por apenas um dos lados, a luz na letra “I” não estava acesa e a portinha miúda de madeira e vidro na frente de persianas escuras que não permitiam ver o que havia do outro lado davam àquele lugarzinho um aspecto bastante suspeito.

— Vocês têm certeza de que isso é um cinema?

Os outros dois assentiram lentamente, sem se voltar.

— Ainda tenho arrepios toda vez que entro aqui — Tom disse — Mas o dono é um velho louco fantástico.

Dina concordou com um aceno de cabeça. Olhava para a outra garota com o canto do olho, sem que ela percebesse. Apesar de achar que parecia uma boa pessoa, que tinha sido bastante simpática até então e de ter concordado imediatamente com a ideia de leva-la para um passeio pela cidade, ainda se sentia insegura quanto a revelar todos os lugares secretos e especiais de sua amizade com Tom. As circunstâncias em que as duas haviam se conhecido pareciam ter imprimido na cabeça de Dina algum tipo de vergonha irracional, e mesmo sabendo que não precisava se sentir assim ela tinha uma certa convicção de que Anja acharia tudo aquilo sem graça e nada especial, e isso era o que mais a apavorava. “Vai ser legal” insistira Tom “E ela vai gostar de tudo, tenho certeza”. Depois de muita conversa haviam concordado em mostrar tudo, menos as docas.

— Bem — Anja olhou para os dois — Vamos entrar ou o quê?

Tom avançou e puxou a porta, que protestou com um rangido. Passou desajeitadamente pelas persianas, seguido pelas duas meninas, e atravessaram um corredor empoeirado e um pouco claustrofóbico, de tons entre o laranja e o vermelho e cartazes velhos de cinema colados nas paredes, até chegar numa salinha de poucos metros quadrados com cadeiras escuras voltadas para uma parede branca. Atrás das cadeiras podia-se ver a janelinha que dava para a sala de projetor. Dina depositou a mochila num canto e se esgueirou até uma portinhola quase imperceptível perto da janelinha, na qual deu três batidas fortes. Alguém murmurou alguma coisa do lado de dentro, e a garota sorriu. Empurrou a portinhola com o ombro e teve de abaixar-se para entrar. Tossiu uma ou duas vezes. O quartinho minúsculo estava tomado por uma nuvem espessa de uma fumaça perfumada, que dava a tudo um ar misterioso. Num canto, um velho baixinho estava sentado segurando um cachimbo, as longas madeixas brancas presas para trás em um rabo de cavalo.

— Como vai, juventude? — ele berrou, a voz rouca e alegre.

— A pé, que tudo fica perto por aqui — Dina retribuiu o sorriso do velho. Os outros dois entraram em seguida, um pouco espremidos pela falta de espaço. O senhor ajustou os óculos para enxergar melhor e apontou para Anja.

— Essa aí eu não conheço. Como vai, juventude?

— Vou bem — ela riu. Abaixou-se e estendeu a mão — Eu sou Anja.

— Eu sou velho — ele gargalhou, deixando a cabeça cair para trás. Colocou o cachimbo na boca e apertou a mão da garota enfaticamente. Tomou o cachimbo novamente e soltou uma longa baforada — Mas meu nome é Scott. O velho Scott!

— Que é que está fumando, hein? — provocou Tom — Todo brincalhão que está hoje... Sem contar que não tenho a menor ideia do que é esse cheiro.

— Eu já nem sei — riu o velho Scott. Ele voltou-se para Dina — O globo de neve que lhe dei serviu bem para o seu quarto?

A garota enrubesceu e abriu a boca para responder, mas Tom foi mais rápido.

— As figuras de dentro talvez, porque foi só o que ela recuperou quando quebrou o globo deixando ele cair no chão!

Em resposta o velho gargalhou mais uma vez. Fez um gesto exagerado com a mão.

— Em todo caso, não sei o que é que estão fazendo aqui ainda. Estão no cinema para assistir filmes, não é mesmo? Então sentem a bunda nas cadeiras lá da frente que vou mostrar a vocês o que é bom cinema!

Os três saíram e tomaram assento na última fileira de cadeiras da salinha. Dina resmungou alguma coisa em protesto à denúncia de Tom, mas ele nem ouviu – tinha se esticado para alcançar o interruptor e apagar as luzes na sala. Ela encolheu as pernas e as abraçou.  Conseguia distinguir a respiração tranquila do garoto e a determinada de Anja. Olhou para ela através da escuridão. Não conseguia ver seu rosto, então não sabia o que ela estava achando de tudo aquilo. Esfregou o rosto com as mãos e ergueu o olhar para a parede, que se iluminara com uma projeção.

LADRÕES DE BICICLETA

 

Ela tentou prestar alguma atenção à projeção, mas sentia-se distraída – já haviam se passado uns quarenta minutos do filme e ela não fazia ideia do que estava acontecendo. Não dormira bem. Mais uma vez. Tamborilou os dedos no braço da cadeira, mas deteve-se por medo de incomodar os outros dois – que de fato estavam prestando atenção ao filme. Deixou a cabeça pender para trás e fechou os olhos, concentrando-se na imagem de um ponto cor de rosa que ia se distanciando até que se via a asa de uma borboleta, que ia se distanciando até que se via a borboleta inteira, que ia se distanciando. Abriu os olhos repentinamente quando ouviu um “Ah” de protesto de Tom. Havia algum problema com a projeção. Ele esgueirou-se para acender a luz.

— Aquele velho louco deve ter dormido em cima do projetor, tenho certeza. Vou ajudá-lo — ele disse, e sumiu atrás da portinhola. As duas ficaram num silêncio constrangedor por alguns instantes.

— Está gostando do filme? — Anja disse, enfim.

— Para falar a verdade não estou conseguindo prestar muita atenção — Dina admitiu. A outra riu.

— Eu entendo bem — olhou ao redor — É legal, esse lugar que vocês têm aqui. Devem conhecer cada canto da cidade.

— Não é muito grande. Nem há muito o que conhecer. Devia ser muito diferente em Essen. Imagino que deva sentir saudades de todas as mil coisas que se tem para fazer numa cidade como aquela.

— Sabe o que é engraçado? — Anja olhou para algum ponto na parede — A memória mais querida que tenho de Essen e aquilo de que sinto mais falta é de chegar em casa no fim da tarde, me sentar no degrau da entrada e tirar os sapatos.

— Tirar os sapatos?

— É. Eu me sentava no degrau e os tirava com todo o cuidado, desamarrava devagar para não emaranhar os cadarços, tirava as meias. Então carregava tudo até o quarto, e sentia o chão gelado com a planta dos pés. Era minha maior felicidade.

Fez-se um silêncio por alguns instantes.

— Você se contenta com pouco, não é mesmo? — Dina disse, encarando-a. Com a luz acesa conseguia ver os cachos emoldurando o rosto, que esboçava uma expressão enigmática.

— É o que parece — Anja sorriu, como se despertasse de um transe. Era o que parecia quase sempre. “Como se ela estivesse permanentemente nesse transe e os momentos em que ela volta à vida real são apenas exceção” Dina pensou “Como se a vida real fosse seu transe”. Anja continuou — E você, com o que se contenta?

Ela deu de ombros e sorriu, sem jeito.

— Você não fala muito, não é mesmo? — Anja disse.

— Acho que não — Dina pensou por alguns instantes — É, acho que não.


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