Mariposas escrita por Lorita de M


Capítulo 17
Cais




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Considerou sentar-se, e quase conseguiu sentir nos músculos a sensação suspensa das duas pernas balançando, os pés esticados como se pudessem se molhar se o fizessem o bastante. Decidiu, entretanto, permanecer de pé, recostada como estava em um dos contêineres de metal enferrujado, os braços estendidos ao longo do corpo. A boca desenhava uma linha reta, o que era incomum em sua expressão até mesmo nos momentos em que estava mais insatisfeita. Uma única vez havia estado de pé e com aquela mesma expressão vazia e impassível, olhando de cima o aeroporto de Essen no dia em que deixou a cidade – e dia em que teve a clara sensação de que algo estava morto dentro de si, e de que se formara em sua garganta um tipo de nó que dificilmente se dissolve, mesmo com o tempo. Ali, com as costas pressionando a superfície metálica do contêiner, a sensação era outra. Sentia, sim, que havia algo de morto que teria de carregar consigo pelo resto da vida, e sentia, sim, dor, e ódio, e um algo de vazio. Mas a diferença fundamental em relação ao que tinha sentido no dia em que deixou Essen era que conseguia ver mais, que se sentia motivada e instigada por alguma coisa que até então nunca tinha surgido como possibilidade. Tinha recebido um outro golpe duro da realidade, mas dessa vez tinha perspectivas. Dessa vez não se resignou.

 

Ouviu os passos suaves aproximarem-se, incertos. Em parte se arrependia de ter marcado o encontro com pressa e com um tom de formalidade que parecia anunciar más notícias, ou qualquer coisa de muito solene. Mas de resto sentia que de fato havia algo de ritual em tudo que estava prestes a dizer, e que aquele era o lugar perfeito: o mesmo silencioso cais em que havia recebido dela as primeiras e estranhas confidências. Seu impulso imediato ao notar que os passos se aproximavam foi o de se voltar, mas permaneceu imóvel ao se lembrar imediatamente da mancha escura que gritava, sobreposta ao inchado olho esquerdo. Não estava pronta para encarar de frente a reação horrorizada que ela receberia, então escolheu deixar que fosse percebida ao invés de anunciada. Fixou o olhar em algum ponto imóvel entre as marolas sem muita convicção das águas escuras do mar, e viu apenas de solsaio os olhos se escancarando devagar, a boca entreaberta, o peito suspenso da respiração interrompida. Esperou.

 

— Anja? — ouviu apenas um fio de voz, que provavelmente não teria ouvido se não o tivesse esperado. Não se voltou. Comprimiu os lábios porque lhe pareceu que estavam prestes a falharem, trêmulos e assustados, e não era o que queria. Decidiu que faria tudo em seu tempo e respirou profundamente uma, duas, três vezes. Dina, resignada, segurou uma mão com a outra e fechou a boca, respeitando a demora. Seus olhos, no entanto, não conseguiam esconder o susto e o terror.

 

— Foi meu pai — Anja afirmou, por fim, num ato heroico. Ainda não se voltou, temendo que, se encarasse o desespero da outra direto nos olhos, cedesse ao desespero próprio e os olhos se marejassem, turvando a visão clara que era aquilo a que ela se agarrava com todas as forças naquele momento. Dina se aproximou e postou-se ao seu lado, também recostada no contêiner e procurando como olhar o mesmo ponto fixo nas águas que Anja encarava, como se assim pudesse saber melhor no que estava pensando. Perguntou:

 

— Seu pai fez isso com você? Anja.

 

Isso. A mão de Anja pareceu procurar sem que ela precisasse pensar o hematoma escuro no rosto, e ela ali deslizou os dedos com uma suavidade que parecia incompatível com a violência do sinal ali marcado na mancha arroxeada. Isso. Pensou que em momentos como aquele era necessário dar o devido nome às coisas.

 

— Apanhei de meu pai, sim. Me desferiu um soco no rosto enquanto estávamos discutindo.

 

— Anja — Dina repetiu, encarando-a. Era tudo o que podia fazer, repetir aquele nome com a ternura que ele nela provocava na esperança de que a violência em tudo aquilo cedesse para qualquer outra coisa, de que o medo cedesse. Ouvir a tristeza profunda que aquilo marcado em seu rosto provocava em Dina, sentir em sua preocupação algo sincero, tudo isso induziu Anja a um estado de lucidez e tranquilidade que não sentia há anos. Finalmente se voltou, olhando a outra nos olhos.

 

— Vou fazer um boletim de ocorrência — anunciou, e fez uma pausa — Tudo mudou, Dina. Quer dizer, eu acho que eu mudei. Talvez vir para cá, e conhecer você. Talvez tenha sido tudo isso, talvez já fosse uma iminência. Mas a verdade é que eu mudei.

 

— Não estou te entendendo — Dina murmurou, num misto contraditório de apreensão e encanto.

 

— Não leia isso como algo ruim! Eu mudei exatamente naquilo que eu precisava mudar, precisava para sobreviver, entende? As pessoas fazem essa distinção tão cristalizada, falam que comer e dormir e cagar a gente faz para sobreviver, e que todo o resto a gente faz para viver. Mas sabe, é um problema tremendo que pensem assim. Não! Minha sobrevivência, aquilo que a garante, está em tudo que é necessário para que eu continue viva. Eu não preciso só de comer e dormir e cagar para continuar viva, entende? Eu preciso rir, e preciso saber de algumas coisas sobre mim, e poder falar, eu preciso de tudo isso. E não é para viver, não é simplesmente para deixar a experiência de minha passagem por esse planeta mais agradável e menos hostil. É para eu não morrer, é exatamente para isso. Tem muitos jeitos de se morrer. Para Sócrates o ostracismo, a humilhação do exílio e do seu afastamento eram uma morte até pior que a sua execução, pela qual ele optou. As pessoas fazem as coisas para sobreviver, você precisa querer continuar vivo, nem que seja num nível inconsciente, para não ceder à morte, e por isso precisa querer continuar vivo para sobreviver. E para querer continuar vivo você precisa de muito mais que dormir e comer e cagar. Eu? Eu precisava mudar porque eu precisava querer continuar viva, eu precisava me colocar no mundo de um jeito que não fosse a morte, que não fosse a complacência, a resignação diante de coisas horríveis que acontecem, que não fosse baixar a cabeça e até falar, até cantar: mas cantar baixinho. Tudo mudou agora. Eu não sei de tudo, eu não sei de quase nada e na verdade eu ainda tenho um tanto infinito para mudar, e um tanto infinito de angústias e um monte de medo. Mas agora eu tenho esse algo que eu não tinha, você consegue compreender? Eu tenho alguma coisa que se parece com coragem, com vontade. E eu acho sinceramente que te conhecer foi algo que teve um papel muito importante em tudo isso, que você me ensinou sem saber algumas coisas, ou pelo menos me ajudou a aprender. Eu estou dizendo tudo isso porque antes de mais nada, antes de tudo eu preciso te agradecer.

Tudo tinha sido dito quase num ímpeto, quase num fôlego, e o silêncio de alguns instantes foi o jeito que as duas encontraram para deixar que as palavras se decantassem no ar, que terminassem de ser ditas naqueles segundos em que não diziam nada. Foi Dina quem falou primeiro.

 

— Antes de tudo? — fez uma pausa — Antes de quê?

 

Anja desviou o olhar por alguns instantes. Deslizou um ou dois dedos entre os cachos, procurando palavras para dizer aquilo em que nem ela acreditava direito. Voltou a olhar para Dina, com mais suavidade e menos da determinação efervescente com que tinha dito tudo o que tinha dito.

 

— Eu confrontei o meu pai — disse — Depois que ele me bateu. Eu senti que o que tinha acontecido era inadmissível num nível que parecia que eu ia morrer se não o confrontasse, se não gritasse em sua cara o que ele tinha acabado de fazer já que os fatos por si só não pareciam ser suficientes. Então eu fiz, sem pensar, sem nada. E eu disse tudo o que não tinha dito esse tempo todo, desde as brigas com minha mãe, antes de tudo. E disse que não vou submeter a minha existência ou qualquer pulsão de vida que eu tenha às ordens que ele me dá, e que são movidas pura e simplesmente por um ódio horroroso. É uma coisa que todos têm vontade de dizer, mas que muitos nunca dizem porque temem pela própria vida. Como eu mesma temo, e temia ainda na hora em que disse. Mas, de verdade, eu senti que se não dissesse ia morrer ali mesmo. E ele ouviu quieto, quase que em choque, enquanto eu dizia tudo que eu precisava dizer e que ele precisava ouvir.

 

— Parece inacreditável.

 

— Parece — ela concordou — Já parecia enquanto estava acontecendo, e ainda parece. Mas a verdade é que eu disse tudo isso para dizer uma outra coisa, e eu te chamei aqui para tudo isso, mas principalmente pelo que eu ainda não disse.

 

Anja fez uma pausa. Dina a encarou com a expectativa de quem teme o que pode ouvir.

 

— Eu acho que o pouco tempo que passei aqui e o nosso relacionamento nas últimas semanas, essas foram algumas das melhores coisas que já me aconteceram e tiveram uma importância imensa para eu entender um pouco melhor minha própria vida — mais uma pausa.

 

— Mas…?

 

— Mas eu preciso enfrentar a realidade, preciso me colocar no mundo como sou e preciso falar com minha mãe, preciso entendê-la e preciso que ela me entenda.

 

Fez uma pequena suspensão, que na verdade nem era necessária uma vez que não precisava continuar falando para que Dina compreendesse o que estava querendo dizer. Esta ficou quieta por um ou dois instantes.

 

— Vai voltar para Essen — disse, em voz alta.

 

— Eu sinto que faço sentido em Essen, mais do que faço aqui. Eu não sei. Eu.

 

— Você não precisa se explicar — interrompeu Dina — Sente que pertence a Essen e que tem algo que precisa fazer lá. Eu consigo entender isso. É ótimo que esteja se sentindo bem consigo mesma — fizeram um silêncio de alguns instantes, e ela sorriu, quase tímida — Isso soou mais passivo agressivo que eu gostaria. Mas de verdade, eu acho ótimo.

 

— E nós? Eu não sei como. Eu posso voltar e visitar você e Tom, mas — fez uma pausa e desviou o olhar — eu não sei como nós ficamos.

 

Dina pensou por alguns instantes. Olhou para o chão, depois para a água, e por fim para Anja.

 

— Eu acho que você é e continuará sendo uma grande amiga para mim — disse, e fez uma pausa — Mas não sei se consigo viver um relacionamento esperando que você venha me visitar quando puder. Além de que eu preciso pensar, preciso entender muitas coisas. É como você disse, para eu descobrir como… Como eu quero sobreviver.

 

Anja assentiu. As duas, apoiadas no contêiner, permaneceram ali em um silêncio que era mais terno e sincero que qualquer coisa que pudessem dizer, e começou a cair uma fina e inesperada garoa.


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