Mariposas escrita por Lorita de M


Capítulo 16
Interlúdio dramático: Tom e Dina




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Tom brincando com o equilíbrio no meio fio da calçada, pendendo para a frente e para trás. Os braços compridos e finos largados ao redor do corpo, e a cabeça baixa com o olhar fixo em algum ponto no asfalto. Parece tranquilo e distraído. A rua está vazia. Dina empurra a porta do sebo dentro do qual estava, um sino tilinta quando ela o faz. Distribui as três sacolas cheias entre os braços, duas em um e uma sozinha em outro. Afasta uma madeixa dos olhos e caminha até o meio fio, onde está o amigo.

 

DINA: (observa por um instante) Engraçado como você faz isso desde que éramos muito pequenos.

 

TOM: (sem se voltar, abre um sorriso discreto) A verdade é que como eu sempre fui alto qualquer queda me parecia imensa. Até a do meio fio. Um dia minha mãe quis me provar que eu não precisava ter medo de cair o tempo todo e ficou brincando assim de se equilibrar. (volta-se, olha para as três sacolas) Fez bom proveito do limpa estoque então?

 

DINA: (refletindo) O próprio conceito de um sebo está em comprar os livros mais magníficos por preços magníficos de bons. Imagine em um limpa estoque. (pausa) Vamos sentar? Estou sem vontade de voltar para casa.

 

TOM: Aqui? (olha ao redor) Não parece o lugar mais agradável para se sentar.

 

DINA: E desde quando preferimos os lugares agradáveis? Ficam cheios de gente.

 

Dina dá dois passos até a parede de concreto de um dos lados da porta do sebo e se senta apoiada ali, depositando as sacolas na sua frente. Tom fica de pé ainda por alguns instantes, joga o peso para a frente mais uma vez e por fim senta-se também. Abraça as próprias pernas.

 

DINA: Nem perguntei sobre a sua avó. Está bem?

 

TOM: Abuela? No dia em que não estiver esplêndida algo terrível acontecerá ao mundo. (pausa) E a sua. Noite de filmes. Foi boa?

 

DINA: (enrubescendo, desvia o olhar, pausa) Foi.

 

Tom ergue uma sobrancelha e a encara de maneira questionadora. Ela finge que não percebe.

 

TOM: O que aconteceu?

 

Dina não responde. Estica as pernas para a frente e olha para o amigo com o canto do olho.

 

TOM: Ah. Mas. Vocês? (pausa) (gesticulando bastante) Pelo amor de Deus, me conte o que aconteceu antes que eu enlouqueça! (pausa, um sorriso e uma sobrancelha erguida) Por favor?

 

DINA: Ela. Nós. (pausa, comprime os lábios) Aconteceu um beijo.

 

TOM: (abrindo bastante os olhos e apoiando-se no chão com as duas mãos) Um beijo?

 

DINA: É, pare de ser exagerado. Um beijo.

 

TOM: (apoia as costas inteiras na parede e sorri) Quem diria. O seu primeiro beijo e eu quase não fico sabendo. (pausa, vira a cabeça) O primeiro, certo?

 

DINA: Certo. (pausa) E talvez tenha… Talvez tenha havido mais um.

 

TOM: (quase se levantando de susto) Mais um? Antes?

 

DINA: Não! (gesticula com as mãos) Depois. Depois. Ontem.

 

TOM: Ontem?

 

DINA: É. Fomos à sorveteria. (enrubesce) Eu não sei falar desse tipo de coisa, Tom.

 

TOM: Não tem que saber de nada. Então vocês duas estão…? (estica uma das pernas e apoia o braço na perna dobrada, ergue uma sobrancelha)

 

DINA: (suspira) Eu nem sei direito, sabe. Não sei o que nada disso quer dizer. Ela me contou várias coisas sobre a vida dela que eu não sabia, e ao mesmo tempo parece que tem tanto que eu ainda não sei. E que ela não sabe. Eu não sei… Para ser sincera não sei nem de onde veio tudo isso, quer dizer, eu não tinha percebido que estava… Que estávamos nos sentindo assim. Eu acho. (pausa) Eu sabia que tinha alguma coisa sobre ela, que eu não sabia o que era. Ainda não sei. E eu? Não entendo por que ela.

 

TOM: (interrompendo, olha para algum ponto distante) Não é tão difícil de entender. (pausa, enquanto Dina desvia o olhar ele volta-se outra vez) Não! Não se sinta mal. Não disse para isso. Só quis dizer que… Você é uma pessoa incrível, Dinorá.

 

DINA: (pausa) Dinorá. Fazia tanto tempo que não me chamavam assim que cheguei a esquecer que era o meu nome. (pausa) Também acho que você é incrível, Tom.

 

TOM: (desconcertado) Bem, e como é que você está? Com tudo isso? (pausa) Já sabia que gostava de garotas quando…?

 

DINA: Eu não sabia e ainda não sei de nada. Sabe eu cheguei a me interessar por um garoto quando ainda estávamos no colégio. (sorri) Mas nunca pensei em fazer nada sobre isso.

 

TOM: Ah! Então você é…

 

DINA: Bissexual. (pausa, abre bem os olhos) Nunca tinha dito isso em voz alta. É, acho que é isso. Acho que sou bissexual. Eu sou bissexual.

 

Tom ri de canto enquanto ela se levanta e repete que é, é bissexual, como se quisesse assimilar a informação. Ela aborda transeuntes invisíveis e inexistentes dizendo-lhes que é bissexual, fala para as formigas que caminham em trilha até um buraco no concreto do muro, chega a empurrar a porta do sebo e dizer para o homenzinho lá dentro que é isso mesmo, é bissexual. Enfim se canto e se senta onde estava antes, em silêncio. O silêncio dura alguns minutos, até que ela se volta para Tom.

 

DINA: É que eu não sabia. Não sabia o que eu podia ser. (pausa) Eu estou aprendendo.

 

TOM: (sorrindo, parece tranquilo) Corretíssimo.

 

DINA: (pausa) É muito bom, Tom. Quando alguma coisa parece fazer sentido… Mas não é isso, não é isso o que eu queria dizer. Eu queria dizer que é muito bom que você seja meu melhor amigo, e que eu possa te contar as coisas assim.

 

TOM: É bom te ter como melhor amiga também. (pausa) Não se preocupe, dessa vez eu não vou tentar te beijar.

 

Tom fica tenso por um segundo, esperando a reação de Dina para a piada, sem saber se foi uma decisão sensata fazê-la. Ela leva um instante para entender e então ri. Ele ri. Os dois riem.


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