F de Forca escrita por Lucas Piascentini


Capítulo 2
Capítulo 1




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Ventava do lado de fora de casa incessantemente. Assistia pela janela do meu quarto as árvores em movimentos que lembravam uma dança. Não era inverno, mas já fazia frio. Exatamente como as árvores que observava, minha mente não estava estagnada, milhões de pensamentos corriam um atrás do outro e acho que era por isso que uma das coisas que eu mais gostava de fazer era ficar de pé, segurando uma xícara de café e observando o lado de fora em dias de ventania enquanto meu cérebro trabalhava em pensamentos de uma complexidade impossível de ser explicada. As janelas batiam como fossem se romper a qualquer instante e eu assistia a força que a natureza tem sobre todas as coisas existentes. Era ao mínimo interessante.

Nora, a robô que cuidava de mim, adentrou o quarto perguntando se eu precisava de algo, novamente respondi que não. Acho que era a décima vez que respondia a ela somente hoje que estava tudo certo. Eu até entendo a dificuldade de assimilação desses robôs, visto que eles não conseguem entender a majestosidade de observar o planeta que vivem, afinal, um fato interessante sobre Nora é que ela não consegue pensar, aliás, acho que robô nenhum um dia adquira essa peculiaridade. Certa vez, perguntei a ela sobre essa tal possibilidade, o que passava pela sua cabeça quando não estava fazendo os afazeres domésticos – ela apenas me respondeu que essa pergunta era muito complexa e que não sabia como me responder de fato, de qualquer forma, acreditava que era um grande vazio. O pensamento era um vazio e ela era programada apenas para fazer as coisas que eu queria, que Célia, minha mãe, solicitara. Por exemplo, não conseguiria reprogramá-la para ser um daqueles robôs prostitutas que estavam tão na moda e todo adolescente gostaria de ter. Mas eu já havia passado dessa fase, certo? Não era mais um daqueles adolescentes que não conseguem pensar em algo além de sexo.

— Bernardo, sua mãe está te ligando. — Disse Nora que percebo que jamais deixara o quarto. Ela era conectada ao meu celular e tinha como uma das suas funções avisar todas as vezes que minha mãe me ligava. Obviamente existia uma maneira — levou um pouco de trabalho para descobrir —, que possibilitava o desligamento da perseguição de minha mãe usando da tecnologia ultra avançada e praticamente inexplicável de Nora. Se eu era tão importante assim para minha família, por que eles fizeram todo o sacrifício para me colocar neste viveiro de papagaio? Não que eu odiasse aqui, afinal, Pedro vivia próximo de minha casa e também ele era meu melhor amigo. Não sei o que faria sem ele — talvez não me irritasse tanto com seu T.O.C. perturbado, mas que ainda assim, era compreensível. Em um mundo tão bagunçado, era bom ter alguém que preservava tanto o correto. Pedro era bom e queria ser como ele.

Assinto com a cabeça para Nora e pego o telefone que está enrolado entre os edredons, Nora sempre desaprova o fato de eu odiar que ela arrume a minha cama, mas fizemos um trato — foi quando descobri que robôs também podem mentir. Combinamos que eu não contaria para minha mãe sobre ela não arrumar todos os lugares da casa, porque alguns eu preferia bagunçado, e eu não contaria sobre a vez que a vi fora de casa — ela era proibida de colocar os pés para fora. E ainda, prometi que a levaria para passear toda semana. Obviamente eu não precisava de fato leva-la toda semana para sair, mas a verdade era que eu tinha dó de Nora, porque mesmo quando qualquer ser humano já estaria exausto, ela não cansaria jamais, porque era uma máquina e fazia qualquer coisa sem pensar duas vezes, pigarrear palavras de baixo calão ou algo similar. Não fazia sentido pensar que não há muito longe existira escravidão e que hoje os robôs viviam por algo parecido. Tudo bem. Não são humanos, mas a aparência tão humanizada deles, apenas com alguns metais aparentes causavam um efeito que pensava em eu mesmo criar algum órgão de defesa dos robôs. Ok. Pensei muito alto e não sou advogado.

— Oi, Célia. O que quer?

Atendi o telefone e disse rispidamente, escuto a respiração nervosa do outro lado da linha, mas como sempre, Célia consegue controlar sua raiva e responder calmamente:

— Filho, amado, você sabe que não suporto quando me chama assim.

Minha mãe parecia ter feito curso em como ser uma vaca egocêntrica falsa, e eu era obrigado a fingir gostar dela, afinal, dizer para um mundo inteiro como você realmente se sente em relação a seus pais às vezes parece algo extremamente desumano. Por outro lado, eu amava meu pai, porque ele nunca foi de se preocupar tanto comigo a ponto de me colocar em uma gaiola com sete chaves e me proibir de sair. Quando eu tentei suicídio pela primeira vez, minha mãe achou melhor me colocar nesse lugar com pessoas problemáticas e com criadouros que possam nos ajudar todos os segundos, desde robôs até mesmo humanos que não se diferem muito dessas máquinas não pensantes. Nunca fez sentido essa ideia de colocar um ser dentro de um lugar que lá ele poderá ter atenção 24h, nunca foi isso que quis. Nunca quis me sentir solitário, isto é fato, mas ninguém de fato se preocupa sobre o que acontecerá com você posteriormente, eles querem receber a quantia no final do mês, passear os cachorros e esquecer dos problemas que eles mesmo têm. Acho hipocrisia fingir que somos perfeitos, como a maioria dos funcionários daqui fazem. Minha mãe faz o mesmo e talvez seja por isso que não a suporte. Não estou em uma clínica de reabilitação, pelo menos não é assim que eles chamam aqui. Eles preferem chamar de "Resort Zen", porque temos nossas próprias casas e individualidades. Uma farsa. É como aqueles reality shows lixos que passam na televisão, alguns jovens bonitos são trancafiados dentro de uma residência, sendo assistidos por milhares de brasileiros. Somos vigiados por todos os cantos. Com algumas pequenas diferenças, no Resort a maioria de nós não somos os arquétipos de beleza, somos problemáticos e nada exímios. As câmeras nos perseguiam em todos os cantos, até mesmo os banheiros possuíam câmeras — já aconteceram suicídios dentro deles, e se eu realmente pudesse, acho que já teria feito o mesmo.

Célia termina de falar algumas coisas no telefone que finjo escutar e concordo, gesticulando com a boca numa tentativa de imita-la para a robô inexpressiva. Às vezes queria que ela tivesse qualquer censo de humor, todavia para esses robôs, senso de humor é algo totalmente sem sentido, mas para mim, sem sentido é o jeito que eles vivem e já disse para Célia, certa vez, que odiava o fato de ter que ter Nora como um espécime de babá. Desligo o telefone.

— Por que você estava fazendo aqueles movimentos engraçados com a boca? — Aparentemente, Nora havia encontrado algum senso de humor ao dizer que meus movimentos eram engraçados e realmente deveriam ser. Meu rosto não é algo que agradaria a tantos, sou totalmente normal, mas com uma pele muito branca, o que acaba me irritando quando vou a praia ou qualquer outro lugar, porque volto parecendo algum tipo de camarão. Meus cabelos nunca estão ajeitados e meus dentes de baixo não são retilíneos, às vezes penso em quantas vezes usei aparelho em meus dentes e mesmo assim, jamais consegui de fato arrumar essa parte horrorosa de meu corpo. Não sou galã e jamais quis ser. Diferente de Pedro, que é normativamente belo, eu sou alguém que passaria despercebido. Sou totalmente invisível aos olhos de todos, e às vezes, eu mesmo gostaria de não poder me enxergar no espelho. Sou como um papel celofane.

— Porque ela é chata. — Respondo e Nora apenas continua imóvel, me observando, como se tentasse descobrir algo a mais sobre minha resposta e como se minhas palavras não fizessem o menor sentido para ela.

Engulo o último gole de café de minha xícara e percebo que a ventania continua forte, mas que não irá chover. Convido Nora para passear comigo pelo nosso quase secreto mundo em alguns hectáres dentro da região metropolitana de São Paulo. Aqui é quase uma cidade. Estamos divididos em seis casas por rua. No total, aqui são 25 ruas, sendo que duas delas são inabitáveis, porque são os centros de recreações. Piscinas aquecidas, parques e um grande lago que apelidamos de Lago das Sereias, porque Valentina certa vez disse ter visto uma mulher cantando em uma das grandes pedras que criam formas no lago. Eu mesmo não acredito nesse conto de fadas que ela inventou, Valentina é uma das maiores mentirosas que alguém um dia poderia conhecer, mas é o ressignificado de beleza. Todas as ruas pares possuem uma loja de conveniência funcionadas a partir de robôs, cobrando valores absurdos que somos obrigados a pagar sem reclamar, porque não há outra opção. Existe ainda, na rua dez, um centro médico, na de número vinte, uma escola para os problemáticos desde jovens.

Há ainda uma casa abandonada, na rua treze, uma antes das duas inabitáveis. É o meu lugar secreto, porque de lá, consigo ter uma visão perfeita do lago e também das piscinas onde os problemáticos quase nunca vão; nunca entendi o porquê deles colocarem essas piscinas por aqui, já que mais da metade de nós têm problemas com nossos corpos e não gostamos de sair por aí mostrando-os, com exceção de Pedro, que sabe que tem um corpo bonito.

Nora já está na porta de casa, quando pego meu celular para irmos até a casa da rua treze. A casa de número sessenta e três é a única casa que os demais não entram, dizem que há algum tempo um antigo morador morreu lá dentro brutalmente assassinado, mas é a casa abandonada que tanto amo e por isso, ninguém pode me perturbar por lá. Nora abre um compartimento em seu corpo metálico e me entrega dois comprimidos que assimilo na hora que devo tomar. Eu odeio esses remédios, eles tiram minha única personalidade e me transformam em alguém que não sou e por isto, às vezes, os escondo de baixo da minha língua. Hoje resolvi toma-los porque estou inquieto. Nora tem um semblante sempre perfeito, sem nenhum defeito, mas duvido que ela mesma se ache bonita. Para os padrões robóticos, suponho que ela seja. Seu olho não é tão vazio como os demais robôs daqui, talvez seja porque ela seja minha. Ela usa um cabelo louro para passar mais despercebida, mas jamais trocaria as cores de seu corpo acinzentadas porque eu tenho um grande medo de um dia os robôs se tornarem tão vivos a ponto de se passarem por seres humanos, numa tentativa de ocupar o lugar humano. Já ouvi casos de mulheres e homens solitários que casam com robôs. Para mim, algo um tanto quanto estranho, porque imagine viver ao lado de um ser robótico que não ama de fato e está lá apenas para suprir suas necessidades. Se um dia eu for me casar, espero que seja com alguém que me leve todos os dias até as nuvens e me traga de volta para o mundo real sem precisar de nenhum remédio. Sei que isso aparenta mais como um sonho do que de fato com a própria realidade, mas é isto que torna tudo tão interessante: nos sonhos podemos ser quem quisermos, enquanto na vida real devemos nos contentar sendo alguém que muitas vezes não nos orgulhamos.

Observamos os cantos dos pássaros conforme andamos. O bom de passear com Nora é que não precisamos falar nada para soar mais normais. Posso ser quem sou de verdade e apenas observar. Sempre fui muito observador, talvez seja por isso que tenha um gosto tão antiquado para músicas e uma adoração pelos livros de crimes e assassinatos, gosto de ir resolvendo todas as perseguições e problemas que aparecem e antes mesmo do final, já saber quem são os assassinos e o que de fato aconteceu na história inteira. Houvera uma escritora que fez muito sucesso antigamente, Agatha Christie, e acho que já li todos os seus livros; aliás, os escritores de hoje não escrevem tão bem quanto os de antigamente. Antes, ao pegar um livro, você poderia sentir não somente a capa dura ou brochura, poderia sentir muito do autor. Hoje grande parte dos livros servem apenas para enriquecimento, sem nenhum sentimento do próprio autor passado ao leito. Era algo que gostava ao ler Agatha Christie, sentir quem ela era e aquele desejo surreal de quero mais que ela passava para mim por meio de palavras. Era perceptível a complexidade de sua vida e diretamente dos livros, pude notar que em um momento de sua vida seu marido a deixou, por exemplo. Tenho essa sensibilidade sobre humana e capto as coisas de uma forma surreal. Logo em seguida, em uma pesquisa rápida, não só descobri que ela foi deixada pelo esposo, mas também desapareceu juntando mais de quinze mil pessoas, aviões, atrás dela. Agatha Christie ainda era de libra, assim como eu.

Atualmente pouquíssimas pessoas acreditam que de alguma maneira os astros possam influenciar no ser que você se torna, entretanto eu sempre acreditei ter uma similaridade com alguns por conta de meu signo solar. Sempre gostei de estudar os signos, planetas, apesar de não acreditar tanto como a grande maioria de nós. É interessante ver como a mente humana funcionava antigamente e continua funcionando, sempre tentando encontrar padrões em tudo que vemos. Em dias de nascimento e até mesmo horas. Imagino se um dia terei a possibilidade de encontrar uma pessoa com mesma hora, mesmo dia de nascimento e quem sabe, mesmo local, para assim, descobrir se somos tão parecidos mesmo.

— O dia está tão bonito, não está, Bernardo? — Diz Nora quebrando o precioso silêncio dos meus pensamentos. Ela deve ser programada para depois de algum tempo para falar algo. Assinto com a cabeça e fico calado. Mas ela continua. — Acho muito interessante o comportamento humano, por um lado, quando estou com sua mãe...

— Célia. — Corrijo. Odeio quando alguém, mesmo sendo robótico, associa meu parentesco com essa mulher.

— Exato. Célia gosta de falar e mesmo você, tendo os mesmos genes e sendo fisicamente tão parecido com ela, prefere o silêncio. Acho que eu também.

— Ela é insuportável, Nora. Se pudesse, teria escolhido outra mãe.

— Célia só quer te ver bem.

— Nora, sejamos sinceros, ela mandou você dizer isso. Mas se você fosse humanamente possibilitada de pensar, veria que na verdade, ela só não quer mostrar ao mundo que tem um filho problemático. Célia só liga para o próprio umbigo e quer preservar sua imagem, ela é do pior tipo de ser humano.

— Humanamente possibilitada de pensar. — Ela repete. Peço desculpas. — Não precisa pedir desculpas. Acredito que pensar seja a única prova da existência humana. Penso, logo existo. Se eu não penso, eu não existo?

Por isso tenho tanto medo de robôs.

Chegamos até o meu abrigo secreto. Peço para Nora dar um jeito de abrir a porta, e ela com seus longos dedos o transformam em uma espécie de chave. O melhor dessa casa por aqui é saber que ela é a única que ainda não possui sensor digital. Acho isso incrível, porque muitos não sabem que os robôs possuem essa habilidade de transfigurar o dedo em chaves residencial. Acredito que tenha sido por isso que passaram a utilizar somente chaves com biometria, já que estas, robôs nenhum conseguiriam imitar. Eles não possuem calor e não podem imitar nossa biometria, é claro.

Olho para os lados para ver se não há ninguém observando e presto atenção na câmera, que faz giros de 360º por minuto, espero ela virar para somente então entrar bruscamente pela porta da casa, deslizo para dentro e vejo que a sala está exatamente do jeito que deveria estar. O cheiro de mofo também é forte e é isso que mais gosto. Aqui você sente como deveria ser viver há algum tempo atrás, em uma casa comum e não nessas super-tecnológicas em que vivemos. Procuro o piso falso para pegar minha caixa de cigarro que escondo, passeando com os dedos pelo piso de madeira que ornam perfeitamente com o papel de parede. Encontro, finalmente, o piso falso. Retiro-o vagarosamente e meu corpo anseia pelo cigarro. Meu isqueiro amarelo brilha e o seguro vagarosamente, em seguida, pego a caixa do cigarro e aprecio a beleza dela por alguns milésimos de segundos, só então resolvo abrir. Como de costume, início a contagem de cigarros e noto algo.

Alguém esteve aqui. Falta um cigarro.


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Notas finais do capítulo

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