F de Forca escrita por Lucas Piascentini


Capítulo 3
Capítulo 2




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          O cheiro do mofo continua em meu nariz enquanto tento entender quem mais poderia ter entrado aqui. Mil ideias passam pela minha cabeça, mas ninguém que eu saiba entraria nessa casa abandonada, afinal, quem em sã consciência, morando em casas perfeitas e desejadas por mais da metade da população, iria querer sentir esse cheiro de mofo com exceção do idiota aqui? E o pior, quem conheceria meu compartimento secreto?

Peço para Nora fazer um scan de todos os cômodos da casa. No total são 8 cômodos — dois quartos e dois banheiros no andar de cima, uma sala de jantar, uma sala de estar, um lavabo e a cozinha que tem uma porta para um enorme jardim — e cada um deles passa pelo scan de digitais que Nora possuí. Uma das coisas mais úteis que fiz em Nora foi esse upgrade para que ela se tornasse mais do que um robô comum de casa, ela também possuía algumas características que somente alguns robôs mais específicos investigativos possuíam. Ter conhecido Pedro, na verdade, me ajudara muito nesse aspecto, porque eu jamais sozinho teria conseguido fazer o que fizemos. Ele é uma espécie de hacker e sempre atualiza Nora para algumas funções que alguns robôs mais específicos possuem. O único problema é que alguns robôs tem bloqueio por idade, como o caso de Nora, e mesmo ele tendo uma enorme gama de conhecimento de tecnologia, o desbloqueio é feito por digital e neste caso era a digital de Célia, por isso nem tudo que gostaria que Nora fizesse era possível.

          — Scan concluído com sucesso. Duas digitais encontradas: pertencentes a ... — Nora diz com uma voz mais robótica do que normalmente, e como se tivesse engolido uma engrenagem ou algo, começa engasgar e, de repente, cai no chão.

          Meu coração dispara. Grito o nome de Nora diversas vezes e nada acontece. Tento reinicia-la de alguma forma, mas sou quase um leigo em tecnologia, porque em tudo que faço, Pedro me auxilia. Ela é pesada e movimenta-la atrás de algum botão me causa dores no corpo. Lembro então do assistente que Pedro instalou em meu celular e o tiro rapidamente de meu bolso, estou suando frio, deslizo os dedos fazendo um movimento fechando a mão na tela de meu celular e a assistente conectada a Nora abre. Coloco o meu celular no chão e um mapa holográfico do corpo de Nora aparece no ar, vejo que uma parte central está vermelha e como um tumor, está aumentando gradativamente e de forma muito veloz. Preciso agir rápido. Encosto no holograma na parte do pseudo-tumor e o meu celular diz que um vírus foi encontrado e que algumas partes de Nora estão comprometidas, ele questiona ainda se desejo que os antivírus reajam. Digo que sim e, como em um desenho animado, o holograma mostra mini soldados entrando dentro do corpo dela. Uma barra de status carrega e em menos de dois minutos a limpeza é concluída.

          Alguns minutos passam e Nora não reage. Alguns compartimentos dela haviam sido comprometidos. E se eu tivesse que reprogramá-la inteiramente? Já estou preocupado, até que ela abre os olhos e ergue as costas de prontidão, ficando sentada.

          — Em que posso ajudar? — ela questiona virando sua cabeça e olhando diretamente em meus olhos. Impressiono-me como seu rosto pode ser tão simétrico.

          Abraço-a e ela faz algum comentário sobre como os abraços parecem ser algo reconfortantes para os seres humanos. Não me importo e fico sentado com ela por alguns minutos. Ela parece desconfortável, mas duvido muito que esteja, acho que simplesmente não sabe reagir a ações humanas e, por isso, obviamente não retribui o abraço. Nora é minha companheira e está comigo há muito tempo. Por mais que eu saiba que ela é incapaz de sentir qualquer sentimento por mim, isso não inibe o fato de eu poder sentir carinho e gratidão por tê-la em minha vida. Pois bem, acho que finalmente entendi o motivo pelo qual muitos humanos se casam com esses seres. Não que um dia tenha me passado essa ideia, mas Nora era uma companheira exímia.

          Acendo um cigarro e não peço para que Nora faça um novo scan, ao invés disso, fico sentado tentando formular uma hipótese de como alguém poderia ter descoberto o meu piso falso e saio em busca de câmeras espalhadas pela casa, a essa altura, gostaria de pedir para que Nora fizesse uma procura mais rápida, quem sabe consultar algum mapeamento de todas as câmeras do Resort ou algo do gênero. Mas tenho medo. E se acontecer a invasão de vírus novamente? Um cigarro não some de uma hora para outra. Tentei ainda culpar minha cabeça idiota, provavelmente eu deveria ter fumado um outro cigarro e não contado. Entretanto isso nunca aconteceu anteriormente, além disso sempre fui um dos melhores alunos de matemática, não era possível que eu tivesse errado uma contagem tão simples.

          Sigo procurando por alguma câmera, mas nenhuma é encontrada como o esperado. Algo de errado está acontecendo e não consigo pensar ao menos em uma maneira de conseguir investigar. A única coisa que poderia ter certeza neste momento era que agora o meu local mais secreto e sagrado não era mais tão secreto assim.

 

 

          Já está anoitecendo quando Nora e eu resolvemos deixar o abrigo. Antes de sairmos, verifico a posição da câmera por um buraco em uma das paredes e faço a contagem exata do momento que poderia sair sem sermos notados. É sempre assim, uma rotina. Não acho que se algum dia alguém descobrisse que venho aqui seria punido de alguma forma, tampouco acho que eu tenha conseguido 100% de sucesso todas às vezes que entrei e sai, alguma vez a câmera deve ter me pegado, mas acredito fielmente que os guardas não se preocuparam, afinal, sou só mais um louco tentando encontrar algo de útil para fazer. Sigo essa rotina porque não quero ser um tema muito comentado e nem que acreditem que minhas visitas são tão constantes como realmente são. Posso imaginar que talvez um desses guardas tenha vindo checar o que faço aqui, mas isso ainda não explica descobrirem sobre o piso falso, porque eu mesmo demorei meses para encontrá-lo. Só alguém que já frequenta aqui há algum tempo poderia ter tamanha astúcia para descobri-lo e essa pessoa quis, ainda, mostrar que esteve por lá pegando uns de meu cigarros.

Decido ir seguindo o grande muro que nos cerca, nosso caminho é quase que silencioso, se não fosse pelos gritos do outro lado. No bairro. A falta de água desencadeou em muitas coisas e uma delas foi uma crise extrema. A água que os mais pobres bebem é dessalinizada, uma água concentrada que diferente da água doce, tem um sabor horrível. Pelo menos ela mata a sede dos menos afortunados. Fico pensando em como sou privilegiado, viver no Resort é algo horrível, ainda assim, melhor do que viver do lado de fora.

          Encosto minha digital na porta de casa que libera minha entrada, a sala está perfeitamente em ordem. A televisão enorme e extrafina de casa liga automaticamente exibindo as notícias na televisão. Sempre do mesmo: a fome, a falta de água, as abelhas e borboletas robóticas que agora se reproduzem sozinhas, os Estados Unidos reabrindo as portas após a grande crise que levou a pobreza quase mundial, a China crescendo seu PIB diariamente após a criação dos robôs juntamente a seu parceiro econômico, a Coréia.

          — Alguma coisa para amanhã? — Questiono a televisão.

          — Senhor Rei do Resort — era um apelido que havia dado a mim e que causou grandes risadas na época em que eu e Pedro fizemos, hoje vejo que já perdeu um pouco a graça — você tem uma corrida marcada com Pedro as nove horas. Deseja mandar a ele um correio de voz ou uma mensagem escrita relembrando do evento?

          — Correio de voz, Darwin.

Não gostava de chamar me referir a um objeto que fala somente pelo seu nome — televisão — como a grande maioria, por isso a apelidei de Darwin. Ouço minha voz ao fundo, enquanto a TV calcula juntando todas as palavras para o correio de voz ficar perfeito:

          — Correio de voz enviado. Deseja ouvi-lo? — Respondo que sim e de repente, a voz robótica se torna exatamente igual a minha. Sempre achei isso incrível. — E aí, Pedro? Tudo certo para corrida marcada para amanhã?

          Era estranho como a tecnologia poderia, através de gravação de sons, ter essa voz tão igual a minha. Ao mesmo tempo era espetacular imaginar até onde a tecnologia poderia chegar, imaginar um mundo sem os avanços que temos hoje era como imaginar um mundo incompleto. Pensar em meus autores prediletos, que mal tiveram a chance de conhecer o celular, me fazia pensar em como era possível ter vida sem essas ajudas extras que temos diariamente. Imagine ter que digitar um texto enorme quando tivéssemos algum tipo de discussão, sendo que simplesmente poderíamos pedir para que o Simulador fazer um texto pronto, buscando na internet as respostas necessárias para rebater contra-argumentos. Isto é algo que sempre admirei sobre as máquinas: a capacidade de sempre melhorarem, tão parecidas com a do ser humano. Talvez fosse por isso que também tivesse um grande medo do que esses seres robóticos poderiam se tornar em algum tempo.

          Dirijo-me a meu quarto no andar de cima, as cortinas ainda estão abertas e a xícara de café permanece em cima da escrivaninha. Deito em minha cama por alguns segundos e resolvo tomar meu banho. Sinto sono quando a primeira gota cai em cima de mim, mas meu pensamento não sai do cigarro sumido: onde é que ele poderia ter ido parar? As hipóteses são muitas e, talvez, fosse a hora de contar a Pedro sobre meu espaço secreto, afinal, ele já havia sido descoberto por outro alguém. Talvez ele pudesse me ajudar em algo.

 

 

          Acordo em frente à casa abandonada da rua treze. Meus pés estão calçando uma pantufa e entendo que ainda visto meu pijama. Ainda é noite. Olho para o céu e procuro pela lua que está saindo de trás de uma nuvem, por isso, a sua iluminação não é tão forte e está quase tudo escuro, com exceção de um poste que fica piscando uma luz amarelada. Estou sem Nora, o que é mais estranho ainda. Dou alguns passos para frente e acredito que deva entrar na casa, afinal, deve ter sido por isso que meu subconsciente me trouxe até aqui.

          Como eu vim parar aqui?

          Pergunto-me mentalmente conforme vou caminhando em direção a casa, paro na escadinha de dois degraus porque reparo que a luz da sala está acesa. Sinto o suor escorrendo pela minha nuca enquanto observo-a. Pelo feixe da porta, percebo que há uma movimentação do lado de dentro da casa.

          Olho de relance para os meus pés. Estou suando frio e meu estômago se embrulha, um líquido vermelho mancha as solas de minhas pantufas. Sinto medo, um medo que não sentia há bastante tempo. Devagar, e manchando cada vez mais minhas pantufas, caminho para a porta. Encosto minha mão de leve e meu corpo, como se eu não o controlasse mais, empurra a porta de entrada.

          Deparo-me com um braço jogado no chão de madeira, uma poça de sangue rodeia aquela parte humana, por onde enxergo o sangue escorrendo e chegando até os degraus da escada que mancharam meus pés. Vejo uma figura, que assimilo pela cor da pele ser robótica, seus movimentos indicam que ela está correndo em direção a porta da cozinha e entendo: peguei-a em seu ato mais horrendo. Tento correr atrás dela, mas não percebo que o piso do qual eu guardo meu cigarro está aberto e tropeço no pequeno vão. Lanço-me na frente do braço e sinto o cheiro de podridão chegando pelas minhas narinas. Minha camisa já está suja de sangue a essas alturas, mas entendo, apesar de todo o medo e do meu corpo querer fugir, que, talvez, eu seja o único que possa descobrir quem é esse robô. Levanto-me rapidamente e começo a correr, em uma tentativa de perseguir aquele ser que acabara de sair pela porta de saída, ele não pode estar longe, penso. Dirijo-me ao jardim na parte traseira da casa, a lua brilha do lado de fora, as nuvens já foram embora e ela ilumina a noite. Lua cheia. O cheiro da dama-da-noite limpa minhas narinas e procuro, por todos os lados, mas não consigo enxergar o ser robótico.

          Rapidamente corro pelo jardim, minha cabeça segue vibrando e se mexendo perdidamente por todos os lados, estou de olhos cerrados, tentando enxergar qualquer tipo de vulto, quando minha boca é tampada por uma mão gelada, e por mais que eu tente lutar contra ela, meus braços não têm a força suficiente; luto, tentado retira-la de mim enquanto tento enxergar algo pelos meus olhos. A lua ilumina meus movimentos, mesmo assim não consigo fazer nada. Piso o mais forte que posso no pé do ser que me aperta e não ouço ao menos um grito de dor, pelo contrário, meus pés doem, pois a lataria robótica afunda um pouco neles. Estou adormecendo e ficando cada vez mais fraco, começo a desistir e deixar que o sono me consuma. Fracassei; mas o que eu pensara? Que poderia vencer uma máquina projetada para combater coisas que os humanos não são capazes? Que pisar no pé de um robô faria algum dano a ele? Meu corpo fica mole e começo a cair e sinto a lataria me deixando chegar mais perto do gramado, vagarosamente, antes de fechar os olhos tento ver seu rosto. Novamente, não consigo. Meus pés doem e meu joelho sangra, minha queda havia aberto um pequeno sangramento. Quem se importa? Estou derrotado e sujo completamente de sangue.

 

 

          Desperto em minha cama, o alarme toca desesperadamente e olho para o relógio. Vinte para as nove. Já estou atrasado para encontrar Pedro. Corro para o banheiro e certifico-me que minhas pantufas não estão manchadas de sangue. Foi só um pesadelo. Digo a mim mesmo em meu pensamento e acredito fielmente que não passara de um sonho lúcido. Parecia que eu havia vivido cada momento daquele desespero. Entro no chuveiro e deixo a água quente escorrer pelo meu corpo, não lavo o cabelo e apenas o molho. Passo o sabonete pelo meu corpo e reparo que meu joelho está ralado, mas não sangrando. Não consigo me recordar do local exato que poderia ter acontecido isso e não quero pensar que existe alguma possibilidade de ter sido ontem a noite. A água escorre sobre ele.

          Desligo a função água do chuveiro, e ele trocar para função secador, um ar quente começa a sair dele e começa a me secar. Em questões de segundos, já estou seco e saio. Coloco a primeira roupa que encontro em minha frente, um conjunto de moletom cinza. Não arrumo meu cabelo e desço as escadas correndo, pego uma maçã na fruteira e vejo Nora limpando o tapete da sala, ela me deseja um bom dia e não respondo, saio correndo de casa e empurro a porta com força, obviamente ela não bate, uma espécie de bloqueador para-a e deixa que ela se feche sozinha, de forma vagarosa.

          Chego sem ar até o meu ponto de encontro com Pedro e ele está com cara fechada, vestindo uma bolsa do lado esquerdo de seu corpo. Sei bem o motivo: estou atrasado e uma das coisas que Pedro não consegue tolerar é atrasos. Preparo meus ouvidos para ouvir as reclamações dele sobre meu atraso de dois minutos e, dito e feito, ao chegar a seu lado, ele praticamente acaba comigo. Tento sempre ser o mais compreensivo possível com Pedro, apesar de ele não ser uma daquelas pessoas compulsivas que se preocupam 24hrs por dia com germes e medo de acumula-los, ele é o tipo de pessoa que já chorou por acordar na madrugada e encontrar uma panela suja na pia de sua casa. Organiza compulsivamente e metricamente cada objeto da sua casa, por exemplo, a planta que fica perto de sua televisão fica há exatamente 45cm de distância dela. Conviver com alguém que tem T.O.C. requer muito de você: é necessário ser uma pessoa extremamente organizada e, principalmente, compreensível com as raivas, choros, por motivos que muitas vezes parecem pequenos para pessoas chamadas de normais. O problema é que ninguém de fato é normal e não entendemos isso. Aquelas pessoas que só não conseguem esconder suas normatizações que são questionadas e julgadas a todos os minutos, tento sempre entender as silhuetas dos seres, somos diferentes e isso que nos faz uma raça tão potente e inteligente, o problema é quando passamos ao invés de buscarmos aceitar e compreender, passamos a encontrar formas de julgar e apedrejar, tentando transformar aquele ser imperfeito em algo normativamente chamado de perfeito. Acredito que respeito muito Pedro.

          — Desculpa, Pedro. Juro que não vou mais me atrasar.

          — É a décima quarta vez que você diz isso, Bernardo. Como posso acreditar em você?

          Uma outra coisa sobre Pedro é a sua memória de elefante. Ele lembra de tudo, conta tudo, e com ele acabei pegando algumas manias, por exemplo: de contar o número de cigarros que tenho. Ele também odeia contatos físicos, algo que passei a gostar cada vez menos convivendo com ele.

          Começamos a correr e ele começa a falar de Heitor, seu robô. Pedro já teve diversos robôs durante todo o tempo que o conheço, ele acaba sempre encontrando algum problema neles. Alguns limpam demais, alguns de menos, alguns se intrometem demais nas “manias” de Pedro e outros não as fazem completamente – porque ele não deixa. Heitor é diferente e Pedro parece gostar bastante dele, aparentemente Ruth, a nossa psiquiatra, e os pais do programaram o robô de uma maneira que Heitor o ajude nos afazeres domésticos, mas sem muita intromissão, porque ele gosta de fazer muitas coisas sozinho. Heitor também só trabalha quando Pedro está por perto, porque caso algo fuja do que ele quer, o problema pode ser grande, crises de ansiedade que o levam a perder unhas.

          Já estamos cansados quando paramos em um dos bancos espalhados pelo Resort para descansar. Convido Pedro para tomar café em casa, no caso, na casa dele mesmo, porque ele odeia ir em outras casas. Ele aceita e descansamos uns dez minutos, conversando sobre coisas diversas. Uma outra coisa que gosto nele é que Pedro sempre tem assunto, por mais que eu queira ficar quieto às vezes, ele acaba encontrando algo interessante para falarmos sobre e não como Valentina, que a grande maioria das vezes fala sobre algo nada interessante. Resolvemos nos levantar e partir para a casa dele.

          Quando estamos chegando na casa de Pedro, observo uma das fontes jogando água e a imagem daquele braço sangrento aparece em meus pensamentos, pisco algumas vezes tentando apagar aquela cena de minha mente e quando percebo, ao invés de água, sangue escorre pela fonte d’água. Grito alto, em desespero, e Pedro se assusta.

          — Você está bem? — Ele me questiona.

          — Desculpa, Pê. É que aconteceram algumas coisas estranhas ontem. — Respondo.

          — O quê, Bernardo? — Digo para entrarmos primeiro e entramos na casa dele. Ela está perfeitamente em ordem, vejo a planta que com certeza está metricamente separada da televisão. Heitor está sentado no sofá da sala e diferente de Nora, ele parece muito com um humano, o que lhe entrega são os olhos vazios. — E então? — Ele me questiona sentando no sofá.

          — Vou ter que te contar do começo. — Respiro fundo, porque terei que explicar primeiro sobre a residência da rua treze. — Sabe aquela casa na treze?

          Ele demora um tempo para responder, como estivesse visualizando um mapa do Resort em sua cabeça e calculando a posição exata da casa.

          — Sim! Aquela que um rapaz morreu há vários anos, não é? Dizem que ela é assombrada. — Ele me responde.

          — Exato. Bem, você sabe que nunca acreditei em fantasmas, não é? — Pedro assente com a cabeça e continuo — então, basicamente eu estive fazendo de lá uma segunda residência para mim.

          — Como assim? — Ele diz aparentemente confuso — uma segunda residência?

          — Eu descobri que Nora podia abrir portas há algum tempo atrás e resolvi entrar lá, sempre gostei de coisas mais fantasmagóricas e, lá dentro, pude sentir a sensação de viver no passado e você sabe que odeio o presente, então eu me senti realizado. — Ele permanece focado, prestando atenção e assimilando cada palavra que digo — foi passando dias, semanas e meses, e fui descobrindo muitas coisas lá. Tem um cheirinho de mofo, um piso de madeira, moveis antiquados, enfim. Mas aparentemente alguém descobriu que frequento lá, e eu tenho um compartimento secreto, onde guardo os cigarros que minha mãe me traz, e aparentemente, alguém roubou um cigarro meu.

          Conto para ele detalhadamente o restante, sobre meu pesadelo, e principalmente sobre Nora. Sobre o que aconteceu quando ela escaneou e ele ficou extremamente chocado, disse que Nora estava programada com os melhores anti-malwares — que eu nem sabia o significado dessa palavra —, mas ele me explicou que era um tipo de código malicioso online, ou seja, seria quase impossível expô-la a vírus. A pessoa que protegera o local das digitais deveria conhecer muito sobre tecnologia para conseguir implementar um vírus tão potente.

          Há essas alturas, já terminei umas duas xícaras de café que Heitor trouxe para gente, comemos algumas barras de cereais e é quando Pedro me questiona:

          — Podemos ir até lá, Ber? — Só duas pessoas me chamam assim, uma delas é Pedro e a outra é minha mãe.

          Assinto com a cabeça, Pedro chama Heitor, pois afinal, precisaremos de alguém para liberar a entrada. Pedro vive na rua dezessete, então chegar na treze não seria muito longe. Observo novamente a fonte d’agua e dessa vez não vejo nenhuma gota de sangue escorrendo dela. Seguimos silenciosamente. Penso em como é estranho ficar calado conforme andamos com pessoas que gostamos muito, diferentemente de como é com Nora, mas prefiro ficar silencioso do que forçar algum assunto igual algumas pessoas fazem, afirmando informações desnecessárias sobre o clima, por exemplo. Também é um grande milagre Pedro estar em silêncio, provavelmente ele deve estar pensativo, por isso, jamais forçaria algum assunto.

          Chegamos a rua treze e há uma pequena movimentação por lá. Andamos para mais perto e posso enxergar algumas faixas amarelas com riscas pretas ao redor da casa, há ainda algumas pessoas por ali. Eu, Pedro e Heitor começamos uma pequena corrida para chegarmos o mais depressa possível a casa. Minha respiração está rápida e começo a me recordar de cada pedaço do meu sonho e me questiono se havia sido somente um sonho. Se eu estava errado sobre algo. Há policiais por todos os lados. Busco algum rosto conhecido. Quem sabe Valentina. Vejo minha psiquiatra, Ruth, cabelos que lembram o fogo conversando com alguns deles. Tento passar pelo meio da multidão para chegar até ela. Um desespero me corrói por dentro e como se eu estivesse com o semblante de culpado estampado em minha cara, eu me empurro entre as pessoas. Ela conversa com alguém que suponho ser um detetive ou algo do gênero. Uma moça chora enquanto conversa com os policiais. Alguma coisa aconteceu por aqui, disso eu não tenho dúvidas. Finalmente, consigo alcançar Ruth e a seguro pelo braço.

          — O que aconteceu? — Pergunto a Ruth puxando-a, interrompendo seu testemunho, ou seja, lá o que for.

          — Não me aperte, Bernardo. — Ela diz, de forma calma que inclusive me recorda um pouco minha mãe, e eu a solto imediatamente. A cara dela é triste. Ela respira fundo e me leva para um canto menos movimentado, pedindo licença ao policial. — Eu não deveria te contar isso, Bernardo, mas mais cedo ou mais tarde você vai descobrir... Um corpo foi encontrado dentro da casa hoje pela manhã. — Fico perplexo, em silêncio, continuo escutando-a, mas as palavras parecem vasarem pelo meu cérebro, não quero acreditar no que ela diz e acredito que ela percebera meu nervosismo — eu preciso que você tenha paciência, vai ficar tudo bem.

          Ela me abraça, sinto o calor dela em meu corpo e percebo que estou tremendo. Eu jamais poderia ter imaginado que dentro do meu lugar secreto, da casa de cheiro de mofo, algo tão horrendo um dia aconteceria.

          — Eles sabem que você esteve dentro da casa, Bernardo. — Ela complementa, me soltando vagarosamente de seu abraço — Existem várias possibilidades, eles estão discutindo a hipótese de suicídio, mas não descartam nada, pode ser até assassinato.

          Eu não quero acreditar no que chega em meus ouvidos. Não quero acreditar que, em caso de assassinato, eu seja o primeiro a ser ouvido e o primeiro que pode ser indiciado como culpado, afinal, eu e a pessoa que roubara meu cigarro, éramos as únicas que um dia frequentaram este lugar. Pelo menos, até onde eu tinha conhecimento.

          — E tem mais uma coisa. — Vejo que ela parece ter medo para continuar seguindo a fala e a voz já parece um pouco mais trêmula. Procuro por Pedro na multidão, e de praxe, ele não está nela. Pedro odeia várias pessoas juntas. Mas percebo, mesmo de longe, que ele está aos prantos. Entendo na mesma hora, e mesmo antes de Ruth terminar de concluir, eu já sei de quem é o corpo. — O corpo encontrado nesta manhã é o de Valentina.


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