Limits escrita por Lillac


Capítulo 1
. dois


Notas iniciais do capítulo

Para a galera que não lê os disclamaires (como eu), gostaria de repetir: essa história contém bastante violência, e aborda temas como suicídio e ansiedade. Se te deixa desconfortável, por favor não leia.

Caso não tenha ficado claro na sinopse, a história focará IGUALMENTE em Jercy e Pipeyna, ou seja, nenhum deles será casal "secundário". Se você está aqui apenas por um deles... eu espero que seja paciente para acompanhar a história do outro também.

Bem, acho que é isso. Espero que gostem!



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Do que consiste em uma vitória?

Melhor ainda: por que você luta?

O que leva as pessoas à reagirem? O que faz o medo espalhar-se no corpo de alguém ao cruzar com uma figura suspeita em uma rua escura? O que fazia os músculos enrijecerem-se, as mãos formigarem, o suor brotar na pele? Qual era a razão por trás da palpitação cardíaca, da boca seca, dos sentidos apurados em uma situação de risco?

Por que, ao ser confrontado, o garoto na rua erguia os braços para proteger o rosto? Por que a reação inicial à uma agressão é procurar ajuda ao redor?

Por que motivo os lutadores nos ringues atacavam mais forte depois de receberem o primeiro golpe? Existia algum tipo de mecanismo que injetava adrenalina líquida nas veias de uma pessoa em perigo? Mesmo sendo um perigo forjado – ou havia algo mais?

Reyna girou a embalagem de ketchup na mão, observando a validade. Era metade do mês, e os condimentos haviam entrada em promoção no dia anterior, o que significava que provavelmente estavam perto de vencer. Ela virou-se para o lado, capturando o olhar distraído de Jason. Ele estava debruçado no carrinho de compras, os braços musculosos dobrados. Havia perdido o dia de cortar o cabelo de novo, o que significava que alguns fios loiros muito claros decoravam sua testa de forma sutil. Os óculos haviam escorregados até metade do nariz, dando à Reyna a visão perfeita dos olhos azuis hipnóticos.

Jason Grace era atraente. Qualquer um podia ver isso. A beleza dele estava ali para todos verem. Mas, às vezes, ele era tão absurdamente bonito que beirava o assustador. Como ali, parado debaixo das luzes brancas claras demais do supermercado, calças de moletom cinza, chinelo e camiseta preta que grudava aos músculos, e cabelo amassado de um cochilo longo.

— O que acha de macarronada? — Reyna perguntou.

Jason piscou preguiçosamente, ainda sonolento. Ele estreitou os olhos para ler a embalagem.

— Vence hoje?

Reyna estalou a língua.

Ele ficou calado por um momento, provavelmente considerando as opções. Reyna sabia que não haviam muitas: Thalia precisara usar uma quantia muito grande do salário para consertar um vazamento inesperado no banheiro, e aqueles eram os últimos resquícios da mesada de Reyna. Os armários da cozinha dos Grace, bem como os dela, estavam deprimentemente vazios (ou, quem sabe, Reyna pudesse encontrar um sachê de chá de camomila perdido no fundo, se procurasse bem).

(Mas esse sachê provavelmente também estaria vencido).

— Vamos levar — Jason concluiu.

Ele empurrou o carrinho ao longo do corredor. Eles só haviam colocado um pacote de arroz, sal, e carne moída. Teria que ser o suficiente para aguentarem até o final do mês.

Jason dizia que andar com carrinho, mesmo sem ter dinheiro para comprar muita coisa, era como uma forma petulante de ironia.

Reyna só gostava de vê-lo inclinado, com os ombros tensionados e os braços dobrados.

Medo. Era esse o instinto natural das pessoas? Hylla certamente pensava assim. Medo era sua forma de governar, dominar – os outros, e a si própria. Costumava dizer que um líder era capaz de fazer seus seguidores se ajoelharem com algumas palavras. Um chefe o fazia com um simples olhar. Reyna não achava que a irmã precisava fazer mais do que simplesmente colocar os pés no lugar que queria subjugar.

Se era esse o caso, então o motivo primordial pelo qual elas lutavam eram o medo? Mas medo de quê? Do desconhecido, do abandono – ou da dor em si?

Parecia surreal para Reyna que alguma parte de sua consciência ainda tivesse medo de dor. Não. Deveria existir algum outro motivo. Alguma força maior a impulsionando.

Eles alcançaram o caixa. O atendente atrás dele parecia ter o dobro de sua idade e metade das horas de sono que ela tinha. Ele jogou os produtos de qualquer jeito no balcão e esperou o preço aparecer calculado na tela. Reyna o observou.

Dor física não era o único tipo de dor.

De que forma aquele homem lutava contra seus próprios medos todos os dias? O que impulsionava?

O que fazia as pessoas lutarem?

Ela lembrava-se da mão enluvada envolvendo seu queixo, o olhar inquisitivo: um misto de repulsa e curiosidade, como se ela e Hylla fossem dois experimentos muito interessantes, e ao mesmo tempo grotescos.

— Reyna? — Jason chamou, parecendo perceber sua distração.

Mas ela já estava retirando o dinheiro da carteira. Quando a comida foi colocada em um saco plástico, Jason despediu-se educadamente do atendente, que sequer olhou na direção deles.

Até a noite em São Francisco conseguia ser quente. As luzes neons da fachada do supermercado iluminavam o calçamento sujo. Ao lado do estacionamento de carros, um velho senhor com o cabelo grisalho embaraçado e roupas cinzentas balançava um copo de metal aos pedestres. Ela teve o instinto de checar o bolso traseiro, mas lembrou-se que não tinha moedas.

O que levava pessoas como ele a lutarem? O que os fazia abrir os olhos todos os dias e esperar que algumas moedas fossem jogadas em sua direção? A solidão – a fome?

Ou alguma outra coisa completamente diferente?

Jason e ela caminharam juntos pelo percurso familiar. Geralmente, não haviam muitos carros na rua àquela hora, mas era uma sexta-feira e a cidade rugia com os adolescentes pisando fundo nos aceleradores, passando por eles com as janelas abaixadas e alguma música pop rugindo dos aparelhos de rádio.

Ela sabia que uma garota da escola deles estava dando uma festa naquele fim de semana também, mas não conseguia lembrar-se do nome dela, para dizer a verdade. Se perguntasse à Jason, ele provavelmente saberia.

Mas, honestamente, Reyna não se importava.

O grupo da turma no aplicativo de mensagens deveria estar sendo bombardeado naquele mesmo momento, onde o havia deixado carregando encima do sofá.

Claro, eles podiam aparecer lá – ninguém os expulsaria. Mas o que ela e Jason, dois deslocados fariam uma festa que prometia ser “incrivelmente badalada” e “épica”? Sentar em um sofá e brincar com o gato da anfitriã?

Eles passaram por um parquinho, sombriamente vazio. Alguém deveria ter acabado de sair de um dos balanços, porque o brinquedo balançava na noite silenciosa, a corrente enferrujada rangendo. Sua mente viajou para uma memória antiga, empoeirada. Reyna sentiu como se estivesse abrindo as próprias lembranças com as mãos, rasgando a camada que as mantinham enterradas no fundo de sua cabeça, à força.

Ela lembrou-se de um parquinho parecido em uma cidade diferente quando ela era outra pessoa.

Ela lembrou-se de vestidos esvoaçantes e raspadinhas de morango, de tardes quentes e ensolaradas e do som da risada de Hylla quando caíra do balanço.

E então lembrou-se de fuzis de guerra presos à paredes e cadeados grossos – e som de lâminas sendo afiadas no porão.

Reyna arrastou a própria consciência de volta para o presente de calças jeans, ketchup quase vencido e uma cidade barulhenta, e tão, tão solitária.

— Espera. — Jason sinalizou, colocando uma mão no antebraço dela, e Reyna não soube dizer se ficou mais estática pela súbita seriedade na voz dele ou pelo toque da pele quente de Jason com a dele, os pelos de seu braço eriçando-se com o contato.

Ela engoliu em seco.

Sob a luz de um poste próximo, Reyna viu os olhos de Jason varrendo o parque vazio.

— É ali — Reyna apontou.

Ela tinha visto também. A sombra irregular movendo-se na extremidade do muro que separa a quadra de areia do resto do parque. Parecia tremeluzir sob a luz.

— Jason — ela tentou, mas sabia que era um caso perdido.

Jason Grace jamais deixaria que nada do tipo acontecesse sob seu nariz, mesmo que fosse só uma suspeita. Ela deixou a sacola de compras sobre o balanço barulhento, rezando aos deuses para que não fosse roubada, e seguiu-o enquanto Jason se esgueirava junto ao muro.

Ela viu o relance de uma figura vestida em uma jaqueta verde-musgo e o cabelo artificialmente laranja quando eles contornaram o perímetro.

Mas foi só o que ela conseguiu ver antes de um borrão se aproximar do seu rosto tão rápido que ela não conseguiu distinguir o que era. Longe do seu campo de visão, Jason soltou um grunhindo dolorido.

Reyna recuou, dobrando o torso e desviou do pedaço de madeira que tentara amassar seu rosto. A própria da mão que segurava o pedaço de madeira soltou um palavrão.

— Merda, a vadia é rápida.

Haviam muitos adjetivos capazes de descrevê-la. Irrefutavelmente “vadia rápida” também era um deles.

Ela ergueu os punhos até estarem protegendo o próprio rosto e dobrou a perna esquerda um pouco à frente do rosto. Seus olhos vasculharam o local. Ela contou ao menos doze figuras de pé distintas na meia-luz, mas sua atenção foi rapidamente roubada pelo segundo grunhindo de Jason. Virando o rosto para o lado, viu-o encurralado contra o muro, com três encapuzados em torno dele.

Jason segurou o punho do primeiro, torcendo-o, mas o segundo o acertou com um murro potente na boca, e o terceiro o agarrou pelo cabelo e bateu com sua cabeça no muro. Os olhos de Jason giraram nas órbitas, mas ele rangeu os dentes. Pegou o primeiro pelo antebraço e inclinou-se, encostando o próprio ombro com o torso dele e jogou-o para cima dos outros dois, que desviaram com facilidade – o garoto feito de projétil humano não teve tanta sorte, acertando o asfalto duro com um baque doloroso.

Reyna teria admirado melhor se não estivesse sendo rudemente interrompida.

A garota com o pedaço de madeira partiu para cima dela de novo, dessa vez flanqueada por mais três, e Reyna decidiu que só podia rezar para que Jason ficasse bem por si só não quisesse perder a própria cabeça. Ela desviou de um segundo golpe, mas um par de braço segurou-a por trás, imobilizando-a parcialmente, e só naquele momento ela percebeu que uma das garotas não era bem uma garota.

Era só um garoto magro e franzino.

Um garoto magro e franzino com um soco inglês.

O pedaço de madeira a acertou atrás da cabeça e Reyna ao menos conseguiu impedir a si própria de morder a própria língua.

— Ei, pirralhos — o garoto com o soco inglês falou —, se me disserem o que merda estão fazendo aqui, não precisam apanhar. Tanto.

Reyna observou a situação. Um dos lados do rosto de Jason estava inchado. Aquilo com certeza deixaria um olho roxo no dia seguinte.

Mas aquilo não era normal. Reyna não era nenhuma experiente em gangues de delinquentes, mas tinha quase certeza que eles não se reuniam em bando assim atrás de muros suspeitos por qualquer motivo e batiam em quem chegava perto demais. Se estivessem fumando ou bebendo, eles teriam simplesmente mandando que ela e Jason vazassem quando se aproximaram.

Foi só então que Reyna notou a figura no chão.

Calças pretas, jaqueta presa, botas de couro com fivelas e-

Thalia Grace.

Thalia Grace, encolhida no chão, com uma fratura exposta em um braço, e sangue acumulado embaixo da própria cabeça. Ela parecia perigosamente no liminar para a inconsciência.

Infelizmente, Jason seguiu o olhar dela.

— Thalia. — Ele murmurou.

— Ja... — Thalia ofegou. — Jason...? O que você-

Uma das garotas pisou na barriga dela com as botas de salto alto. Thalia golfou sangue e arfou, e Reyna soube que havia fraturado mais alguma coisa.

O olhar de Jason se acendeu como um incêndio em uma floresta. O rosto dele se contorceu, os dentes rangendo como de um animal selvagem, os punhos já ensanguentados se fechando.

O garoto que o estava segurando pelo pescoço nem teve tempo de reagir. Jason livrou-se das mãos dele, agarrou-o pela gola da camiseta e ergueu-o no ar.

— Eu não me importo quem você é — ele rosnou, cada músculo do corpo tremendo de raiva —, mas ninguém toca na minha irmã.

Um segundo delinquente avançou na retaguarda dele, mas Jason girou nos calcanhares e arremessou o garoto que estava segurando nele como uma bola de boliche. Os dois caíram no chão, embolados.

Por que você luta?

Seria o medo de morrer? A repulsa pela dor?

Ou a vontade de salvar outra pessoa?

Reyna não tinha uma resposta para essas perguntas. Sequer sabia se existia uma.

Mas quando Jason chutou a cabeça de um dos garotos caídos com tanta força que ele girou, ela não pensou muito nesse questionamento. Alguém deferiu uma joelhada nela, e Reyna agarrou a panturrilha da garota e puxou, fazendo-a esticar a perna, e então girou. A garota perdeu o equilíbrio e caiu ao chão. Reyna deferiu um chute certeiro em sua costela.

Quando outra se aproximou, Reyna acertou-a com um soco no queixo que a mandou mancando para trás, e então chutou-a no rosto também, ouvindo o som de alguma coisa saindo do lugar no rosto da garota.

Logo, Reyna não fazia mais muita ideia do que estava acontecendo. Alguém a acertou no joelho, e ela respondeu torcendo o pulso da pessoa com uma mão e quebrando seu braço atrás das costas, o som reverberando em seus ouvidos um segundo antes de ter a boca socada e sangue espalhar-se, preenchendo sua boca de onde havia mordido a língua.

Ela registrou alguém a chutando na cabeça, e a madeira acertando sua costa com tanta força que quebrou. Também pressionou a cabeça de um garoto no asfalto até sangue começar a sair do nariz dele, empoçando. Ela tentou socar o rosto de uma garota que desviou de última hora e fez Reyna acertar o chão, o crack quase imediato lhe dizendo que havia quebrado a mão.

Mas a adrenalina quase não a permitia sentir dor. Ela ignorou a mão quebrada e avançou de novo. Sentia o sangue empapando o queixo, o pescoço, e pingando na roupa. A cabeça latejava, o ar quase não entrava em seus pulmões, ela havia perdido Jason no meio da confusão e-

E aplausos.

Gélidos, lentos e calculados.

O lugar inteiro ficou em silêncio.

A garota que Reyna estava sufocando com uma chave de braço congelou.

Só um som permaneceu no silêncio: o de Jason acertando repetidamente o rosto de um garoto com murros certeiros. Cada vez que retraía os punhos, eles vinham mais ensanguentados, pingando no asfalto. O rosto de Jason parecia algo completamente diferente do que Reyna jamais havia visto.

— Ei, ei. Já está bom... — o garoto com o soco inglês, o que estava batendo palmas, disse, em um tom calmo. Quando Jason não lhe deu ouvidos, a expressão dele mudou completamente, sobrancelhas se franzindo e mergulhando seu rosto em uma sombra sinistra — eu disse que já está bom.

Reyna tentou se mover, mas, subitamente, dois pares de mãos haviam surgido, segurando-a no lugar, e Jason foi afastado do garoto por um soco certeiro no meio do rosto que o mandou para trás com a potência de uma bala.

Jason atingiu o asfalto, e o garoto suspirou. Trouxe a mão para junto de si, tirando um paninho do jeans e limpado o sangue do soco inglês com uma expressão descontente.

— Ela é sua irmã — não foi uma pergunta. — Interessante.

Jason ergueu o tronco, apalpando o rosto.

— Fica longe dela.

— Quem deveria falar isso sou eu — o garoto riu — sua irmã foi quem partiu para cima de nós.

— Doze contra um me parece dificilmente equivalente — Reyna acusou.

— Você acha que existe justiça no mundo. Fofo. Eu me pergunto que outro tipo de coisa sem noção você tem para dizer — ele enfiou as mãos nos bolsos. — Uau, isto que é uma cena.

Uma franja de cabelo preto cobria parcialmente um lado de seu rosto, e quando ele se virou para ela, Reyna viu uma linha de cicatriz se contorcendo quando ele sorriu.

— Sua irmã é durona — disse — se chegarem no hospital a tempo, pode ser até que sobreviva. Quanto a você Jason Grace... — ele ponderou por um momento, parecendo se divertir com a situação —, eu não acho que essa será a última vez que vamos nos encontrar.

— Ela sabe que você está aqui? — Reyna perguntou, entredentes.

O garoto a observou como se Reyna houvesse crescido uma segunda cabeça. E então pareceu compreender. Sua boca se contorceu em desgosto.

— Eu não preciso da permissão dela.

— Me pergunto o que ela diria sobre isso.

— O que ela conseguiria dizer enquanto eu estivesse esmurrando o rosto dela, você quer dizer? — Ele ergueu uma sobrancelha. Ou talvez fossem as duas. Era difícil dizer. — Eu não tenho tempo para você, garota. Deveria estar feliz por estar fora disso. Ou será que... — um sorriso sórdido tomou forma em seu rosto, o olho dele viajando dela para Jason —, você encontrou sua razão para lutar?

Jason pareceu conseguir sair de seu transe de ódio por um momento. Ele a encarou confuso.

— Do que ele está falando?

Reyna precisou falar por cima do nó que havia se formado em sua garganta:

— Eu não faço ideia.

— Claro que não faz — o garoto riu. Ele gesticulou com uma mão —, vamos, seus merdas. Deixem os pirralhos tentarem salvar a vida dessa vadia.

Jason fez menção de avançar de novo, mas Reyna estava ao lado dele antes que pudesse. Ela sussurrou:

— Thalia primeiro. Babacas depois.

Ele assentiu.

────────────────────

Reyna achou que eles não fossem conseguir, mas, aparentemente, o universo estava ao favor deles naquele dia.

Ou, possivelmente, devesse-se ao fato de que ninguém na rua ousou chegar perto dos dois adolescentes ensanguentados carregando uma jovem adulta parcialmente consciente com um braço quebrado pelas ruas, e por isso o caminho ficou bem livre.

Thalia foi imediatamente levada para emergência, e Reyna (que tinha os ferimentos menos expostos) ficou um momento para trás para dar os dados à recepcionista brevemente.

Depois de receber a notícia de que, felizmente, o golpe à sua cabeça não havia fraturado seu crânio e tudo o que ela precisava eram alguns pontos e uma tala na mão (e vários, vários analgésicos), Reyna reuniu-se a Jason novamente. Ele estava sentado em banco do corredor, cotovelos sobre os joelhos e rosto escondido nas mãos enroladas em ataduras. Havia um grande curativo em sua têmpora, e ele havia levado alguns pontos do lábio inferior.

— Como ela está?

Jason não respondeu com palavras. Apenas ergueu o olhar desolado para ela. Reyna respirou fundo. Não era a pessoal mais emocionalmente empática do mundo, mas colocou uma mão (a mão boa) no ombro dele e tentou afagar. Jason fechou os olhos, pálpebras trêmulas, e deslizou um pouco mais para perto no banco.

Eles ficaram em silêncio pelo que pareceu uma eternidade. Reyna não sabia bem o que dizer. Bom trabalho? Belo soco?

Ou, quem sabe, sua irmã é muito durona por ter sobrevivido à um linchamento?

Melhor ainda: ei, qual será que era a daquele cara falando que vocês vão se ver de novo? Que louco, hein!

Haha, não.

A noite caiu por definitivo e eles foram obrigados à voltarem para casa.

Tecnicamente, o apartamento de Reyna ficava duas portas depois do deles, mas...

... mas Reyna não queria passar a noite sozinha. Não depois de ter sido basicamente espancada.

O prédio era uma espelunca caindo aos pedaços, com o aluguel mais barato da redondeza e encanamento que parecia ser reparado com durex e fita adesiva. Jason segurou a porta para ela quando eles entraram. O sofá puído parecia uma péssima opção para qualquer uma de suas costas bagunçadas, então, quando Jason rumou para o quarto dele e Reyna acomodou-se no de Thalia...

Ela percebeu que haviam deixado o ketchup no parquinho.

Ah, bem. Era meia-noite.

Ele já estava vencido mesmo.

────────────────────

Na manhã seguinte, ela acordou com alguém batendo insistentemente na porta de metal barato e barulhento. Jason saiu do quarto do lado oposto do corredor quase ao mesmo tempo, e ela partiu para fazer o café na cozinha enquanto ele atender à porta.

— Jason Grace — uma voz altiva, e meio intimidadora, soou. — Que merda é essa?

Jason soou metade assustado e metade ainda dormindo quando respondeu:

— Annabeth?

De onde estava, coando o café, Reyna viu uma garota alta, com o cabelo loiro cacheado e volumoso caindo em cascatas sobre os ombros, entrando no apartamento minúsculo. Estava vestida com shorts e uma camisa de botões quadriculada preta e cinza de mangas longas.

— Oi — cumprimentou.

Os olhos cinzentos da garota se arregalaram quando a viu. Reyna tinha certeza que não se conheciam.

— Annabeth Chase — ela se apresentou, relutante — eu... sou uma amiga.

— O hospital — Jason concluiu, apoiando-se na parede —, eles ligaram para você.

— Eu sou contato de emergência da Thalia — Annabeth parecia estar explicando mais para Reyna do que qualquer outra coisa — e eu quero saber o que aconteceu.

Jason suspirou. Sem os óculos, Reyna conseguia ver as linhas de preocupação que ele tinha em torno dos olhos – bem, olho. O outro estava coberto por um hematoma.

— É melhor você sentar — disse — você quer um café? Eu posso fazer.

— Ei — Reyna balançou o coador — eu estou fazendo, caso não tenha notado.

— Ah, eu notei — Jason observou — mas dois goles do seu café e uma pessoa fica com cárie. É por isso que nunca temos açúcar nessa casa.

Annabeth conseguiu rir um pouco, mas ainda parecia tensa. Não pareceu perturbada pelo fato de Jason insinuar que Reyna praticamente morava ali. Ela abaixou o olhar para o coador. O que aquilo queria dizer?

Jason começou explicando o óbvio: para início de conversa, Thalia nem deveria estar naquele lugar. Ela trabalhava como bartender em um clube às sextas, e o expediente dela só terminava as duas da manhã.

— Eu não tenho muito para contar — ele suspirou — a não ser que você queira uma descrição detalhada na briga.

Annabeth analisou os ferimentos dele com um olhar meio enjoado. Por fim, respondeu:

— Eu estou bem, obrigada — ela envolveu a xícara de café já frio com as mãos, olhar distante, e boca contorcida no que Reyna supôs fosse sua expressão reflexiva — basicamente, não vamos saber nada até Thalia acordar?

— No que você está pensando? — Jason exigiu, erguendo as sobrancelhas — Eu conheço essa cara.

Reyna engoliu em seco, com a sensação de que estava tentando engolir uma laranja inteira de uma vez.

— Isso só... me lembra uma coisa que aconteceu, uns anos atrás — ela parecia dividida entre continuar ou não —, um garoto da minha turma se meteu em uma briga feia com uma gangue local por algum motivo. Ele começou a aparecer para aula cada vez mais acabado... olhos roxos, dedos fraturados. E aí um dia — ela tremeu, parecendo balançada pela lembrança — ele sumiu. Eu ainda visito a mãe dele no hospital de vez em quando. Ele nunca aparece por lá.

— Por que a mãe dele está no hospital? — Jason soou temeroso. Talvez não quisesse ouvir a resposta.

— Bateu a cabeça em uma briga com o ex-marido no mesmo ano que o garoto sumiu. Ela não acordou até agora. Às vezes eu...  — Annabeth comprimiu os lábios — às vezes eu acho que não é coincidência.

As mãos de Jason, ainda enroladas nas ataduras agora meio sujas, tremeram. Reyna teve o impulso de segurá-las, mas desistiu no último minuto.

— Tudo bem, Annabeth — Jason soou mais sério dessa vez — o que há? O que você está escondendo?

Annabeth ficou em silêncio. Jason continuou:

— Porque se eu te conheço, a essa hora você já teria nos dirigido até a estação de polícia e me forçado a fazer um B.O.

Reyna ficou observando a interação deles, intrigada. Parecia haver alguma coisa a mais do que simples preocupação amigável.

— Eu recebi uma mensagem essa manhã — disse, por fim — me dizendo para vir vocês.

— Eu e a Thalia?

— Não — ela ergueu o olhar para Reyna — vocês.

Reyna tentou ignorar o olhar incrédulo de Jason enquanto Annabeth tirava o celular do bolso. Ela o colocou sobre a mesa, onde uma foto de Thalia da noite anterior — com o rosto todo ensanguentado e parcialmente desmaiada — estava exposta. Embaixo, um número desconhecido havia escrito:

Diga ao Grace para vir para esse endereço, se não quiser que a irmã dele nunca saia daquele hospital. Traga a amiguinha dele também.

Eu não vou repetir.

Embaixo, uma localização estava fixada.

— Parece loucura — Annabeth correu uma mão pelo rosto, parecendo tão dividida com aquilo como eles —, mas parece muito com a história do garoto. Uma briga de rua. Um parente internado pouco depois.

— Você quer saber o que aconteceu — Jason ponderou. — E eu quero saber quem foi o desgraçado que colocou as mãos na Thalia.

De repente, os dois estavam olhando para ela.

— Eu suponho que... — Annabeth hesitou — você seja a amiga?

Reyna olhou para a foto de Thalia no celular, e a mensagem embaixo. E então lembrou-se das palavras do garoto com o soco inglês. Eu não preciso da permissão dela.

De alguma forma, Reyna estava arrastada para aquela confusão mais uma vez.

Aparentemente, quando a vida não gosta mesmo de você, nem um apartamento decrépito em um bairro inóspito  e a rotina mais normal e simplória do mundo tinham muito efeito.

Reyna havia tentado ser uma adolescente normal: ir para a escola, fazer amigos. Até mesmo gostar de um cara legal. Havia tido sucesso em duas dessas tarefas. Caramba, ela estava pensando até em fazer faculdade!

Imagens se projetaram em sua cabeça: o saco de pancadas, as mãos enfaixadas em ataduras de treino, o corpo todo dolorido pelo cansaço. O sangue escuro e espesso grudado em suas mãos. O grito estridente de sua irmã ao fundo.

Ela tomou um gole de seu café açucarado.

— Eu suponho.

────────────────────

Eles foram de ônibus, porque Annabeth tinha medo de ter o carro roubado.

As costas de Reyna ainda latejavam, mas ela achava que ao menos estava melhor do que Jason. Havia engolido uns três analgésicos antes de sair de casa, então não estava sentindo muitas coisas – inclusive os próprios braços.

Eles desceram em uma parada mal iluminada e caminharam por uma calçada ladeada por capim e água de esgoto. Seguiram um conjunto de ruas macabras e Reyna agradeceu aos deuses pela – de acordo com Jason – memória perfeita de Annabeth.

Acabaram debaixo de uma ponte, o buraco na parede que escoava a água da chuva quando enchia bem ao lado deles, e Reyna tentou não olhar muito para dentro do esgoto, embora naquela parte ainda fosse relativamente bem limpo.

E, em frente a eles, estavam dois garotos.

O da esquerda era mais baixo, e estava vestido todo de preto – mas definitivamente não era o do soco inglês. Esse nem tinha o porte de um delinquente. Parecia meio deslocado ali, até, com a jaqueta preta e cinza de beisebol impecável e a camiseta preta por baixo, os jeans escuros sem nenhum buraco ou arranhão. Reyna achava que os tênis dele eram mais caros que o aluguel da casa dela.

O cabelo castanho-escuro ondulado estava bagunçado e ele tinha olhos escuros penetrantes, principalmente em contraste com a pele pálida.

— Jason — ele cumprimentou — Reyna, certo? Não posso dizer meu verdadeiro nome, mas estou aqui por mando do homem que mandou a mensagem para vocês. Podem me chamar de Fantasma. Esse é—

— O filho da tia Sally — Annabeth completou.

O garoto da direita imediatamente olhou. Ele era mais alto, e estava vestido com uma camiseta verde-escura, o braço antebraço esquerdo todo enrolado em ataduras, e bermudas pretas. Tinha o porte de um nadador – ou um boxeador de peso pena.

A luz do sol refletiu no cabelo preto como tinta dele, que caía de forma elegante sobre os seus olhos incrivelmente verdes.

Ele não pareceu nenhum pouco feliz quando Annabeth completou a fala:

— O garoto que sumiu. Percy Jackson.


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Notas finais do capítulo

Eu não faço ideia do quão periódicas as atualizações serão (e, enquanto eu ainda estiver terminado outra história, provavelmente não muito) mas vou tentar não demorar demais!

Eu espero que tenham gostado, comentários são sempre apreciados (assim como críticas) e até a próxima!



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