Chamas Negras escrita por Benuzinha


Capítulo 6
Sob a luz da lua




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A conversa com Kagaho ficou girando em sua cabeça durante o caminho da volta. Confraternizar com o inimigo, no meio de uma guerra dificilmente seria visto com bons olhos em qualquer lugar. O que significava que ela provavelmente deveria parar de correr atrás daquele espectro mal humorado e que lutava por um deus do submundo disposto a acabar com toda a vida na Terra.

Olhando em volta, ela viu ao longe a montanha das doze casas. Kagaho, apesar da vontade gritante de acertar as contas com Dohko, dissera que não tinha planos de lutar contra os cavaleiros por enquanto. Aquilo a fez lembrar do dia em que ele aparecera ferido pela luta contra Aldebaran. Será que, naquela ocasião, ele invadira o Santuário atrás de Dohko? Aquilo fazia bastante sentido, do jeito que ele era esquentado. “Esquentado?!” Ela riu ao pensar em como aquilo era irônico, considerando que seu poder era justamente controlar as chamas.

Mas... para ele se refrear e aguardar pacientemente na floresta ao redor do santuário, alguma coisa muito importante deveria estar em jogo. Uma nova preocupação a envolveu. Ele tinha algum plano em mente e isso definitivamente não era uma coisa boa. Ela deveria falar aquilo com Regulus, entretanto, se dissesse, certamente iriam atrás dele. Confusa, ela sacudiu a cabeça, fazendo balançar trança que havia feito naquela manhã. Ela nem imaginava que Petros, desconfiado, a observava.

Na manhã seguinte, Elisa deu de cara com o Cavaleiro de Leão assim que abriu a janela do quarto. Ele trazia comida para dois e perguntou se ela se importaria de fazer seu desjejum com ele, convite que Elisa aceitou com prazer.

— Então essas armaduras de ouro representam os doze signos solares do zodíaco – ela conversava com o jovem cavaleiro, fascinada.

— Isso mesmo. Os outros cavaleiros de prata ou bronze são ligados a outras constelações.

— E quantos são no total? - indagou ela.

— Somos 88 ao todo.

— E como você conseguiu a sua armadura? Foi muito difícil?

— Um pouco... – ele fez uma pausa e então continuou. - Eu não te falei antes, mas o meu pai foi o Cavaleiro de Leão antes de mim.

— Então você herdou a armadura dele?

— Não do jeito que você provavelmente está pensando. – ele comeu uma generosa fatia de pão enquanto falava – Não é um tipo de herança, eu tive que treinar muito e fazer por merecer a armadura de Leão.

— Entendi. – ela hesitou – O seu pai...

— O meu pai morreu lutando contra um espectro – ele respondeu. – Ele foi um grande guerreiro.

— Tenho certeza que ele era um guerreiro formidável – ela segurou a mão do garoto – Tendo um filho tão poderoso quanto você.

— Um dia eu quero ser tão forte como ele – seu olhar agora brilhava com determinação.

— Você vai. – ela apertou a mão dele mais uma vez antes de trocar de assunto – Nossa, mas esse pão está mesmo uma delícia hoje!

— É mesmo. – ele pareceu feliz com a oportunidade de mudar o rumo da conversa – Acho que eu poderia comer mais um cinco desses.

Quando ele foi embora, Elisa recriminou a si mesma enquanto se preparava para sair também. Mais uma vez ela não conseguiu falar sobre seu encontro Kagaho e aquilo a fez sentir-se péssima. Além disso, a conversa com Regulus sobre a morte de seu pai a deixara bem abatida, ainda mais sabendo da situação em que o tio dele estava.

Quando chegou na ala médica, a primeira pessoa a recebê-la foi Petros. Ele lançou a ela um olhar estranho antes de falar, num tom de cordialidade bem pouco usual:

— Bom dia, Elisa.

— Bom dia, Petros.

— Dormiu bem essa noite?

— Sim – ela o encarou, confusa com aquela súbita simpatia.

— Que bom. – ele lançou mais olhar significativo antes de se afastar.

— Elisa! – Melina se aproximou com o rosto estampado com alegria genuína ao vê-la. – Bom dia!

— Bom dia, Melina. Está animada hoje – observou ela.

— Sim! Meu noivo voltou ontem de mais uma missão.

— Que notícia boa! – Elisa a abraçou.

— Assim que essa guerra acabar, nós vamos nos casar com as bênçãos de Atena – Melina sorria, sonhadora, enquanto seguia com a amiga até a cozinha – E você Elisa, não tem nenhum pretendente?

— Eu? – Elisa meneou a cabeça, separando algumas flores de lavanda do estoque de Konstantinos – Não, não, nem pretendo me casar. Eu quero ser uma grande pesquisadora, se eu me casasse teria que ficar presa a cuidar da casa e das crianças.

— Você é mesmo engraçada – a outra riu. – Onde já se viu, uma mulher que não quer se casar.

Elisa observou enquanto Melina se afastava para atender o médico, que havia acabado de chamá-la e voltou sua atenção para a infusão de lavanda que estava preparando. Já estava acostumada a ouvir aquele tipo de comentário, portanto, escutar aquilo não a aborreceu. Sua mãe também diria a mesma coisa, se estivesse viva. Seu pai, no entanto, sempre fora considerado um excêntrico e com aquilo não era diferente, ele sempre a apoiaria.

— Nossos estoques de ervas estão acabando – Konstantinos entrou na cozinha algum tempo depois. – A pomada de dedaleira já está no fim, a beladona e o sabugueiro já acabaram – passando as mãos pelos cabelos que começavam a rarear, o médico, que já passava dos quarenta anos, deu a Elisa um raro vislumbre de como aquela guerra também o afetava.

— Na floresta deve haver bastante. – Elisa tentou animá-lo.

— E quem seria o louco de ir até lá? – ele indagou, abatido e saiu novamente.

Mais tarde, naquela noite, a conversa com Konstatinos deu a Elisa a desculpa perfeita para ir à floresta. Kagaho tinha razão ao dizer que ela deveria tomar mais cuidado com suas saídas, mas agora ela iria procurar ervas para ajudar aqueles que precisavam. Se o espectro de Benu aparecesse, seria apenas uma coincidência, claro.

Após pegar uma lamparina, que acenderia quando chegasse na floresta e uma bolsa de pano para colocar as ervas, ela vestiu um manto para se proteger do ar frio da noite, apagou as velas e saiu. A lua estava quase nova e era ainda mais fácil se esconder nas sombras. Sorrateiramente, a jovem se esgueirou para a mata, evitando ao máximo chamar atenção. Quando já estava nos limites do Santuário, aliviada por ter conseguido chegar ali sem problemas, a pesquisadora sentiu a mão pesada de alguém puxando seu braço sem muita delicadeza.

— O que está fazendo aqui? – o homem de cabelos castanhos e barba espessa sibilou.

— Petros! - foi a única coisa que ela conseguiu responder.

— Você está maluca? Não sabe muito bem— ele frisou estas duas palavras - que existem espectros do lado de fora do Santuário?

— Eu estava vindo procurar mais beladona. E dedaleira e sabugueiro – ela respondeu, mostrando a bolsinha de pano.

— No meio da noite? – ele franziu o cenho, olhando nervosamente por entre as árvores, como se um espectro pudesse surgir a qualquer momento.

— Na minha terra, dizem que colher as ervas à luz da lua fortalece suas propriedades medicinais – ela mentiu descaradamente.

— Não acredito que você crê numa superstição dessas. – ele agora a olhou com mais desconfiança – A não ser que você seja uma bruxa.

— Que bobagem – ela riu nervosamente. Ser acusada de bruxaria provavelmente era tão ruim quanto de traição.

— Bom, eu não vou me meter nisso, afinal, a vida é sua – ele a soltou.

— Eu vim apenas colher as ervas que estão em falta – ela olhou para o lado e deu graças aos céus mentalmente por haver ali um viçoso arbusto de sabugueiro.

Ele ainda a observou arrancar cuidadosamente alguns ramos da planta e, por fim, se afastou. Dissimulada, Elisa continuou procurando por entre os arbustos, concentrada e, pouco a pouco, conforme Petros se afastava, ela entrava mais e mais na floresta. Ali, a luz da lua praticamente não penetrava por entre as copas, mas ela ainda não queria acender a lamparina, com medo de que Petros resolvesse segui-la.

Quando finalmente percebeu que o desconfiado colega desistira, provavelmente porque não teria mesmo coragem para segui-la até ali, Elisa parou e resolveu acender a lamparina, pensando em qual caminho deveria seguir. Não demorou muito e logo aquele que ela realmente queria encontrar apareceu por entre as árvores, como se ela tivesse gritado seu nome.

— Vejo que não vai mesmo desistir. – ele comentou, seco.

— Não consigo. – ela sorriu, feliz por vê-lo.

Desta vez ele não tentou mandá-la embora. Em um convite sutil e silencioso, ele se virou e começou a caminhar ainda mais para dentro da floresta e Elisa o seguiu, até chegarem em um ponto onde a vegetação ficava mais densa e sombria. Apesar disso, ela não sentia ali aquela sensação ruim de quando havia outros espectros por perto, só aquele calor denso e meio abafado que era característico da proximidade com Kagaho.

— E então – ele se sentou calmamente no chão, como se aquele lugar fosse sua própria sala de estar – Como tem conseguido se virar esse tempo no Santuário?

Elisa o encarou surpresa por alguns instantes. Aquela era a primeira vez que ele puxava assunto como uma pessoa normal.

— Não tem sido difícil – ela sentou em uma pedra próxima a ele – Eu me ofereci para ajudar a cuidar dos feridos e quase todos me acolheram muito bem. Possivelmente por ter sido Regulus quem me levou, todos parecem tê-lo em grande conta.

— Você deu mesmo muita sorte. – ele a olhou com uma expressão curiosamente indecifrável – Talvez seja porque você é uma pessoa fácil de conviver.

Boquiaberta, Elisa o encarou como se ele tivesse acabado de criar um par de antenas.

— Você me disse que era uma pesquisadora uma vez – ele continuou, impassível.

— Sim. – ela o fitou com interesse – Eu estou estudando algumas espécies de salamandras.

— Salamandras? – ele pareceu achar graça.

— São uns animais muito interessantes – ela respondeu, defensiva.

— Eu achei que as mulheres só precisassem se preocupar em casar e formar uma família.

— A maioria é assim, mas eu sou diferente.

— É mesmo? – apesar de sua expressão mortalmente séria, aquele brilho de diversão continuava em seus olhos. - E por quê?

— Meu pai conheceu minha mãe no Egito, numa expedição científica que um professor da universidade o convidou. Ele se encantou por ela e ela por ele e, quando meu pai voltou para casa, ele a levou junto. Não que tenha sido uma coisa simples. – ela sorriu – Minha mãe, que na época tinha dezesseis anos, decidiu fugir com meu pai e, bem, ela foi aceita a bastante contragosto pelos vizinhos e parentes. E eu, como filha deles, também sempre fiquei deslocada. Por isso – continuou, dando de ombros – quando eu resolvi seguir os passos de papai, ninguém se importou muito. Só mamãe talvez, mas ela faleceu quando eu tinha dezoito anos. Então...

Ela parou e olhou para ele com um sorriso constrangido. O espectro recostara a cabeça em uma árvore e parecia estar com a mente a quilômetros de distância.

— Acho que estou falando demais.

— Não – ele respondeu calmamente – Sua voz não me incomoda. Mesmo que você esteja tagarelando sobre como seu pai conheceu sua mãe em uma expedição inócua ao Egito.

Ali estava novamente aquele indício de divertimento e aquilo a encorajou a continuar.

— Sabe, o meu maior sonho é me tornar uma renomada cientista e escrever diversos tratados, que servirão de guia para as próximas gerações de pesquisadores. – o olhar dela agora estava perdido no céu.

— Fala como se fosse praticamente impossível. – observou ele.

— E é. – ele voltou o olhar para o espectro – Eu sou uma mulher, ninguém leva em conta o que eu digo. Exceto meu pai, eu acho. – sua expressão voltou a tornar-se distante.

— É uma pena. – ele comentou, surpreendendo-a – Você parece amar muito o que faz.

— Sim.

— É uma preocupação tão... terrena. Tão distante dessa Guerra Santa – agora era ele que a encarava. – Por que o destino te trouxe aqui? É como se você simplesmente houvesse tropeçado e caído dentro desse turbilhão sem querer.

— Eu não sei... Eu nunca acreditei em destino ou no que os astros reservam para nós e agora veja só... Estou falando com alguém que tem seu destino traçado por uma estrela.

— O destino não é absoluto – rebateu ele. - Eu faço meu próprio destino.

— Se tem alguém capaz de desafiar o destino, certamente é você –ela respondeu com um sorriso.

— É melhor você voltar.

— É verdade – ela se levantou e então parou com a mão na testa. - Ah não!

— O que foi? – ele se levantou na mesma hora.

— Eu esqueci, preciso encontrar dedaleira e beladona.

— E por quê? – ele franziu ligeiramente a testa, seu cosmo, que instintivamente aumentara, voltando gradativamente ao normal.

— Eu prometi ao médico... Além disso – ela mordeu o lábio em uma expressão de culpa. – Eu quase fui pega quando chegava na floresta. Um dos ajudantes dele me viu saindo do Santuário e eu disse que estava vindo procurar ervas.

— No meio da noite. – ele fez a mesma observação que Petros.

— É... e acho que agora ele pensa que eu sou uma bruxa – ela fez uma careta. – Eu disse que era porque a luz da lua era melhor para colher ervas.

O espectro a olhou com a expressão incrédula por um instante e, de repente, soltou uma bela risada.

— Você é mesmo inacreditável – ele disse por fim, ainda sorrindo.

— E o que mais eu poderia dizer. – ela perguntou enquanto olhava o chão à procura das plantas.

— Não vou nem perder meu tempo dizendo que você não estaria com esse problema agora se tivesse ouvido o que eu disse.

— Sobre estarmos em lados opostos e tudo mais?

— Exatamente.

— Eu sei – ela olhou para ele com ar risonho.

— Vamos procurar essas malditas plantas – ele meneou a cabeça enquanto a seguia.

— Você sabe identificá-las? – ela perguntou, surpresa.

— Na verdade, não – ele respondeu com tranqüilidade. – Como elas são?

— Bom, a beladona...

Cerca de uma hora e meia depois, Elisa chegava finalmente em casa, a bolsa repleta de plantas medicinais e um sorriso bobo no rosto. Era a primeira vez que ela escutara a risada de Kagaho e, estupidamente, naquele momento, aquele parecia ser o som mais fascinante que ela já ouvira.


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Notas finais do capítulo

Kagaho finalmente deixa o mau humor um pouco de lado hahaha



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