Hold Each Other escrita por LadyCygnus


Capítulo 2
Capítulo 2




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Após algum tempo conversando, sinto que María e Carmén estão cansadas, mas ao mesmo, apreensivas. Sei que, assim como Shun e eu, as duas estão em cabines separadas por medo do que estar juntas possa significar às suas vidas. Eu as acompanho até suas cabines e digo onde estou, que qualquer coisa podem me chamar. Estamos em Kirov agora, temos mais 12 horas dentro do trem. As duas agradecem e se despedem.

Volto à minha cabine, minhas coisas estão organizadas em cima de uma das “camas”, meu celular precisa ser carregado. Sei que Shun deve estar jogando, mas antes de colocar o celular para carregar, mando uma mensagem. “Está acordado e jogando?”. Conecto o celular ao carregador e deito na cama disponível, olhando para o teto. Devo ter cochilado, pois acordo com a luz do celular piscando, ‘Duas mensagens de texto’.

“Quase passando de fase… e quase dormindo :P” - 30 minutos atrás.
       “Você tem purê de batata aí? Estou com fome!” - 20 minutos atrás.

Geralmente, quando temos que vir à Rússia, mais pessoas estão conosco e a viagem é mais rápida - os outros preferem viajar de avião e evitar passar horas dentro de um trem. Shun insistiu para que fizéssemos parte do caminho dentro do trem Transiberiano, mas queria que a experiência fosse autêntica. Nossas mochilas estão cheias de comida instantânea.

“Cochilei… e tenho purê. Quer chá tb?”
        “Please! *_* ” - agora.
       “Destrave a porta, vou buscar água quente :*”

O samovar com a água quente fica no final do vagão. Para não nos queimarmos com a água quente, a opção foi uma garrafa térmica. Quando estou chegando ao samovar, vejo Irina abrindo uma das portas. Ela sorri, cordialmente.

— Olá! Vou sair para fumar, me acompanha?

Às vezes, é estranho conversar em russo - consigo compreender e formar palavras, mas minha língua mãe soa tão estranho quando sai de minha boca.

— Me desculpe, mas...

— Por favor, não vou atacar e nem fazer nada com você, mas eu preciso me desculpar. - As últimas palavras são ditas num tom baixo, quase como em um suspiro. Decido acompanhá-la. Ela segura a porta aberta, não há ninguém na área para fumantes. O trem anda rápido, a paisagem é um misto de verdes e borrões; o céu está escuro ainda, já que é madrugada. Ela pega o maço em seu bolso e pega um cigarro, oferece o maço para mim. Hesito um pouco, mas pego um cigarro - Shun ODEIA cigarros, mas sabe que fumo às vezes. Irina oferece o isqueiro, pego e acendo o meu cigarro, devolvendo o isqueiro à ela.

Alguns momentos se passam até que ela comece a falar.

— A parte mais difícil do meu trabalho não é ficar em pé por horas, acredite em mim. A parte mais difícil é fingir algo que eu não sou. - Ela traga mais uma vez, ainda olhando para o horizonte. - Eu sei que aquelas duas senhoras são boas mulheres e eu não me importo se elas estão juntas ou não… mas, quando estou aqui, tenho que fingir desgosto, tenho que fingir que tenho horror e que a atitude delas deve ser desaprovada.

A voz de Irina está embargada, mas sinto a sinceridade em suas palavras.

— Você me lembra meu irmão mais velho, Pyotr. Acho que é a aparência, o olhar inconformado ou mesmo as atitudes… ele também defenderia aquelas senhoras.

Pela primeira vez, ela olha diretamente em meus olhos.

— Eu vejo que você é russo, mas aparentemente não mora por aqui… é triste. Petya é infeliz aqui, porque não pode ser ele mesmo, não pode amar quem ele ama. Ele… ele é uma alma pura, sabe? Trabalha numa fábrica em Perm e é ele quem cuida do meu filho Igor, que tem três anos. O pai do Gosha é um canalha e eu não consigo ficar perto dele. Petya foi a única pessoa da minha família que não virou as costas pra mim, assim como eu fui a única pessoa que não virou as costas para ele.

Acho que minha expressão de surpresa e tristeza deve ter chamado a atenção de Irina, que dá um sorriso que mal levanta seus lábios.

— Petya é um homem digno. Estamos juntando dinheiro para sairmos daqui, mas enquanto não temos dinheiro suficiente, temos que abaixar nossas cabeças para esse tipo de comportamento, para que nada de ruim aconteça com Pyotr, Gosha e comigo. Portanto, peço desculpas para você….

— Alexei.

— Alexei, peço perdão a você e para aquelas senhoras. Se você puder passar a mensagem para elas, eu agradeço.

Uma das coisas que aprendi, durante todos esses anos, é perceber a sinceridade das pessoas: há uma aura - atrevo a dizer que seja um cosmo - e a aura envolvendo Irina era triste, cheia de arrependimento. Aceno que sim com a cabeça e ela parece estar aliviada, olhando para a paisagem borrada novamente e tragando seu cigarro.

— No fundo, eu tenho a esperança que as coisas vão mudar, sabe? Vejo que há muitos jovens que tem medo e que estão fugindo, mas no fundo, ainda vamos perceber que podemos mudar essas ideias, que podemos aceitar que as pessoas estão amando e que é isso o que importa. Pela segurança do meu filho, finjo, mas uma vez longe daqui, se Gosha me disser que ama um homem, eu aceitarei. Só quero que meu filho seja feliz e é isso que uma mãe quer para seu filho, quer a felicidade dele. Talvez quando minha mãe renegou o Petya e ele foi para longe, talvez ela tenha feito isso para que ele não sofresse em nossa vila, talvez tenha sido por ignorância mesmo… Mas sei que uma mãe quer o bem para seus filhos. Não sei qual a sua história, não sei qual a sua relação com sua mãe, mas como mãe, eu faria tudo pelo meu filho… e eu faço tudo pela felicidade do Pyotr, meu irmão que faz tudo por mim e pelo meu filho.

Ela sorri, antes de dar o último trago e de apagar o cigarro no cinzeiro fixado nas barras de segurança do trem.

— Existem muitos pais, mas só uma mãe. Beregi sebya, Alyosha.

Com esse provérbio russo, ela me deixa ali, pensando em tudo o que fora dito. Parece que todas as incertezas que eu tenho sobre minhas mãe e sobre quem sou estavam tão claras em minhas feições, em meus olhos por todos esses anos. O diminutivo, sempre usado por minha mãe quando eu estava prestes a dormir e ela caía no choro, acabou por trazer diversos sentimentos à tona.

Minha mãe sempre demonstrou ser forte em situações que muitas pessoas já teriam desabado (eu me incluo nesta estatística) e manter-se forte era exaustivo. Não me lembro de termos uma casa, um lugar fixo para morarmos e, muitas vezes em que ela achava que eu já havia dormido, ela chorava. Me lembro das poucas pessoas que procuravam saber mais da minha mãe e, para uma babushka em especial, foi para quem minha mãe se abriu. Natassia temia por nossa segurança e, principalmente, por meu futuro. Tinha medo em me deixar em algum lugar, de que eu fosse tomado dela, de que se ficássemos por muito tempo no mesmo lugar, meu pai me encontraria e faria de nossas vidas um inferno. O pouco dinheiro que tinha foi sendo economizado para que pudéssemos nos manter, mas acabamos entrando naquele navio em Yakutsk para fugirmos para Sakhalin.

Por alguns minutos fico ali, imerso em meus pensamentos e memórias até que me lembro do cigarro entre meus dedos - totalmente desperdiçado, para o futuro alívio de Shun. Após jogá-lo fora e sair da área de fumantes (e, ainda atônito, esbarrar em alguém e não me lembrar em que língua me desculpei), vou até o samovar e encho a garrafa térmica com água, volto para minha cabine e pego o purê prometido ao Shun, além do meu celular. Há algumas notificações que eu não leio e me dirijo à cabine onde Shun está. Olho para os lados, checando se alguém está por perto e, com a negativa, entro na cabine.

Shun está deitado de bruços em uma das camas, o console portátil em suas mãos e fones de ouvido. Ele percebe minha chegada, sentando-se rapidamente sobre as pernas cruzadas, sorrindo. Tranco a porta e, antes de me sentar ao lado dele, dou um beijo rápido em seus lábios.

— Ugh, cigarro.

O nariz torcido e a voz um pouco irritada são os únicos sinais de reprovação que eu recebo. Às vezes, acho que Shun acaba “pegando leve” comigo. Nunca grita em discussões. Não deixa de falar comigo por birra. Acaba por pedir desculpas mesmo quando não precisa. Me conforta - e se fosse outra pessoa qualquer, já teria me mandado às favas há muito tempo.

Sento-me ao lado dele, colocando os copos de purê instantâneos à nossa frente, abrindo os recipientes e colocando a água quente; Shun somente me observa. Aproveito para tirar os tênis e deixá-los na porta. Quando a “refeição” fica pronta, Shun levanta-se e vai até o compartimento onde a mochila que carrega se encontra, pega duas garrafas de suco de maçã e volta para o meu lado, me entregando uma delas. Entrego-lhe um dos copos e pego o outro para mim, ajeitando-me na cama, espelhando a posição de Shun. Não precisamos falar nada, trocamos alguns olhares e sorrisos durante nossa refeição.

Mesmo em silêncio, parece que Shun consegue entender tudo o que se passa em minha cabeça. Após terminarmos a refeição, Shun pega o copo da minha mão, colocando-o sobre a mesa junto ao seu copo já descartado e senta-se atrás de mim, com seu tórax colado em minhas costas e seus braços passando por baixo dos meus, cruzando-os na altura do meu estômago.

— Você está tenso e triste desde que chegamos aqui na Rússia, Hyoga. Se eu soubesse que você iria ficar desse jeito, não teria vindo ou teria insistido para que alguém mais viesse junto.

— Não adiantaria, Shun. Cada vez que eu venho pra cá, a sensação de desespero aumenta. Me sinto inadequado, não sei se estou falando russo ou japonês...

— Ou grego… ou grego arcaico. - Shun ri, me fazendo sorrir também.

— Ou francês. Mas não é só a língua. São os costumes, as pessoas, o país....

— As leis.

— Sim, zvedzda moya. O medo.

Shun se aconchega mais, como se o corpo dele pudesse absorver o meu e assim me proteger de tudo e de todos à minha volta. Beija meu ombro direito, murmurando palavras que não consigo distinguir, parecem orações.

— Eu não entendo, Hyoga… quero dizer, eu não consigo entender o porque as pessoas têm a necessidade de nos atingir e nos rotular, de dizer o que sentimos um pelo outro é algo impróprio, impuro; um pecado. Mas eu entendo parte do que você sente, especialmente porque parte de você é este lugar, é o orgulho de pertencer à Rússia, é a ligação com a sua mãe...

— Eu acho que é mais a única parte que restou da ligação com a minha mãe, Shun.

— Não é verdade, Hyoga. - A energia que sinto vinda de Shun parece estar ainda mais protetora, porém triste.

— Eu sei que é difícil pra você vir para a Rússia, mas a ligação que você tem com sua mãe é bem mais do que território ou costumes, Hyoga. Eu realmente não tenho base para falar de amor materno, mas sei tudo o que aconteceu com vocês. Se você tem medo de como as coisas seriam se ela estivesse viva, eu posso lhe assegurar que uma mulher como Natassia não teria feito o que fez para te salvar… e eu sei que os cenários que se passam na sua cabeça incluem sua mãe lhe dando as costas por causa de um país ou de leis feitas pelos homens, mas acho que essa não seria a postura dela. Ela poderia não aprovar ou ser algo que talvez ela tivesse dificuldade em entender, mas nunca dar as costas para o filho que ela protegeu até o final.

— Você sabia que há mães aqui na Rússia que têm que passar por cima de seus próprios princípios para proteger seus filhos? Uma moça aqui no trem tem de fazer isso todos os dias para proteger o filho e o irmão que é gay. Finge ter nojo e se culpa por isso.

— Num mundo ideal, as pessoas não teriam preconceitos e saberiam lidar com as diferenças, Hyoga. O mundo pelo qual lutamos seria assim, mas ele ainda não é perfeito, é?

— Uh uh.

— Então, infelizmente nem todos têm a força ou os meios necessários para lutarem sem colocar a vida daqueles que amam em risco. E eu sei que, embora você quisesse que a atitude dela fosse diferente, você tem a noção de que ela não pode fazer isso sem arriscar o que é mais importante para ela. Isso te lembra alguém?

Minha respiração parece falhar e a cabine parece escurecer por alguns segundos.

— Respira… respira… não será sempre que vamos conseguir salvar o mundo e nem sempre estaremos juntos para fazermos isso, mas as pequenas batalhas também fazem parte dessa guerra, Hyoga. Você não vai conseguir mudar a mentalidade da Rússia mesmo que coloque os Olimpianos contra essas leis, mas você pode ajudar de outras maneiras que parecem pequenas mediante tudo aquilo que já passamos. Pequenas para nós, mas talvez enormes para eles.

Continuamos na mesma posição por algum tempo e, com a voz embargada, conto a Shun sobre Carmén e María, as duas senhoras espanholas cuja história acabou por me deixar feliz.


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Notas finais do capítulo

Beregi sebya = Cuide-se.

zvedzda moya = Minha estrela

"Alyosha" é um diminutivo russo para Alexei. Geralmente, diminutivos só são usados quando há uma certa intimidade com as pessoas, mas aqui fora usado propositalmente.



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