Hold Each Other escrita por LadyCygnus


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/765164/chapter/1

Voltar à Rússia sempre é um misto de emoções para mim: orgulho, nostalgia, tristeza, saudades, medo e esperança. Meus momentos mais calmos e cheios de reflexões sempre aconteceram enquanto eu estava dentro deste trem, vendo as diferentes faces, culturas e tradições dos povos que habitam a Rússia.

Ah, mãe Rússia, tão cheia de vida e alegria, mas, ao mesmo tempo, tanta amargura e raiva por seus filhos!

Shun e eu estamos em uma missão do Santuário; fomos enviados para checar alguns centros de treinamentos em Yekaterinburg. Parece algo cruel que tenhamos sido enviados juntos para a Rússia, onde não podemos sequer segurar as mãos.

De Yekaterinburg até Moscow são 26 horas dentro do trem.

—---

Estamos no trem há algumas horas, minha mente devaneia entre memórias, pensamentos inúteis (imaginar passados alternativos e diferentes em algumas situações é realmente uma perda de tempo), planos e possíveis alternativas e soluções para problemas reais que acontecem à minha volta. Me desloco da Grécia para a Rússia poucas vezes no ano e essas visitas estão acontecendo cada vez menos. Antes, eu, Hyoga, tinha uma vontade absurda de passar a maior parte do tempo aqui ou tentar visitar o máximo possível, porém, a vontade hoje é quase inexistente.

A verdade é que eu tenho medo deste lugar e das variáveis que a Rússia representa em minha mente.

—---

As poucas memórias pré-treinamento que tenho vêm de quando eu era uma criança que nada entendia sobre nada. Era normal, pra mim, estar viajando com a minha mãe e estar sempre só com ela. Anos depois, soube que fugíamos de alguém e, mais tarde, percebi que não era simplesmente alguém.

Me lembro pouco sobre minha mãe e, outras informações mais concretas que tenho vieram de arquivos da família Kido: “Natassia Petrovna ------, 28, Serov. Estado civil: solteira. Pais: possivelmente mortos. Família: Alexei Hyoga ------ Yukida, 6 anos” . Não sei nada sobre meus avós, sei pouco sobre meu pai: diplomata japonês, Yukida era o sobrenome dele. Dado o contexto e as constantes fugas, tenho certeza que minha mãe fugia dele, mas não tenho absoluta certeza. Presumo coisas sobre minha mãe e uma delas seria sobre como minha mãe reagiria se soubesse que eu tenho um relacionamento com um homem.

Aos 28 anos, com a mesma idade que minha mãe tinha quando deu a vida dela para me salvar, tenho medo em imaginar como minha mãe me trataria.

—---

Quando penso sobre aceitação, penso em muitos fatores.

Penso em minha mãe e como ela fora criada - mesmo não sabendo absolutamente nada sobre ela, a não ser por algumas informações que li num arquivo em uma sala da Fundação Graad ou memórias que podem não ter veracidade alguma. A igreja Católica Ortodoxa Russa sempre condenou a homossexualidade (embora eu não seja gay, mas até eu conseguir explicar, já teria sido atirado ao fogo e queimado), e me lembro de ir à Igreja com minha mãe. Me lembro de rezar todas as noites, de não desobedecer minha mãe porque estaria desobedecendo a Deus também. E eu me lembro de desobedecê-la e do olhar de reprovação dela; o quanto os olhos azuis que já carregavam tanta dor se apagavam ainda mais.

Shun não pode estar ao meu lado, está em uma cabine separada enquanto estou no vagão restaurante. Poderíamos estar juntos mas a decisão de permanecer separados é a mais lógica e segura. É estressante e triste pensar que tantas vezes lutamos contra inimigos tão poderosos e arriscamos nossas vidas em prol da humanidade, mas que uma parcela razoável desta mesma humanidade nos odeia e nos rejeita… Meu coração aperta novamente e tento me distanciar dos sentimentos negativos que tomam minha mente.

Se eu estivesse com uma mulher - como já aconteceu antes -, as pessoas estariam nos olhando e dizendo como somos um belo casal e como nossos filhos seriam. Se eu estivesse com alguém que se apresenta como mulher - como também já aconteceu antes -, as pessoas nos olhariam de uma forma estranha, mas talvez teriam uma aceitação um pouco melhor. Estar com um homem ainda é um crime, uma afronta a Deus.

Shun tem o rosto delicado e também porta-se delicadamente, mas é um homem. As mãos, calejadas das lutas e treinamentos parecem grossas, mas são as mesmas mãos que passeiam pelo meu corpo para me confortar ou me dar prazer; o rosto com traços delicados às vezes tem a pele áspera da barba por fazer - e eu gosto de senti-la em minha pele quando acordamos juntos pela manhã e ele se recusa a acordar, escondendo seu rosto contra meu pescoço ou peito. O corpo, mais esguio - mas com músculos - e pálido, acomoda-se perfeitamente ao meu corpo (e faz o meu se moldar ao dele sem a necessidade de usar a força - a não ser que eu implore, e ah, eu gosto de implorar!).

Se Shun estivesse ao meu lado agora, estaríamos de mãos dadas, já que esta é uma das maneiras mais simples e verdadeira em que ele me demonstra afeto e que me transmite conforto, especialmente por saber que as viagens para a Rússia vêm me desconcertando ao longo dos anos. Cada vez mais vejo o ódio sendo destilado contra a comunidade LGBT, que, oprimida, não tem para onde fugir. Pela minha cabeça surgem ideias de usar meu poder contra aqueles que desprezam, perseguem e encarceram aqueles que ousam amar a quem amam mas, infelizmente, não posso fazer isso como uma causa pessoal já que luto sob a proteção e ideais de Athena. Desvencilhar-me destes ideais causaria um mal terrível ao Santuário, já que com as convenções do mundo atual, este seria taxado de organização terrorista.

A aceitação vinda de minha mãe seria algo que me elevaria aos céus de tanta felicidade, pois tenho certeza que ela conseguiria ver em Shun o amor que ele sente por mim, ela conseguiria enxergar o amor que eu sinto por ele e quantas vezes estivemos um ao lado do outro em momentos que, mesmo rodeados de pessoas que nos querem bem e nos amam, só tínhamos um ao outro. Não hesito em dizer que Shun me salvou várias vezes de cair em um abismo, assim como eu o tirei do abismo por várias vezes - e eu faria a mesma coisa por várias e várias vezes, não só quando estivéssemos frente a um inimigo.

Às vezes, a batalha é contra nossos próprios demônios e incertezas.

—---

A paisagem muda, assim como o céu. Sou trazido de volta ao presente por meu celular vibrando na mesa à minha frente. Ainda estou no vagão restaurante, o café que eu havia pedido já está frio. Antes de checar a mensagem, estico meus músculos e olho para o lado - duas senhoras que embarcaram conosco estão ali, parecem se divertir com o cardápio. Uma delas - cabelos castanhos e curtos, o rosto redondo e um sorriso em seus lábios - olha para os lados, certificando-se de algo. Ao notar que ninguém presta atenção nelas, pega a mão da outra - os cabelos também castanhos, na altura dos ombros - entre as suas e entrelaça os dedos na mão da outra, sorrindo para ela. Os olhos da companheira - castanhos - se arregalam, parece estar surpresa com o gesto. O gesto tão íntimo das duas me aperta o coração. Desvio meu olhar e vejo a mensagem em meu celular, desejando que fosse uma mensagem de Shun.

Alguém se aproxima, é uma atendente que pergunta se eu desejo mais alguma coisa. Há algo em seu olhar que me chama a atenção, além do sorriso no canto dos lábios, como se ela soubesse algo que eu ainda não sei. Ela é jovem, deve estar na casa de trinta anos, cabelos loiros soltos e ondulados, sardas em seu rosto. Agradeço e digo que não preciso de nada por agora; ela sorri e pisca para mim. Não esboço reação alguma, mas isso não significa nada para ela, que me diz seu nome, casualmente. Quando eu não respondo nada, ela ergue o queixo e sai andando, em direção a um balcão onde outras mulheres se encontram. Não parece irritada, mas ignora o casal de mulheres que ali estava.

As mãos já não estavam mais juntas, os semblantes eram de surpresa, apreensão e medo. Conversam baixo entre si - são turistas mesmo, o idioma parece ser espanhol. Entendo algumas palavras e percebo que elas entendem pouco do que está escrito no cardápio. Sem pensar, levanto e me dirijo à mesa delas, oferecendo ajuda. As duas se surpreendem com a minha chegada, assustadas por terem sido ousadas ou talvez mesmo pegas em flagrante, mas só consigo pensar na cordialidade e no sorriso que Shun daria para acalmá-las - aliás, é uma piada recorrente entre todos nós, como o sorriso de Shun poderia evitar guerras, salvar animais abandonados e fazer velhinhas caírem de amores por ele. Sorrio ao lembrar da piada e elas parecem se acalmar, mostrando o cardápio e apontando para uma foto de uma porção de “brizol” (frango assado, cogumelos, queijo e tomates). O cardápio está em cirílico, sem tradução para o inglês. Tento explicar o prato para elas com o meu espanhol rudimentar - “Baked Pollo? Chicken… asado? Queso y…. Tomato? Mushroom… no sé la palabra!” - e elas parecem entender, comentando sobre o meu espanhol.

— Your spanish, thick accent. Are you russian?

— Yes, I am.

Por um segundo, percebo que elas estão com medo e, disfarçadamente, se afastam. Mais uma vez sinto meu coração se contorcendo por elas e a raiva e a mágoa da minha terra natal toma conta do meu corpo. A atendente do vagão está na outra ponta, pegando o pedido de um grupo de jovens. Olho para os lados e vejo que não há mais ninguém perto.

— Don’t worry, I will not hurt you. - Ainda há uma certa desconfiança pela postura delas e eu não sei o que fazer. É nessa hora que meu celular vibra e, desta vez é uma mensagem de Shun. “Espero que você esteja bem ♥ ”

Respiro aliviado e não penso duas vezes - desbloqueio o celular e procuro na galeria por algo específico, uma foto minha e de Shun juntos e mostro para as duas.

É uma selfie não tão recente, tirada no Japão há alguns meses. Era primavera e estávamos no orfanato em que crescemos; há crianças (e o Seiya) ao fundo, jogando futebol. Shun tem sua cabeça encostada em meu ombro e sorri para a câmera. Apesar do cabelo comprido e dos tão famosos traços delicados, ninguém teria dúvida alguma de que ele é um homem. Novamente, a senhora de cabelos curtos segura a mão da companheira, que agora tem lágrimas em seus olhos.

— Spasibo.... Gracias!

—---

Chamo Irina e faço o pedido para as senhoras. Há um ar de surpresa nos olhos dela, mas não me incomoda.

—---

Aprendo o suficiente sobre as duas senhoras que me fazem companhia: são espanholas, duas professoras que eram melhores amigas desde a época da faculdade. Carmén - a senhora de cabelos curtos - é viúva, o marido morreu quando ela estava grávida do primeiro filho e María, a melhor amiga, sempre a apoiou. A amizade evoluiu para o companheirismo e, quando menos perceberam, estavam apaixonadas uma pela outra. Não sabiam o que fazer, não queriam desapontar suas famílias - mas Pedro, o filho de Carmén, aceitava as duas como suas mães. Venceram preconceitos e pedras em seus caminhos e hoje são avós.

— Y usted?

Não hesito em dizer sobre como fui parar no Japão, mas deixo de ser um guerreiro para dizer que sou Alexei Petrovich, fotógrafo e que meu namorado, Shun Amamiya, é um médico. Digo que viajamos muito e que nossa parceria é essencial para nos mantermos vivos fora e dentro de nossos “batalhas”.

— Y Rusia? O que piensas sobre su país?

Essa é a pergunta que não quer calar e não há palavras que possam responder além de “Miedo”. Irina volta à mesa onde estamos reunidos, trazendo os pratos pedidos e um chá para mim. Antes que possamos agradecer, ela sorri e se afasta. Quando me viro, pronto para me despedir de Carmén e María, a última segura minha mão e pede para que eu fique junto delas na mesa, já que minha companhia é agradável e elas se sentem seguras em minha presença. Sorrio, olhando para as duas e acenando que sim.

—---

Existem certos aspectos que são comumente relacionados à cultura russa: somos taxados de beberrões, de desconfiados e dependentes de nossas famílias. Todos são verdade e o medo que eu sinto também é algo intimamente à nossa cultura. Tenho certeza que tanto o medo quanto essa desconfiança foram plantados durante a era soviética, onde os soviéticos eram ensinados a não confiar em qualquer pessoa fora de seus círculos familiares.

Quem minha mãe tinha para confiar? Em um diplomata japonês que tinha passe livre para fazer o que quisesse com ela (e ela ainda assim era considerada culpada)? Em uma criança que dependia dela?

Posso estar especulando, mas ela não tinha ninguém, somente o medo.

O medo é algo que parece estar sempre presente aqui na Rússia: se você é uma mulher, você tem medo de apanhar de seu companheiro - você sempre será considerada a culpada, sempre terá que provar (seus ferimentos nunca são o suficiente para incriminar); se você não é hétero, você tem que manter os dois olhos abertos e não abrir a boca. Sua vida será sempre vivida às escuras, torcendo para encontrar alguém que te entenda e que não se vire contra você.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Mushroom = cogumelo

Your spanish, thick accent. Are you russian? = Seu espanhol, sotaque carregado. Você é russo?

Yes, I am. = Sim, eu sou.

Don’t worry, I will not hurt you. = Não se preocupem, não as machucarei.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Hold Each Other" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.