Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 34
Aqueles que triunfam. Ou morrem


Notas iniciais do capítulo

Música que as ninfas cantam:
Transformation (Irmão urso) https://www.youtube.com/watch?v=Tg9P2rTmgDM
É uma música que vale muito a pena ouvir.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/764761/chapter/34

— Cássio, não olha pra ela! Não olha pros olhos dela! — Mauro tentou levantar-se depressa, vendo o ciborgue encarar a Serpente em sua forma original, mas nada movia-se como devia.

Desfez a metamorfose e tentou xingar, gritar, qualquer coisa que desviasse a atenção de Cássio, parado como um animal diante dos faróis de um carro. Ângelo voava a toda velocidade até eles, e tudo que Mauro pôde fazer foi assistir.

Tudo aconteceu num instante. Cássio caiu como uma árvore, interrompido, queimado, a expressão congelada no terror mais profundo. Ângelo caiu com a espada na cabeça da Serpente, que se desfez no chão. O anjo levantou a cabeça e o peito de Cássio da lama com gentileza.

Mauro mancou até os dois, e quando chegou perto, a dor na voz o atingiu, assim como o cheiro acre de carne queimada. Nina materializou-se, um bastão nas mãos e o vestido em farrapos.

— De novo não, meu Deus. Me desculpe, Mauro.

— Tudo bem, só saia daí! — Caiu ao lado de Cássio, checando se estava vivo do jeito que Luca ensinara a todos eles. Nada. Começou a pressionar-lhe o peito com força, contando com raiva. — Dois. Três. Quatro! Não. Ouse. Morrer. Filho. Duma. Cadela! Onze. Nerd! Burro! Não. Se. Encara. Uma. Porra. De. Mal. Ancestral! Vinte e dois. Vinte e...

Contava e xingava ritmado ouvindo a pele estalar e rachar sob suas mãos. Colérico, a exaustão após tanta magia o deixava mais fraco e lento, mas não pararia. Forçou o ar pra dentro da boca do outro, enquanto o anjo atrás dele falava numa linguagem desconhecida, e a chuva continuava encharcando os três, pontilhada por trovões aqui e ali. Trovões significavam raios, e raios ainda o deixavam nervoso, ainda mais num campo aberto, encharcado até a alma. Mas estava ocupado demais pra pensar sobre aquilo.

Não sabia quanto tempo ficou ali, até conferir mais uma vez e perceber algo se movendo sozinho. E de novo, assumindo um ritmo mais ou menos normal. Conseguiram. Agora tudo que queria era sair dali para algum lugar seguro. E coberto. De concreto, de preferência.

— Me desculpe a grosseria, Ângelo. Não vai acontecer de novo. — Podia ver a armadura trincada e perfurada aqui e ali, e as ninfas reunidas parecendo que sobreviveram a uma explosão. — Sei que não morremos todo esse tempo graças a você. E que esse javali estúpido não morreu hoje por causa da sua ajuda também.

O anjo contundido o olhou intrigado.

— Você vinha nos ver com frequência, não é? Você é bom guiando pessoas, mas péssimo se escondendo. Eu te via por aí o tempo inteiro.

— Mas como... Por que não disse nada?

— Se você não achou bom se revelar, eu não faria isso por você. Só... Obrigado. Agradeço por tudo. Agradeço a você também, Nina. Sem esse aguaceiro todo, duvido que o Feio estivesse fraco o suficiente pra ser derrotado por nós dois. Agora...dá pra consertar o poder desse cara aí, antes que ele queira emporcalhar o mundo inteiro?

As ninfas se aproximaram, olhando pro rapaz caído como se ele fosse um problema complexo e muito aborrecido. Mas aos poucos, uma a uma juntam-se numa música. Parecia que tudo cantava com elas. Então, Mauro ficou em paz. O sussurro raivoso de tudo ao seu redor cessou, e era como se todo o bosque prendesse a respiração, esperando o próximo ato. Cássio começou a ficar mais pálido. Céus, o que estava acontecendo agora?

— Como todos os humanos, ele tem o poder de escolher, Mauro. Ele pode deixar ou não o mal ir embora. Tudo o que podemos fazer é criar a opção.

Mauro agachou-se e falou baixo no ouvido de Cássio. Pouco depois, foi como se um peso tivesse sumido da atmosfera, e o mago sentiu que finalmente tudo ficaria certo.

— Foi rápido. O que disse a ele?

— Ah, eu disse a esse filho duma égua que o mandaria pessoalmente pro inferno se ele jogasse um pouquinho de esgoto por aí. —Sorriu de um jeito travesso. — Relaxa, Céuboy. Desfaz a careta, ninguém vai pro inferno hoje. Exceto aquele ali, espero.  

Apontou com a cabeça pro cadáver de capa no chão.

— Não julgue sem conhecer os fatos, Mauro. E não mande ninguém pro inferno de forma tão leviana, você não sabe o que acontece lá.

Ângelo sempre teve seu respeito, então calou a boca e concordou.

— O Cas vai ficar bem? — O alívio do anjo era maior que parecia. Só aí se deu conta que se tinha sido duro pra todos eles, teria sido pior pro anjo da guarda da turma. — Ei, Ângelo, foi uma merda, eu sei. Mas não foi culpa sua tudo o que aconteceu.

— Tudo o que, Mauro?

— Eu sei que eu sou outro retardado por só pensar nisso agora, mas apesar do apocalipse ter sido uma merda, estávamos juntos. Nos apoiávamos uns nos outros. Quem estava lá pra apoiar você? Tem alguma espécie de psicólogo celeste ou...

A risada de Ângelo foi gostosa de ouvir. Nina permitiu-se um risinho. A convivência com humanos fazia bem ao seu parceiro, não o ouvia rir há anos.

— Amizade é um conceito humano, Mauro. Foi difícil, mas refinei minha fé.

— Bom, quando quiser conversar, aparece lá no Luca. Sei que ele vai adorar te fazer um chá. Eu não sei onde vou morar por um tempo. Bom, de qualquer forma, quando aquele cara acordar não precisa ver o morto. Vou... Put...— Talvez, só talvez, não fosse boa ideia gritar palavrões e amaldiçoar no meio de tantos seres bons e de luz. Mas... puta que pariu, pensou, não tinha visto como suas pernas estavam mal. Sua perna esquerda era a pior, via metade dos ossos, e tinha certeza que aquele pé tinha cinco dedos quando acordou pela manhã.

Mas levantaria porque se ainda tinha pele no rosto era porque Cássio o tinha protegido do pior. Medíocre como era em magias de cura, foi com alívio que sentiu a mão gelada de Ângelo no ferimento.

— Posso aliviar um pouco mas você precisa descansar.

— Depois. As costas dele parecem uma figura de livro de anatomia. E toda essa festa deve ter chamado a atenção de todos os obsessivos da cidade. Preciso enterrar o tio dele e achar um local seguro pra dormir. Só preciso que o joelho aguente até lá. E que não caia nenhum raio aqui perto. Angemon, pode pegar aquela lança pra mim?

Cavou no meio da lama mesmo, só um pouco tranquilo pela vigilância silenciosa do anjo, que a cada cinco minutos confirmava que sim, Cássio estava vivo e não, não via obsessivo algum por perto. Até o ajudou a arrastar o corpo do Feio até o buraco. Terminou de cobrir tudo com as mãos. Puxa, parecia que tinha mergulhado naquele troço nojento. Suspirou cansado.

Nem sabia como, mas teria que alcançar um abrigo antes de clarear. Começou a limpar-se como podia, até ouvir um...Guincho? Grito? O que fosse, parecia o barulho de um... Ah, merda, estava no território de um elefante? Aqueles bichos não gostavam de intrusos. Olhou ao redor, mas as ninfas tinham desaparecido. Toda uma manada apareceu na borda da mata. Nina flutuava ao lado.

— Eles queriam agradecer pela ajuda.

— Que ajuda? Ah, o zoológico? — A ninfa assentiu.

— Mas também por deter o poluidor ali. O filhote adoeceu brincando na lama.

Agora via o elefantinho escondido atrás das patas da mãe. Nina carregou Cássio nos braços até a orla da floresta, enquanto Ângelo apoiava Mauro meio caminhando, meio saltando até perto dos enormes animais. A líder da manada enlaçou Cássio com a tromba e um macho idoso levou Mauro. Seguindo as orientações de Nina, os levaram até uma estação de água abandonada, com uma guarita de vigilância vazia.

Os elefantes os desceram diante da porta. Mauro curvou-se, tentando demonstrar seu respeito e gratidão.

— Senhoras e senhores elefantes, devemos nossas vidas a vocês. Nina, obrigado também. Como se agradece a um elefante?

A risada da ninfa era suave. — Eles viveram com humanos por vinte anos, Mauro. Eles conseguem te entender. Embora prefiram um agradecimento em frutas.

— Ah. Que pena, não tenho nenhuma. Adeus. — Passou pela grade e arrastou Cássio pra dentro.

***

Tinha febre, e o cheiro da perna embaixo dos curativos era desagradável, pra dizer o mínimo. Cássio parecia um daqueles robôs que simulam respirar, e nada mais. Ângelo quando se despediu, enfatizou que ele ficaria bem, mas pra um ser angelical que não vê tanta diferença entre sua vida e sua pós vida, bem era uma palavra vaga demais. Morrer bem e ir para o céu, nirvana ou não sabia qual o nome do Lugar Legal era estar bem, não era?

Se mantinha como podia, mas no fim do dia, parecia bem interessante só ficar olhando Cássio respirar e as sombras se alongando no piso. Apesar do sol, fazia muito frio. Tinha que tomar aquele remédio de novo. Engoliu, e esperava que fizesse efeito. Já tinha adoecido tantas vezes, de tantos jeitos diferentes, conseguia se cuidar. Mas era a primeira vez daquele jeito. Sozinho. Torcendo pra alguma coisa acontecer, e é claro, ele estar consciente pra assistir.

Se aquilo piorasse, e o ferimento parecia demais com a perna do Cássio antes do Luca ter que cortá-la fora, Ramona provavelmente mandaria escrever na sua lápide “BABACA” em letras garrafais. Não deveria ter correspondido ao beijo. Por que fez isso com a garota?  

A tarde caía, dourando todo o cômodo. Bobagem, ela quis beijá-lo, não tinha que procurar defeitos em algo tão bom. Pensou no sabor, nos olhos verdes sorridentes. No afeto refletido neles. Naquela garota extraordinária que o conhecia mais que qualquer outra pessoa.

Tinha um sorriso largo quando finalmente percebeu. Seu coração pertencia ao ciborgue dormindo à sua frente, e isso não mudaria.  Ramona vira aquilo também. Era um beijo de despedida.

Tantas vezes lutou pra compreender o coração contrariado e paciente do irmão mais novo. Ele nunca pegava o caminho fácil. Só encontrava o que queria e seguia do jeito que pensava ser o certo, sem se importar com as chances ou com a dor envolvida.

Agora sabia a razão.

Naquele momento, em algum lugar, Do Contra gargalhava. Quase podia ouvir.

***

Mauro foi acordado com um gemido. Inclinou-se até Cássio no chão.

Graças a Deus – e a seu anjo da guarda – acordara bem melhor, e embora a perna latejasse e doesse demais, já não se sentia prestes a desmaiar. Já nem sentia frio, só parecia que levara uma surra. Da Mônica. Na versão urso gigante da Marina.

— Finalmente! Cas, pode me ouvir?

— Quem é... Cas?

— Ah, não... Merda! Como é que... Droga, não previ isso. Não lembra de nada? Lembra de mim? Mauro, irmão do DC?

— Mauro... Me lembro de você.

— Graças a Deus!

— Você é um combatente ótimo, um mago pilantra, meu melhor amigo e não reconhece uma piada nem se esbarrar nela.  

— Mas que inferno! E eu aqui preocupado com você!

A cor sumiu do rosto de Cássio. Mauro não ouviu direito o que ele respondeu.

— O que foi?

— Quanto tempo eu passei lá?

— Lá onde, cara?

O som sumiu, mas pôde vê-lo articular a palavra: Inferno.

Cássio fez um esforço pra sentar-se, caiu de lado, ajustou a outra mão e cruzou as pernas. — Onde você tá? Não quero falar disso no escuro. Acende alguma coisa.

— Para de brincadeira, porra. Isso não tem graça nenhuma.

— Que brincadeira? Inventei a noite, por acaso? Acende logo uma lanterna.

— São dez da manhã.

Cássio começou a tatear o rosto agitado, procurando uma venda, a máscara, alguma coisa. Qualquer coisa.

— Eu já disse: Chega dessa merda de brincadeira. Para com essa palhaçada e olha pra mim, Cássio.

— Estamos no subterrâneo? Diz que estamos, por favor.

— Estamos numa guarita. Cheia de janelas. Um sol lindo lá fora. — Viu Cássio procurar o braço metálico e segurar o toco com força. Conferiu toda a perna de metal, e esticou a mão, procurando.

— Mauro, cadê você? Cadê você? —Uma mão muito quente segurou seu braço. Sentia que iria vomitar. A outra puxou seu rosto na direção da voz.

— Eu tô aqui. Bem na sua frente. — Agitou a mão na frente do rosto. — Nada?

— Não sei nem dizer se tá claro ou escuro aí fora. — Respondeu numa voz partida. Começou a respirar fundo. — Ok. Ok. Depois eu surto. Me mostra, quero dizer, põe minha mão onde você se machucou, por favor.

— Como você sabe?

— Conheço sua voz. Você tá doente. — Empurrou a mão no peito de Mauro. —  E queimando de febre.

— Minha perna esquerda. O ferimento não foi o problema, mas lutar naquela lama de esgoto ferrou tudo.

— Luca é um maldito vidente. Água, remédios, bastão. Começou alguma coisa?

— Sim, mas não sei se comecei o certo. Tá um pouco melhor. — Conteve um grunhido quando sentiu a palma de Cássio pressionar o curativo com força. Depois de uns minutos torturantes, a dor, o inchaço e o mau cheiro diminuíram.

— Aumenta o remédio, eu vou controlar a infecção até passar. — Depois que sua perna melhorou, percebeu que surgiu um buraco na mão de Cássio. A lesão escura diminuiu até sumir.

— Você não consegue fazer esse... sei-lá-que com... você sabe...

— Claro, porra. Eu sei me regenerar, e estou cego por diversão! Idiota! — Afastou a mão do outro num tapa. A voz baixou numa súplica. — Meu tio... pelo menos meu tio está...?

— Não. Sinto muito, Cássio. — Mauro foi na direção dele, Cássio parecia prestes a chorar, mas de repente acalmou-se e... Sorriu? Sorriu mesmo? — O que foi agora? Pirou de vez?

— Meu braço quebrou, perdi meu tio pra sempre e estou cego como uma parede, mas não tô mais no... naquele lugar. Você e Ângelo me tiraram do... você entendeu. E eu vou ser bom, Mauro. E vou te obrigar a ser bom, porque ninguém mais que eu amo vai pra lá. Sei lá quanto tempo passou aqui fora, mas pareceu o caralho da vida inteira.

— Talvez a cegueira passe. Ontem você parecia uma pizza muito queimada. Hoje só parece que passou tempo demais no sol. E seu tio...

— André. O nome dele é... era André Araújo.

— Seu tio André fazia monstros de lama, por que não um braço?

— Não dá. Eu entendi o que sou, e o poder original não criava coisas. É isso que eu faço, ou desfaço, agora.

— O que você quer dizer?

— Sabe aqueles livros de ciências da terceira série? Aqueles com a cadeia alimentar?

— Sei, e daí?

— Lembra daquela imagem no meio, que mostra tudo morto e se decompondo, se tornando a base da vida a seguir? Com as caveirinhas, as plantas murchas?

— Continua. Todo mundo já viu um desses.

— É o que eu faço agora. Eu sou parte da equipe que desmancha tudo, pro ciclo reiniciar. Eu não crio nada. Por isso os monstros de lama faziam tudo errado. A serpente não cria, só distorce algo que existia e nem isso faz direito. Eu posso... remover a decadência, mas não resolvo. Por isso o antibiótico. Se você não tomar esse remédio direito, volta tudo a ficar como estava.

— Ok, Dr. Araújo, prometo tomar o remédio na hora. Como você aprendeu tudo isso? O poder vem com tutorial?

— Nina me explicou. Estranho... não lembro quando. Quanto tempo apaguei?

— Um dia e meio.

Ele virou a cabeça, e era muito desagradável vê-lo com o olhar perdido à frente, a expressão de medo. Puxou-o num abraço, encostando-lhe a cabeça no peito.

— Sabe, você acordou, me salvou de uma infecção generalizada, estamos seguros... Pode relaxar agora.

Como se só esperasse ouvir isso, ouviu a respiração ficar cada vez mais alta e irregular.

— Eu tô cego, Mauro. Qual o sentido disso tudo? Tentei salvar meu tio, e agora ele tá morto! Como dá pra usar toda essa força sem ver porra nenhuma? — Alternava as frases com um choro entrecortado. — Será que eu nunca vou te deixar ter a própria vida? Tô cego, caralho!  


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

* Nas primeiras histórias de TMJ, Ângelo não decidia por um nome. Mauro decidiu manter a brincadeira, talvez pra deixar as coisas menos pesadas;

* Nunca se encara o manifestação física do Mal Primordial sem consequências. Cássio teve muita sorte de só perder a visão.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Meia Lua" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.