Meia Lua escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 33
Aqueles que encontram o caminho




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Abriu o olho de uma vez. Estava rodeado de cães famintos, no antigo parquinho infantil.  Não tirou o olho do mestiço castanho que o encarava. Mauro estava ao seu lado, as foices erguidas em desafio. Lembrava daquele dia. Tinha duas pernas e dois braços, e muita certeza de que iria morrer nos dentes de um dos animais à sua frente.

Algo entre as porcarias que comeram aquela semana tinha feito mal ao estômago de Mauro, e ele tinha febre e diarreia há dias. Estavam voltando pra casa, frustrados e com fome, quando a matilha os encurralou.

“Volta, Mau. Sobe em alguma coisa, eu te protejo.”

Viu o outro encapuzado correr trôpego até algum brinquedo atrás dele, e Cássio atacou os cachorros pra atrair atenção pra si. Levou apenas alguns segundos pra descobrir que foi uma ideia muito ruim.

Parecia sentir tudo de novo: quatro ou cinco cães mordendo e se afastando, dois deles presos no poncho enrolado no braço, vindo de todos os lados ao mesmo tempo. Bateu no trepa-trepa do parquinho com as costas, sentiu um braço febril tentar puxar-lhe pra cima, segurou-se na primeira trave que viu e içou-se para a segurança.

Toda vez que sonhava aquilo, torcia pra que pelo menos no sonho aquele cachorro infernal não alcançasse seu pé.

Claro que ele sempre alcançava. Sempre o mesmo barulho familiar de osso quebrando, sempre o mesmo guincho que escapava da sua boca. Só que na vida real, não houve o outro sarnento mordendo sua panturrilha.

Sentia-se puxado para baixo, de volta pra horda faminta. Podia ver os olhos arregalados de Mauro, vendo-o ser coberto de cachorros lá de cima, os braços em torno da cabeça numa proteção inútil.

“É só um sonho, é só um sonho...” repetia. Mais um maldito pesadelo realista demais, em que podia sentir tudo, a ponto de ter dificuldade de diferenciar do que realmente aconteceu no dia seguinte. Era tudo confusão e mordidas, e podia sentir os dentes de Garm atrás do seu pescoço, o arrastando pra longe. Então dois ou três animais foram chutados longe, e tudo tinha acabado de ficar pior.

Isso não é real. Ainda é a sua cabeça.

Mauro, o idiota suicida, pulou do brinquedo pra defendê-lo. Lutou, tentando levantá-lo, e quase podia ouvir a risada da Serpente ao ver Mauro cair também, puxado pela roupa pra longe. Não tornava menos doloroso saber que não era verdade ver aquele cachorro preto afundar os dentes na garganta do amigo, vazando sangue ao redor da máscara de lobo.  

Memória, pesadelo, ilusão, o que fosse, não podia ficar deitado vendo Mauro virar ração. Pôs-se de joelhos, a perna rasgada inútil. Kainin o protegia, uma capa espessa que não podia ver, o impedindo de entrar em pânico. Mas ver o lobo se debatendo, tentando alcançá-lo sem sucesso era demais pro seu controle. Estava morrendo de medo, sua vontade falhava, e mesmo com Kainin, queria se enrolar numa bola e fugir dali.

Quando o amigo parou de se mover, e os cães começaram a aparecer sujos de sangue até os olhos, alguma coisa passou em sua mente, como a sombra de um avião no chão, e ele começou a erguer-se, finalmente consciente. Podia sentir Kainin tão irritado quanto ele, dando-lhe toda força e rapidez que tinha.

Era aquilo. O insulto final.

“Quem você pensa que é?” Gritou, erguendo-se do meio da matilha. “Não sou seu brinquedo, porra! Cansei de você tentando me controlar! SAIA DAQUI!”

  O cadáver de Mauro foi erguido como uma marionete e uma voz muito familiar saía de trás da máscara suja:

— Você vai desistir. Conheço seus medos. Você é fraco, falho, covarde. Você irá quebrar, e quando quebrar, seu mundo será meu.

“Não vou! Eu não estou sozinho! Eu vou conseguir o poder do meu tio, mas você não vai usar! Fora!”

— Não está sozinho? Posso resolver esse problema.

A imagem de Mauro na sua frente começou a cair aos pedaços, como uma torre de blocos. Em seu lugar, uma imagem do lugar onde dormia, em tons de cinza. Podia ver Mauro vigiando ao redor, os olhos amarelos refletindo a luz, e tentáculos de escuridão ainda mais densa se aproximando. Mauro começou a se mexer, percebendo algo errado, recuando ante o toque da escuridão em seus pés.

— Me entregue o controle, e não o ferirei.

“Mentiroso”

Mentiroso.

— Desista, e a morte dele será rápida.

Podia ver os tentáculos cobrindo os pés de Mauro, avançando como um polvo faminto.

“Eu confio nele. Mauro também vai vencer você.”

 O mago ligou algo que parecia uma lanterna, e falou daquele jeito rosnado com que invocava sua magia, e os tentáculos caíam incendiando num estranho tom lilás. Podia sentir a consternação da Serpente, vendo o aparente humano comum erguer-se incólume, irradiando poder. Sibilando furiosa, ela começou a falar coisas numa linguagem antiga demais, que parecia corroer sua mente. Cássio não esperou o resultado: Correu na direção da voz e chocou-se com alguma coisa. A invocação foi interrompida, e Cássio atracou-se com a coisa que o ameaçava, até que entendeu e parou.

“Você disse 'Entregue o controle'. Quer dizer que, se eu não entregar, você não pode tomar de mim, ou já teria tomado.” O sorriso foi de um predador que finalmente encurralou a presa. “Escolheu o lugar errado pra brigar, cobrinha.

Podia ouvir um bater de asas, muito acima da sua cabeça que lhe inspirou confiança. Anos lendo quadrinhos e tendo sonhos sinistros lhe deram imaginação mais que suficiente. Abrindo as mãos e as erguendo como um maestro, invocou todos os seus pesadelos. Seu tio, idoso e deformado, levantando nuvens de pó; a Jumenta Voadora, encarando a serpente com suas órbitas vazias; Maga Li, no seu vestido escuro, e Cebola, como Guardião da Soleira, flutuando com sua capa, além de tantos outros.

Com um movimento sutil das mãos, toda aquela massa de assombrações correu para onde estivera a voz da serpente, que já não invocava nada e estava, podia sentir, muda de assombro. No meio dos atacantes, Cássio também corria, ansioso como estava pra expulsar aquela coisa da sua mente. Havia uma porta, Mauro disse. Tinha que encontrar como aquele troço maligno se infiltrava na sua cabeça. Seu amigo era ótimo pra identificar problemas, mas nunca dizia qual seria a solução. Como Marina dizia, um péssimo dublê de Mestre dos Mágicos, que batia palmas e dizia: Taí o problema; É seu, te vira!

Ângelo também o acompanhava em silêncio, guiando aquele javali humano na caçada ao mal. Sabia onde estava o problema, e ele perceberia também. Encontrou, e precisou da ajuda do anjo pra fechar a “porta”, que parecia mais com uma rachadura, mas ele é que não iria questionar o Doutor Esquisito.

Ou o anjo. De todos os que mudaram nos últimos anos, nenhum o assustava tanto quanto ele. Tinha medo (saudável, diria: prolongava a vida) de Luca, ou da instabilidade do Fred pré-Marina. Mas Ângelo... não deixara seu papel de anjo da guarda, mas sua alegria e espontaneidade se perderam; como se as lembranças o queimassem, e seu trabalho tivesse se tornado sua punição.  

— A Serpente não vai vencer, Ângelo. Eu não estou sozinho. Você também está aqui.

O pesadelo continuou do jeito habitual. O anjo dissipou no ar, seu rosto perfeito entre a dúvida e a satisfação.

Acordou com uma dor de cabeça infernal. O que até fazia sentido, considerando os demônios que fizeram da sua mente um clube de férias. Mauro ainda estava num sono pesado, curvado na sua frente. A casa parecia atacada por uma trepadeira muito irritada, quase não dava pra caminhar lá dentro.

Após conferir se tudo estava seguro de novo, começou a preparar o café da manhã. Mauro acordou com o cheiro de café. Abriu os olhos, e Cássio parecia o mesmo. Comeram em silêncio, e já estavam prestes a sair quando Mauro parou em frente à porta.

— Bom... Voltou bem depois de enfrentar um mal ancestral na sua mente. Então... parabéns. Estou feliz por você.

— Também venceu aquela miserável. Ela me mostrou, achando que mataria você. A expressão da cobra quando você chutou aquela bunda cósmica foi impagável.

Mauro sorriu por baixo da máscara.

— Obrigado por ficar, Mau. Por tudo.

— Nem um palavrão? Quem é você, e o que fez com Cássio?

— Vamos atrás do meu tio, seu fresco.

***

O parque que visitavam quando crianças aparecia no horizonte. Enquanto chegavam, nuvens acumulavam-se, anunciando chuva. A mata rareava ao redor, até só restarem árvores raquíticas e arbustos desfolhados. Viam muitas ossadas humanas, secas e meio desfeitas, num  chão escuro e lamacento, como se toda área tivesse sido inundada por esgoto.

Cássio franzia a testa, intrigado: Mesmo o mau cheiro diferente, como se até o ar fosse venenoso ali. Mauro sinalizou rápido: Fique atento, ele está perto.

O solo ergueu-se sem aviso, e os dois dispararam de volta pra mata. Era uma armadilha, e eles tinham caído completamente. Mauro rosnou alto uma magia de proteção, mas estava na metade quando Cássio o jogou no chão. Um jato de sujeira passou acima da cabeça deles, esburacando uma árvore próxima. Mauro, de costas no chão, sentia algo empurrando-o pra baixo. Quando entendeu o que via, o medo cravou-lhe garras de gelo na mente.

O que ouvia era o jato de sujeira virado pra eles. Cássio ainda estava ali, bloqueando o pior, o metal e sangue evaporando ao seu redor. Quando acabou, o ciborgue voltou-se e começou a atacar. A chuva começou, e logo parecia que todo o mundo desabava sobre suas cabeças.

Era agora. O triunfo ou a morte. Não parou pra avaliar suas chances, ou pra checar se Mauro o seguia; sabia que sim, pelo modo que se enchia de confiança e força. Desviou do raio seguinte, largando ou cortando a capa e as placas de metal conforme eles grudavam no esgoto. Seu tio — Ou aquilo que fora seu tio — aceitou o desafio, os olhos completamente negros e o sorriso que Cássio vira na noite anterior.

Resista, pequeno humano! — a Serpente bradava através do Capitão. — Ataque seu parente! Faça-o sofrer, destruindo você! As almas de vocês dois serão meu troféu por séculos!

Mauro estava além da fúria. Ao contrário do sobrinho, o Feio desistira, e a Serpente tomara o controle. Agora só podia assistir impotente, enquanto seu corpo tentava destruir seu único familiar. Pensar que Cássio veio por todo o caminho animado com a ideia de salvar aquele covarde o irritava além da conta.

Desviava dos raios e tentava invadir a mente do Feio, mas o demônio o repelia brincando. Suas pernas estavam muito feridas do primeiro ataque, mas o lobo absorvia a dor e o impelia a revidar. Atirava pedras e o distraía, invocando magias que sabia que ele tentaria interromper.

O Capitão não era apto a magia mais pura, como Mauro ou Ramona; a serpente contava com muito poder bruto, mas sua magia maligna ficava limitada demais. Milênios de poder e experiência cederam ante o desejo de vingança contra dois rapazes, e o mago contava com isso.

Apesar de tudo, eles não venceriam sozinhos, sabia. Eram dois cães latindo pra um tanque de guerra. Tentou imaginar a que ilusão a serpente reagiria, e uma voz familiar sussurrou-lhe “Sabujo de Deus”. Isso! Viu a máscara de javali ser jogada de lado.

— Feio! Sou eu, Cássio! Filho de Antenor, seu irmão! Não deixe esse troço no controle!

Com um grito, Capitão Feio voou até ele e se chocaram. Por um instante Cássio pensou que tinha a vantagem, até entender quanta força tinha o tio. Com uma das mãos no seu pescoço, começou a erguer-se novamente no ar. Com a outra mão, Feio esmigalhava o automail como se fosse de isopor.

Até ali, sentia esperança de salvá-lo. O Capitão retomaria o próprio corpo, os dois viveriam viajando e teriam o tempo em família que lhes fora roubado. Com a consciência indo embora e algo estalando na garganta, entendeu que não poderia. Cássio nunca podia salvar todo mundo.

E todas as vezes a exceção era seu tio André.

Isso! Olhe para mim! Quero ver a vida deixar seus olhos. Vocês dois são MEUS!

Soltou a mão que tentava livrar seu pescoço e enfiou a sai com toda a força no abdome do homem que o matava. Algo grande caiu nas costas do vilão e Cássio voltou a respirar, caindo no chão. Enxugou o rosto, ofegando, e olhou pra cima.

Algo subira nas costas do Feio, e preso pelas pernas, o retalhava. Era peludo, prateado, e o guincho da Serpente parecia medo. Conforme os golpes continuavam, Cássio sentia o poder rodeá-lo, testando sua força. Lutava pra respirar, enquanto a batalha continuava ali em cima.

O corpo do tio despencara metros à frente. Ao lado dele caiu o bicho peludo, tentando levantar como um brinquedo com defeito.

Cássio ergueu-se determinado. Desafiou o poder sujo. Impôs sua vontade a ela. Concentrado como estava, demorou a perceber a presença na sua frente.  

Como petróleo, algo viscoso vazou de seu tio e tornou-se algo comprido, que o encarou. Os olhos eram negros, como o resto, e o atraíam como a gravidade.

Alguém gritava muito longe, e parecia seu nome. Também ouvia asas. Enquanto o ar ficava mais raro e a consciência oscilava, o negro em torno das pupilas do ser incendiou-se.

Caiu.


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Notas finais do capítulo

* Usei a interpretação de Neil Gaiman dos lobisomens: "Sabujos de Deus consideram que sua transformação é um dom do Criador, e eles retribuem perseguindo Seus inimigos até os portões do Inferno" . Adorei a ideia de um lobisomem como caçador divino.

* Na saga da Torre Inversa, Cássio tomou o poder do tio com a ajuda da Magali para salvá-lo. Também não deu certo.

*Sim, a Serpente distorcia os pesadelos de Cássio para uma versão ainda mais assustadora, mas boa parte aconteceu. Cas realmente perdeu o pé após uma mordida de Garm, e Mauro estava muito doente pra ajudar. O osso quebrado e infeccionado o teria matado, se Luca não tivesse amputado-lhe o pé.
Lembrem que Odin conhecia muitas pessoas em cadeira de rodas, certamente conheceu alguém que sofreu amputação por conta de infecção.

*O Nyah! não aceita mudança de tipos de letras, ou de tamanho, então o texto ficou mais limitado. As falas em itálico sem travessão são de Kainin. As em negrito, da Serpente.

Muito obrigada a todos, e até o próximo capítulo.



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