Noite de neblina e sangue escrita por Ys Wanderer


Capítulo 2
Inocente


Notas iniciais do capítulo

Segundo capítulo. A fic não será longa, pois faz parte do desafio escrever em poucos capítulos.
Bjos



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Na rua, a chuva havia cedido um pouco e somente um sereno brando caia no momento que saiam, o que deixava toda a atmosfera com um ar triste e sombrio. Os dois correram para evitar se molhar e entraram rapidamente no carro, mas uma vez lá dentro eles pareciam não ter pressa nenhuma de voltar a esse assunto tão escabroso. Júlio os guiou vagarosamente pelos congestionamentos até uma lanchonete não muito perto da delegacia e o lugar foi escolhido por ter pouco movimento, assim não poderiam ser incomodados. Optaram pela mesa mais escondida possível, pediram cafés e, assim que se viram livres da sorridente garçonete, Odete abriu a pasta em cima da mesa, ainda sem acreditar no havia lido.

— Você não percebe o que aconteceu? — Odete não gritou, mas falou alto o suficiente para atrair alguns olhares. Ao perceber que exagerara ela logo suavizou o tom de voz. — Veja bem, a mãe de Lilian jurou que George Martins nunca havia entrado em sua casa, no entanto aqui diz que a perícia encontrou fios de cabelo no quarto da menina que não pertenciam nem a criança e nem a mãe, mas a algum homem. Por que isso não constava no relatório que me enviaram? Outra coisa que não se encaixa é o fato de que George só fugiu dias depois de ter sido notificado como suspeito, então não há desculpa para eles não terem recolhido seu material genético para fazer uma comparação. Isso não está se encaixando, Júlio, tem alguma coisa muita errada aí.

— E qual é a sua conclusão?

— A de que eles não o prenderam porque simplesmente não quiseram.

— Você acha que George foi protegido por alguém?

— Protegido não, mas usado para me fazer parecer desleixada e incompetente. Se havia fios de cabelo no quarto eles poderiam ser a prova concreta contra George, a certeza de que precisávamos de que ele sequestrou Lílian. Não consigo entender como puderam esconder justamente a prova que nos daria a certeza de quem fez isso... — Odete de repente parou de falar de novo e ficou fitando o vazio por alguns instantes. Ela então deixou sua mente brilhante vagar, juntando todas as peças, rumores e pistas em uma única e complexa teia.

Havia um suspeito, mas fora alimentar os pombos ele jamais cometera nenhum outro crime. O caso das meninas era terrível e todos queriam destroçar o culpado, contudo uma prova que poderia pôr fim ao caso simplesmente havia desaparecido. Odete então chegou a uma conclusão bastante absurda, mas se havia uma coisa no mundo que ela aprendera em todos os seus anos na polícia era que o absurdo muitas vezes poderia ser o caminho certo.

— Não foi ele — ela fitou Júlio após respirar bem fundo. — Não deve ter sido ele.

— Como assim? Ele quem — o detetive estava mais do que perdido olhando para a mulher.

— George. George Martins. Ele é inocente.

— Ah, Odete, pelo amor de Deus — Júlio quase se engasgou com o seu café quente. — Não me diga que você está achando que George não cometeu esses crimes?

— Mas está bem na nossa cara, Júlio, você não percebe? George pode não ser o autor desses crimes — ela falou pausadamente, como se a resposta estivesse durante todo esse tempo na frente dela, facilmente esperando apenas para ser desenrolada. — Como eu pude ser tão tonta?

— Por que você acha isso? — Júlio perguntou sem se alterar, embora estivesse assustado com o que ela dizia. Se estivesse com qualquer outro policial diria ao cara o quanto isso parecia loucura, pois todas as suspeitas recaiam sobre George. Mas como Odete estava muito nervosa ele atribuiu esse “deslize” a uma esperança cega de encontrar uma solução. — Não faz nenhum sentido — continuou. — De onde você tirou essa ideia?

— Veja bem — ela sabia que ele não a levava a sério nesse momento, mas não se incomodou —, George foi colocado como suspeito principal, foi plantada em todos nós a certeza de que havia sido ele, mas a prova crucial que poderia acusá-lo, os fios de cabelo, foram extraviados. Temos o depoimento da mãe, que afirma que o homem deu doces e brinquedos para Lílian e temos os depoimentos dos vizinhos, que disseram ser ele um homem muito reservado. Puxamos a ficha dele e não havia nada, sequer uma multa de trânsito. Fomos levados a crer que ele era o culpado, mas fizemos isso porque nenhuma outra pessoa se encaixava no perfil do que pensamos ser o de um psicopata. Depois de tudo isso a conclusão a que cheguei é a de que tudo foi feito de modo a George levar a culpa. Só ele e ninguém mais.

— Mas o homem fugiu, e até onde eu sei isso já é prova mais do que suficiente.

— Sim, ele fugiu — ela repetiu, furiosa por ter deixado de perceber algo tão importante. — Fugiu sem levar nada de sua casa, nem as roupas, o dinheiro embaixo do colchão, nem mesmo a escova de dentes. O homem simplesmente desapareceu no ar, Júlio, como num passe de mágica. Completamente apagado.

Os dois ficaram se olhando por alguns segundos, ele já bastante preocupado com as coisas que ela dizia. O olhar zombeteiro dele só fez aumentar ainda mais a irritação dela, então Júlio decidiu que seria muito melhor para a pele dele entrar no seu jogo do que ignorá-la.

— Ok, ok — ele suspirou enquanto ela revirava os olhos. — Você acha então que deram um “fim” nele? — Júlio sentiu vontade de gargalhar, mas quando recebeu um olhar duro da detetive finalmente percebeu que ela não estava brincando. — Não pode ser, Odete, pelo amor de Deus — mais silêncio se instalou entre os dois, mas dessa vez ele começava a achar que tudo não era um desvario dela. — Quem cometeria esses crimes então?

— Não sei. Mas é isso que precisamos descobrir. Para começar, precisamos de uma lista com os nomes de todos os vizinhos das vítimas, tanto os de Lílian quando os da outra garota. Pegue os registros dos donos das casas, quero saber quem mora há muitos anos no mesmo lugar e quem acabou de se mudar. Provavelmente vamos encontrar algo em comum entre os dois casos que deixamos passar despercebido por estarmos cegos. George era a única direção e nós, burros, simplesmente a seguimos como patinhos idiotas. Há algo de muito errado aí, então precisamos encontrar o outro lado desse fio o mais rápido possível.

Júlio apenas balançou a cabeça sem dizer nada, pois confiava na detetive e nos seus instintos. Embora tenha duvidado no início ele começou a perceber que havia sentido nas desconfianças dela, escolhendo então apoiá-la. Era uma mistura de admiração, respeito, mas também era outra coisa mais. A tensão sexual que havia entre os dois era perceptível e mesmo o momento não sendo propício ele se lembrou do dia em que finalmente pode rasgar as roupas dela enquanto ela lhe deixava arranhões profundos.

— Pode contar comigo — ele disse, mas em sua boca ficou o amargo de não ter coragem para dizer mais. — Vamos resolver isso juntos.

Os dois terminaram seus cafés e Júlio saiu primeiro para buscar o carro que estava estacionado do outro lado da rua. Como a chuva voltara a cair pesada, Odete ficou esperando na porta do estabelecimento, aproveitando o momento para checar alguns e-mails. Naquele momento ela se odiava mais do que nunca, pois nunca em todos os seus anos de serviço ela cometera tantos erros.

Talvez tenha sido culpa das últimas conversas que tive com minha mãe — Odete pensou. A velha senhora estava ficando doente frequentemente e já começara a reclamar que morreria sem ver a filha casada e segurando um monte de bebês. Então teve que ouvir calada pela milésima vez a mãe culpando-a por ter desperdiçado sua “grande chance” quando Christian pedira sua mão naquele natal e ela recusara. Mas isso já havia acontecido há tantos anos e Christian sequer estava vivo mais... Pensou em Júlio e no jeito como aquilo poderia ser explosivo... Coisas demais, problemas demais. Não tirava férias há pelo menos seis anos. E seu eu fosse um homem duvido que estaria sendo cobrada por coisas ridiculamente absurdas como essas — ela reclamou.

Os pensamentos a deixaram apática, todavia sua concentração fora rompida assim que escutou alguém sussurrar o seu nome, alguém com uma voz suave e melodiosa, quase sobrenatural. Ela procurou com os olhos a origem do chamado e quando seus olhos miraram o outro lado da rua o susto que levou foi tão intenso que quase a fez cair no chão.

Havia uma criança lhe fitando.

Lílian.

A criança era Lílian.

A menina estava usando um vestidinho azul claro com estampa de flores, sapatos cor de rosa e o cabelo preso com uma graciosa fitinha vermelha. Essas eram as roupas que Lilian estava usando quando foi vista pela última vez, mas não havia nenhuma graça em seu rosto como nas fotos que Odete recebera da mãe da garota.

No rosto dela escorriam juntos sangue e chuva.

— Odete! — a criança chamava, a deixando incapacitada e hipnotizada. — Eu sinto muito, por favor. — A menina ergueu a mãozinha manchada de sangue e a chamou. — Odete!

— Odete!

 A voz agora pertencia a Júlio que a chamava impacientemente, a tirando do transe no qual ela se viu momentaneamente presa. A detetive então virou o rosto para ele por puro reflexo, e quando voltou a olhar para frente a menina havia desaparecido.

Será que estou ficando louca? — ela sussurrou para si própria, sem entender o que tinha presenciado. Odete era cética em relação ao sobrenatural, então prometeu que pararia de fumar e beber tanto álcool e café.

— Você está muito pálida. Está tudo bem com você? — Júlio perguntou, preocupado, assim que ela entrou e sentou no banco ao seu lado.

Não.

— Sim, estou bem — ela respondeu, fingindo um sorriso genuíno. — Não se preocupe, é só cansaço. É que há dias eu não consigo dormir bem.

E talvez eu jamais consiga de novo” — lamentou silenciosamente.

Jamais.

 

 


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