As Raízes de Yggdrasil escrita por The White Searcher


Capítulo 9
Capítulo 9 – O rosado faminto




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Os feixes luminosos se estendiam por toda a floresta a Este da capital, criando cortinas no meio da escuridão, e iluminando o gramado, através das pequenas aberturas entre as folhas que balançavam ao vento. As aves voavam de galho em galho, chilreando e quebrando o silêncio além do seu bater de asas. Esquilos transportavam os alimentos encontrados em suas bochechas, se movendo agilmente por entre as ramificações, enquanto os predadores noturnos pacientemente aguardavam em suas tocas profundas nos troncos das árvores mais anciãs, pelo crepúsculo que anunciaria a noite, para iniciarem sua longa caçada. Era possível ouvir ao longe, as águas correntes de um rio baixio que contornava toda Midgard, desde o Norte, desaguando totalmente a Sul, nas águas profundas do oceano.
As passadas, apesar de firmes o suficiente para findar uma marca no gramado e na terra, eram silenciosas devido ao material que constituía as botas dos aprendizes. Também, não tinham material suficiente em seus corpos, fora as mochilas, que provocasse um escarcéu em sua caminhada, então maioria do tempo, permaneceram despercebidos, não se afastando mais do que cinco metros um do outro. O silêncio os tomava, enquanto atentos encaravam o chão à busca de estilhaços daquele cristal, ou de preferência, de um deles inteiro.

— Achei. – Disse o ruivo, fazendo vibrar a madeira das árvores ao seu redor, assim como os pássaros que alçaram num voo frenético, devido ao susto.

— Foi? Deixa eu ver! – Respondeu Cenia, aproximando-se do rapaz ao contornar uma árvore ainda jovem, talvez a mais jovem que havia visto até agora, apesar de suas raízes já saírem do solo, como se buscassem consumir o mundo. A floresta se resumia àquilo. Gramado, galhos quebrados, e raízes grossas que emergiam da terra num labirinto intenso, emaranhando-se, ao ponto de não dar para saber a qual árvore pertencia tal raiz.

Nero permanecia agachado, com o joelho destro encostando na terra, enquanto as mãos tocavam cuidadosamente um pedaço de cristal que refletia o brilho de um raio luminoso.

— Pela forma como está sendo iluminado… - Era apenas um fragmento, um estilhaço do inteiro que a alquimista havia mostrado, mas o curioso, é que estava sendo iluminado perfeitamente por um buraco provocado na copa das árvores. Ao olhar para cima, era percetível que as folhas haviam sido recortadas em sua queda, assim como galhos, ao invés de quebrados. – Este objeto não quebra, e sim corta. – Após toda aquela cautela, por fim o pegou na mão. Era pesado, ao contrário do que aparentava, já que não tinha mais do que cinco centímetros. Por cada centímetro, deveria pesar uns bons dois quilos de material denso.

— Bem visto! Você até que é inteligente. – Disse Cenia com um tom irônico, estampado tanto em seu tom de voz, como em seu rosto, com um sorriso formado nos lábios. – Mas pensei que era um inteiro. – E num piscar de olhos, retirou das mãos do aprendiz, o pedaço de cristal, percebendo também seu peso. – Caramba… É pesado!

— Também reparei nisso. – Deu de ombros ao vê-la pegar no objeto e arremessar com cuidado ao ar, vendo se cairia como o outro, mas seu medo era tanto, que a impediu de arremessar mais alto do que devia. Ergueu o corpo, olhando em volta enquanto se espreguiçava. – Talvez não devemos olhar para o chão. – Ergueu alto as mãos, estalando completamente as costas, e então, começou a alongar suas pernas.

— Está se preparando para uma maratona? – Brincou a garota, guardando a peça numa alça alcançável na lateral da sua mochila. – Olhar para cima?

— Isso. E até já sei onde. – Abriu um sorriso em seus lábios, começando uma corrida rápida por entre as árvores.

Cenia nada pôde fazer, senão tentar acompanhar o ágil aprendiz, que passara maior parte da sua vida até então, nas ruas da capital do deserto de Sograt, Morroc, o que o tornara um bom corredor. Cada obstáculo era ultrapassado sem real esforço, pulando por cima das raízes rasteiras, e deslizando por baixo das que criavam arcos no ar. Passos ligeiros para as laterais, para se esquivar das árvores, até que por fim, alcançou um grande carvalho.
Era velho, podia-se dizer. Impondo respeito pelo tamanho de seu tronco, que poderia abranger três casas comuns de uma vila, com ramificações que pareciam se estender por toda a floresta de forma dominante. Passando por baixo de algumas de suas raízes, como se saíssem do próprio tronco, um pequeno riacho que se desviava do original, para uma poça transformada em lagoa, que abrangia dois metros em diâmetro, e provavelmente um de altura. Eram águas limpas, mas contendo apenas as larvas de sapos e rãs, cujos pais não estavam à vista até então. A penumbra rondaria ali, mas uma penumbra bela e calma, tranquilizante para a alma de qualquer animal, que poderia refrescar-se naquela água em harmonia com a força mais forte da natureza. A majestosa copa, não deixava adentrar a luz do grande fruto da árvore da vida, com exceção de um único ponto que fendia toda a calmaria, para uma clareira que iluminava o chão, mas sem conter qualquer vestígio do cristal.

— Finalmente te alcancei! – Disse Cenia, tropeçando na última passada da corrida para alcançar Nero, e assim, caindo no espaço que não teria nenhum arvoredo. Sua queda era amenizada pelo gramado, e o baque fora o suficiente para centenas de rãs saltarem em euforia em direção às águas, pulando nas mesmas, e se escondendo na lama em seu fundo.

Os olhos de Nero se maravilharam, e quase cedeu em correr atrás de uma mais jovem e despreparada, apenas para sentir o prazer da caça. Mas conteve esta vontade, dando uma única passada em frente e analisando a pequena clareira que se formava. Olhou primeiro para o chão, para a forma que a luz emitia no gramado, contemplando também uma fileira de formigas organizadas. Então, encarou a copa, percebendo sua forma rasgada e não quebrada, de algo que havia ali caído.

— Levante-se. – Disse Nero, pegando o gládio que estava preso no cinto, e o empunhando apenas com a mão destra. Sua face se tornava séria, e as íris que ostentava da coloração dourada, se tingia na tonalidade escarlate, emitindo um brilho próprio. Sua pupila se findou num único rasgo vertical, e atentos, encararam cada canto do local. As pernas se afastaram, assim como os braços, e os joelhos se dobraram levemente, como havia aprendido nas batalhas clandestinas.

— Quanta seriedade. – Disse a garota, erguendo o corpo e sacudindo as vestes. Ao olhar para o rapaz, tomou também uma postura mais séria, segurando o gládio igualmente pela destra, e adquirindo uma postura parecida, mas mais relaxada. – Assim até me deixa nervosa… - Falou mais baixo. – Viu algo?

— O cristal caiu aqui, mas não está em lugar algum. O buraco também está abaixo do meu pé esquerdo, mas não tem nada lá. – Era óbvio o que ia dizer, mas decidiu dizê-lo assim mesmo. – Alguma coisa o pegou. E sabe-se lá o que pode acontecer quando uma criatura entra em contacto com isto.

Era cauteloso, algo que havia aprendido da forma mais difícil possível nas vielas de Morroc, o que provocou uma tensão sem igual no casal que permaneceu imóvel por um longo minuto. Naquele momento, nem o vento ousou soprar. As aves não chilreavam por aqueles lados, e as rãs mantiveram seu silêncio perturbador. A luz pareceu diminuir, abraçando tudo numa imensa cortina escura, quando por fim ouviram um estalar. Galhos quebrando com o som que parecia o de uma única passada vinda logo em frente, algo em sua direção. Então, com um espaçamento pequeno, outro barulho de galhos quebrando.
O coração do rapaz palpitava, ansioso e nervoso. Suas mãos suavam, o que provocou que o mesmo segurasse com mais força no cabo da sua arma, para que esta não escorregasse com o peso de sua lâmina desajeitada. A boca numa postura neutra, se descompassou com a respiração ofegante, o qual tentava acalmar com suspiros baixos.

E então, da escuridão, emergiu o tão aguardado e suposto inimigo. Saltitando alegremente, com uma faceta boba, a criatura gelatinosa e rósea que saiu aos saltos da negritude. Era um Poring. Uma criatura da região, totalmente inofensiva, que devora tudo que encontra sem pensar duas vezes, especialmente, se tiver um cheiro diferente, ou textura, ou o que for mais brilhante. Estava perdido, claro, deambulante por entre as árvores, e por ter sua composição quase toda por água, beirava a transparência.

— Veja, Nero! – Falou Cenia em meio a risadas, guardando sua arma no cinto novamente. – O seu tão esperado inimigo, hahaha!

— Cale a boca. – Disse o rapaz, guardando também a espada, mas desatando em risadas, e agradecendo a Freya por não ser um bandido. Seus olhos retomavam o brilho dourado de outrora.

— E veja só, o que ele andou comendo. – Apontou a aprendiz para o Poring que saltitava perto da margem da água, como se quisesse beber. – Devia estar faminto.

E no interior da pobre criatura que não teria mais do que cinquenta centímetros de altura, balançava a cada saltitada, o cristal tão procurado pelos dois. Nero riu mais ainda, pelo animal ser tão estúpido ao ponto de comer algo que havia caído do céu. Aproximou-se do mesmo em passadas leves, tentando não o assustar, mas após trocar olhares com o mesmo, percebeu que era inteiramente dócil, e não temia as pessoas. O pegou nos braços, apertando levemente seu corpo enquanto mantinha a boca do mesmo para a frente, o que provocou a criatura vomitar o cristal, o qual caiu na terra.

— Você pega nele. – A garota protestou, sem a mínima vontade de pegar em algo agora gosmento por ter sido vomitado pela criatura mais fofa à face de Midgard, a qual pulou para o chão e começou a “correr” na direção oposta. – E fugiu!

— Pelo menos encontramos, sua nojentinha. – Respondeu, animado por terminar a missão mais cedo do que realmente esperava, apesar de ter perdido a noção do tempo entre tanto arvoredo. Chutou o cristal para a água, com a intuição de o limpar afundando-o, mas este não o fez. Boiou como se fosse oco em seu interior, e extremamente leve, apesar de que seu fragmento havia pesado facilmente cinco quilos. Também, o chute não precisou de grande força para mover o objeto, o que impressionou o rapaz. – Este parece bem mais leve. – O girou na água, e então, o pegou após ter certeza de que estava limpo. Seu peso parecia neutro, o que tornava aquilo mais estranho ainda. O pousou ao lado, e se afastou dois metros. – Você corre os testes, já que tem posse do material.

— Você só quer dar uma volta pela floresta sozinho, não é?

— Talvez.

— Já está até indo! – Reclamou a moça, aproximando-se do cristal e se abaixando ao seu lado. Retirou da mochila os frascos contendo os testes da alquimista, e seus olhos acompanharam o rapaz se afastar na floresta.

☙❧

Os testes tomaram partido no decorrer dos minutos seguintes. Nero, explorou a floresta até ter o vislumbre das calmas águas do riacho que percorria toda Midgard, imaginando que em questão de minutos, a água que agora encarava, estaria desaguando no mar, em uma viagem que tomaria horas em caminhada apressada. Dali, conseguira também ver o brilho do fruto de Yggdrasil, sempre altivo na posição estática, e diminuindo pouco a pouco, até tomar uma coloração diferente.
Então retornavam para o acampamento, espelhando o caminho outrora usado para alcançar o grande carvalho. Seria mentir, caso afirmasse que não tentaram procurar o pequeno Poring que podia estar perdido pela floresta, mas não havia rasto de sua existência, como se nem tivesse por ali passado.

Já no acampamento, Ray conversava alegremente com um homem de armadura e porte grande. Suas placas metálicas e prateadas, refletiam os brilhos do sol, assim como as imagens ofuscadas em torno de si. Preso das ombreiras e descendo graciosamente pelas costas, o manto de tecido leve e escarlate que balançava ao vento, ainda mantendo seu perfeito estado, como se tivesse saído agora do alfaiate. Mas antes que pudessem saudar o homem de cabelos alvos e olhos rubros, este se encaminhou à montaria própria dos cavaleiros, um Peco Peco.

Aves bípedes que perderam a capacidade de alçar voo pelos céus devido a seu grande tamanho e peso. Os menores teriam um metro e meio, mas os maiores podiam chegar até um metro a mais de altura. Eram fortes e velozes, ostentando de cores fortes, como dourado, laranja, e um bico curvo e pesado, alternando entre várias tonalidades de azul. Em volta de seus olhos, um tufão de vermelho, e uma cauda, que nos casos mais raros, exibia as mesmas cores do arco-íris.
Apesar de geralmente serem animais selvagens, ferozes e com pouca inteligência, os domesticados eram criados em cativeiro, e assumiam uma postura totalmente reversa aos seus relativos selvagens. Eram altivos, inteligentes e obedientes, como aquele, que mantinha alto sua cabeça erguida pelo pescoço, mantendo sempre os olhos no dono que se encaminhou ao próprio, e o montou sem dificuldade alguma.
Mas antes que tivessem a chance de cumprimentar o cavaleiro, este disparou, com um sorriso desenhado em seus lábios, despreocupado, mas veloz graças ao animal, correndo pelo prado.

— Ah! Aí estão vocês! – Disse Ray de imediato, como se sentisse a aproximação dos aprendizes, que educadamente se postaram como devido. Corpos eretos, exemplares, sem um único movimento ou espasmo muscular. Por algum motivo, Nero até conseguia permanecer sem pestanejar, tanto tempo quanto fosse necessário. – Trouxeram a amostra? – A mulher mostrou um grande sorriso de animação, ficando de pé à frente dos novatos, e apoiando as mãos nas próprias coxas, curvando levemente o tronco.

— A amostra evaporou! – Disse Cenia de imediato, se retendo logo em seguida de comentários posteriores.

— É mesmo? – O sorriso desapareceu, se mostrando levemente desapontada. – E como isso aconteceu?

— Eu apliquei a dose que ordenou, senhorita Ray. E ao aplicar o terceiro tubo de ensaio, a substância virou uma gosma, e então evaporou no ar! – E se calou novamente, dando um relatório.

— Entendo… Ele tinha algo de curioso? – Perguntou a Alquimista, aproximando-se da mesma e pegando um pequeno bloco de notas, e uma pena já encharcada na tinta.

— Era leve, diferente dos fragmentos. – Continuou Nero, tentando manter o tom de voz sério de Cenia, e não o desinteressado sobre o assunto. – O chutei com facilidade, ele rolou. Boiou em água. – Hesitou brevemente para concluir o testemunho, mas por fim cuspiu as palavras. – E não pareceu venenoso para um Poring.

— Um Poring estava passeando no meio da floresta? – Perguntou a alquimista, dando algumas risadinhas enquanto escrevia, talvez com exatidão, o que os aprendizes ditavam.

— É a verdade. – Disseram as crianças em simultâneo.

Olhando em volta, o ruivo não viu mais ninguém no acampamento, fora a mulher em roupas de exploradora. As tendas haviam desaparecido completamente, e sobrava apenas a mesa, o caldeirão, e algumas caixas. Decidiu conter a curiosidade.

— Bem. – Continuou a alquimista. – Podem voltar para Poya. – E terminando de escrever com a pena, pareceu rabiscar levemente na parte de baixo da folha, e a arrancou. A entregou a Cenia, que graciosamente balançou o papel para secar a tinta, e então, o dobrou. – Levem isso para a vossa comandante, ou seja lá o que ela for. Ajudaram bastante, rapazes!

Ambos assentiram positivamente e suspiraram de alívio ao terem sua última tarefa concluída. Conversaram por alguns minutos, até o cenário ser tomado pela coloração laranja do crepúsculo. O céu não mais pareceu azul, e sim róseo como aquele Poring que saltitou pela floresta. Receberam uma boa gorjeta em Zeny, para gastarem com “doces e afins, coisas de criança”, e foram despachados pelos grandalhões que chegaram com carruagens puxadas por Pecos maiores.

Então, seguiram seus caminhos, em direção ao acampamento.


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