As Raízes de Yggdrasil escrita por The White Searcher


Capítulo 10
Capítulo 10 – O mestre da calamidade


Notas iniciais do capítulo

Devo alertar que mudei o nome das cidades devido a direitos sobre a minha história. Decidi que será apenas uma imagem vaga da obra original, e modificarei o máximo possível.

Cidades - Midgard:

Prontera - Fial
Morroc - Amar'sin
Payon - Casron
Alberta - Porto de Yauhjaf
Comodo - Lagli
Geffen - Nazdam
Glast Heim - Cidade sem Nome
Aldebaran - Zothas
Izlude - Isla

Cidades - República de Veniah (Arunafeltz):

Rachel - Veniah
Einbroch - Runpak
Einbech - Ranpek
Juno - Borngha
Hugel - Hudhol
Veins - Lebo



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Durante seu caminho, trombaram com aquele enorme rochedo ao qual chamavam de colina central, contendo o amontoado de árvores que não mais seguravam os fabres famintos pelas folhas verdes. Para humanos, claro, teriam um gosto azedo e até mesmo um pouco ácido, mas por algum motivo, aquelas criaturas amavam aquele gosto, e os nutrientes que lhe eram fornecidos.
Se banhando nos últimos raios luminosos oferecidos pelo grande fruto da árvore da vida, e encarando os milhares de pontinhos pequenos que surgiam preenchendo todo o outrora vazio azul, o herói antes visto no acampamento da alquimista. Ainda ataviado pela armadura de prata que apenas Lordes tinham direito a usar, e uma espada de duas mãos encostada na colina, com sua bainha em couro. Ambas as mãos descansavam na própria nuca, servindo de travesseiro, enquanto encostava totalmente as costas na estrutura térrea, e o traseiro assente no chão. Estava obviamente relaxado, com um largo sorriso estampado em seu rosto, enquanto um poring descansava ao seu lado direito, aproveitando-se de seu calor, e do fruto da árvore da vida, para dormir tranquilamente, ao ponto de uma bolha gosmosa se formar em sua boca. À esquerda do cavaleiro, aquela montaria tão chamativa e altiva, na mesma postura que haviam visto antes, e já com os olhos nos aprendizes.

— Ah. São vocês. – Disse o Lorde, espreguiçando o corpo, eximido de qualquer tarefa, e aproveitando o tempo livre como qualquer um aproveitaria uma folga.

Os aprendizes obviamente se aproximaram, num silêncio que chegava a ser perturbador, quebrado apenas pelo vento que rodopiava ao alcançar o albino. Ao lado do mesmo, a gosma rósea começou a saltar animada, alternando o foco dos pequenos olhos que mais pareciam botões negros, entre Nero, Cenia, e seu suposto dono.

— Foram estes, não foram? – Seu sorriso se abriu mais, e os olhos carmesim focaram a pequena criatura agitada. A mão canhota lhe afagou a cabeça, ou no caso, o corpo, já que era um por inteiro, e desviou a atenção para os rapazes, fechando seus olhos num sorriso gentil.

Cenia corou, sentindo seu rosto fervendo e o coração pulsando, como se estivesse presenciando aquele amor juvenil, e de forma impulsiva, recuou levemente para trás do ruivo, o empurrando com delicadeza.

— Fale com ele, Nero. – Disse num sussurro que foi levado pelo vento, e Nero suspirou, fazendo uma cara feia, aproximando-se do Lorde.

Seus olhos encararam o homem por breves momentos, mas sua atenção total foi voltada à espada ao seu lado. Era grande, e elegante, com um punho envolto por um material azul vivo, e um guarda mão em puro ouro. Sua lâmina também deveria ser em prata refinada. Como diziam os cavaleiros que almejavam o alto patente… “Uma mistura de metais sólidos que geraram a perfeita combinação em uma lâmina cujo fio jamais se perde. Sua extensão prateada jamais se desgasta ou quebra. Apesar de tudo, é uma espada neutra, capaz de suportar o peso de qualquer elemento imposto sobre si.” Pareceu ouvir tais palavras em sua mente, se distraindo acidentalmente.

— Gostou da espada? – Questionou o homem com sua voz suave como o uivo do vento, que pareceu realmente longo daquela vez. – Como a nomearia? – E continuou com perguntas, agarrando a arma e a puxando para perto do próprio corpo, por fim desencostando as costas da terra. O manto escarlate da armadura dos Lordes, estava aberto e espalhado pelo chão, protegendo o material sólido de qualquer sujidade, já que o tecido não seria aderente.

— É uma bela espada. – Respondeu com sinceridade, sentindo um enorme peso soltar-se de seus ombros, os relaxando ao admitir que admirava a arma. Mas relutou quando era necessário nomear a espada.

Não precisou pensar por muito, ao que o cavaleiro ergueu o robusto corpo, sempre mantendo aquele sorriso afável para as crianças.

— Colapso. – Ditou o nome, e encaixou o cume de couro na terra, o segurando com a canhota. Os dedos da mão destra envolveram um a um o punho num intenso azul, e sacou a espada de forma tão lenta e solenemente. Sua lâmina espelhava a imagem dos aprendizes, e para o Lorde, espelharia a própria, de tão limpa. Reluziu com a luz que incidiu sobre sua estrutura ao ser sacada por completo, um brilho que dançou pelo fio afiado, até alcançar seu cume e se dissipar. – Colapso é seu nome.

Por vários momentos, ficou calado, encarando a espada que o homem carregava com tanto orgulho e vigor, a puxando para perto do corpo, e manejando com todo o cuidado do mundo. Pousou a bainha ao lado, deixando a espada na horizontal, para que ambas as mãos ostentassem seu peso exagerado.

— Por quê Colapso? – Por fim quebrou o silêncio, com seu timbre que pareceu vibrar a lâmina, de tão mágica que esta parecia. Fascinado, nem se deu conta que seus olhos haviam alternado entre a coloração escarlate que sempre carregavam de forma pesada, para a dourada tão pura, inocente e bela. Assim como não se deu conta que as mãos outrora pequenas, e agora quase as de um ferreiro, dedilhavam o material tão liso que refletia sua imagem perfeitamente.

— Isso é algo indecifrável. – Ditou o senhor cavaleiro, deixando que o rapaz dedilhasse sua espada, mas a segurando como se fosse a própria esposa. O sorriso se alargou com a curiosidade do mesmo. – Jamais conseguiremos explicar o motivo pelo qual nomeamos nossas espadas. Elas são partes de nós, então, geralmente… Nomeamos com alguma palavra que gostamos, ou que tenha significado que apenas nós percebemos.

Os aprendizes assentiram com a cabeça, compreendendo a explicação do mais velho, e por fim se afastando, dando lugar ao homem para guardar sua espada, o qual fazia exatamente isso.
O Lorde suspirou, voltando a pousar a Colapso ao lado da colina, a qual pareceu tremer com o baque seco entre o pomo e a terra.

— Devo agradecer, por cuidarem da minha mascote. – Seus olhos rubros focaram os de Nero, notando que estavam diferentes, até mesmo na pupila que não era mais tão fina quanto um alfinete. Apontou para o Poring, que continuava agitado como estaria antes.

— O encontramos na floresta! – Disse Cenia, sempre animada e com um largo sorriso, como seriam todos de sua linhagem de espadachins. Saltou das costas do rapaz, para a frente do Lorde, levando ambas as mãos atrás das próprias costas, contendo sua vergonha.

— É. Ele meio que carregava algo importante nosso. – Admitiu Nero, desviando o olhar daquela cena, como se sentisse uma pitada de ciúmes em seu interior, mas logo se conteve de tais sentimentos, e encarou Seyren que deu algumas risadas graciosas.

— Eu sou Seyren. – Disse com vigor, alcançando ao vento com todo seu orgulho e peito estufado. – Da linhagem de mestres espadachins, Windsor, candidatos ao trono.

— Eu sou Cenia! – Imitou totalmente a postura e a forma de falar de Seyren, parecendo até cômico aos olhos do rapaz. – Da linhagem de mestres espadachins, Egnigem!

Um silêncio constrangedor se formou, e ambos os que haviam se apresentado se voltaram de frente para o ruivo, o qual suspirou e cuspiu o próprio nome.

— Nero… - E se calou.

— Nero..? – Cenia e Seyren falaram em simultâneo.

— Nero Cyprianus.

— Jamais ouvira esse sobrenome. – Comentou o albino, levando a destra até o próprio queixo.

— É bem peculiar, não é mesmo? – Se voltou Cenia para o cavaleiro, reconhecendo-o como da própria espécie.

— Sim, de fato. Talvez eu deva pesquisar depois qual sua linhagem, garoto. – Era como se lesse a mente de Nero, enquanto lhe afagava os cabelos de forma divertida, deixando sair aquelas gargalhadas graciosas, que apenas nobres conseguiriam. Parecia saber que Nero nada sabia sobre seu sobrenome, seu significado, de onde vinha… Sua missão.

O badalar dos sinos podia ser ouvido ao longe vindo da capital de Midgard. Um badalar que pouco durou, como se convocando alguém em específico em código morse.

— Bem. Estão me chamando. – Disse o albino, apressadamente pegando a espada e amarrando as alças de couro da bainha, ao couro da cela do Peco. Então o montou, e o Poring pulou com certo esforço para a traseira da ave, se encostando às costas do homem, entre seu manto, e o próprio. – Devo ir, rapazes. Continuem se esforçando! – O animal sempre altivo passou pelos aprendizes, antes de romper o ar numa corrida tão ágil e célere, que pareceu competir com o próprio vento, deixando solitários ambos os aprendizes.

— E nos deixou aqui sozinhos. – Disse Cenia, ainda mantendo o belo sorriso em sua face de criança.

— Mas a espada era legal. – Nero continuou, ainda exaltado e sonhando alto com aquela espada. Seu toque frio que acalentou sua alma. Até seu nome parecia elegante, agora que pensava nele.

— Se apaixonou mais pela espada, do que pelo Lorde ser um dos candidatos ao trono. Mas que bobalhão. – E bateu a nuca do rapaz com a palma da destra.

— Não me culpe.

— Então já decidiu o que quer ser além de espadachim?

— Talvez eu tenha decidido… A armadura não era tão legal.

— Sabe que o uniforme só é restritamente necessário próximo à capital. – A garota riu.

— Ainda assim. Seria quebrar as regras não o usar em todas as ocasiões. E isso não combina nada com cavaleiros. Quebrar as regras, e tal.

— É, talvez tenha um pouco de razão. – Concordou Cenia.

E por minutos trocaram palavras, pensamentos, sonhos que divagavam em sua mente jovem e precoce. Imaginaram-se heróis de histórias, como as dos livros. Fortes suficientes para abater qualquer tipo de demônios e findar qualquer encrenca apenas alcançando o campo de batalha. Montar um peco com tanto vigor quanto Seyren o fazia, e carregar uma lâmina tão bela quanto aquela. “Uma mistura de metais sólidos que geraram a perfeita combinação em uma lâmina cujo fio jamais se perde. Sua extensão prateada jamais se desgasta ou quebra. Apesar de tudo, é uma espada neutra, capaz de suportar o peso de qualquer elemento imposto sobre si.”

E em toda a distração, não perceberam o tempo passar, assim como não perceberam uma figura atrás de si.

— Olá, jovens aprendizes. – Uma voz rouca se fez presente, arrepiando totalmente o ruivo, que se voltou em um salto com a pele toda eriçada. Já a garota, agiu normalmente, se voltando ao homem velho e de batina castanha da igreja, e retribuindo a saudação.

Era careca, com uma pele extremamente brilhante que refletia o último brilho extremamente longo do sol. Um sorriso que chegava a ser levemente macabro, com os dentes extremamente brancos.

— Me pregou um susto, velhote. – Disse Nero, com a destra no próprio peito, retomando a compostura e a respiração arfante.

— Não era minha intenção. – Admitiu, sincero. – Apenas ouvi divagarem sobre serem cavaleiros, e pensei passar um pouco de minha sabedoria.

— O senhor seria um cavaleiro? – Perguntou Cenia, animada e com os olhos obviamente brilhantes.

— Não, não. – Falou displicente, mas logo prosseguindo. – Sou um monge que protege a catedral a Leste da Capital. Atravessando a longa floresta.

“Mas ele está vindo do sul…” Guardou o comentário para si, sentindo um calafrio em sua espinha, com o instinto apitando em seu interior. “Corra, corra. Se esconda no acampamento de Poya. Ignore o homem, ele é um fanático.” Mas tudo se provava errado com a forma como falava. Tão paciente com a Cenia, como qualquer homem da nobreza seria.

— Possuo aqui alguns galhos de salgueiro. – Admitiu, retirando de umas das bolsas, um único galho seco, quebradiço e com uma estrutura fina. – Sabem o que acontece quando se quebra um galho seco de salgueiro, certo? – O ancião franziu o cenho, alternando o foco entre ambas as crianças.

— Um monstro é invocado por forças malignas! – Respondeu Cenia com entusiasmo. Já Nero, apenas ficava apavorado com a ideia, tendo seu instinto gritando uma vez mais para se retirarem.

— Isso mesmo. Galhos de salgueiro não especiais por este atributo. Eles são quebradiços, o que torna mortífero caminhar pelas florestas de Casron.

— E está estritamente proibido o uso. – Cenia falou sabiamente, erguendo o dedo indicador da mão destra, e apontando para o homem que segurava o salgueiro com ambas as mãos, forçando levemente sua estrutura.

— Ah, não se preocupe. – Prontamente retirou uma das mãos do galho, e o abanou no ar, como se brincasse de cavaleiro. Chegava a ser um pouco cômico, se não fosse desesperador suficiente pensar que alguma criatura perigosa do mundo dos mortos saltaria para fora, caso quebrado aquele galho. – Sabem o que acontece quando o molham em sangue? – Cessou os atos de forma repentina, e novamente macabra. Uma vez mais, o brilho desceu, tornando agora Midgard pela penumbra iluminada por milhares de pontos no céu, e um brilho vago do fruto maior.

Mas o homem não deu tempo para as crianças pensarem no que aconteceria. Pegou uma faca leve e de lâmina curta, e sem qualquer aviso, cortou a palma da mão que segurava o galho, o mergulhando no próprio sangue. Nero recuou três passos, com os olhos arregalados, que agora ostentavam do brilho escarlate intenso, e uma pupila que beirava a extinção de tão fina.

— Cenia… Temos que ir embora. – Disse baixinho, puxando a blusa da garota que assentiu com a cabeça, e recuou lentamente.

O homem começou a rir, rir sem parar, como um louco. Seu riso ecoou pelo vale, vibrando as árvores e a terra abaixo de si. Um maníaco, que beirava o desespero e a pura diversão, o puro prazer.

— Aqui, crianças. Não se assustem. – Repentinamente, retomou a postura neutra de outrora, segurando o galho e o apontando em direção de ambos. – Sou um apóstolo. Não vos farei mal. – E no término da frase, puderam ouvir o quebrar do galho em sua mão. O estalido ecoou, pálido e seco, como havia ecoado a risada do homem que mantinha o silêncio. Nero apenas ouvia seu coração pulsar, como se fosse disparar de sua boca para fora, mas nada aconteceu.

— Viram só? – Apesar de nada ter surgido da mão do monge, sua voz se distorceu, entre a normal, e uma mais grossa, um timbre amedrontador e demoníaco. Seu corpo vibrou, e a cabeça se contorceu. Dos lábios do homem, um gemido agudo e ensurdecedor, e seus olhos reviraram. – Agora sim… Agora sim… Ruivinho.

Uma explosão de energia arremessou as crianças a uma distância de três metros, consideravelmente morte para arrancar das mesmas um suspiro que abalaria seu sistema respiratório por completo, que antes ofegantes, agora tentavam puxar o ar novamente. Uma cortina de poeira se ergueu, alta e intensa, cobrindo todos os corpos presentes, e incluindo a colina com sua volumosa forma.

— Eu falei! – Disse Nero ao recuperar o fôlego, sem notar que ao engatinhar, na verdade tocavam suas mãos terra bruta e rochas banhadas em sangue.

— Onde vai, garotinho? – A voz distorcida se fez presente, tão alta e estridente que pareceu alcançar todo o continente dos vivos, e o ruivo sentiu forte aperto em seu tornozelo, antes de se ver arremessado no ar. Seus olhos contemplaram lentamente o chão abaixo de si, a uns bons cinquenta metros. Debateu os braços e pernas, numa tentativa fútil de se segurar em alguma coisa, mas nada era visível pela cortina de fumaça. Durante a queda que para si pareceu uma eternidade, conseguiu ver toda a cidade ao longe, com milhares de luzes acesas iluminando as ruas e casas. Conseguiu ver o castelo a Norte da cidade, assim como o local onde o acampamento da Ray antes estava montado. Olhando para Oeste, encarou o acampamento de Poya, que estava vazio. “Ah… Não será hoje que me tornarei espadachim.” Pensou, antes de embater fortemente contra o conjunto de galhos e folhas que ofereciam resistência à queda, os quebrando com o próprio corpo, mas não sentindo tanta dor como achava que sentiria. Ao término da queda, conseguia se mover quase como antes, apesar de seu tornozelo doer bastante. Sentou-se na terra, e encarou a perna que havia sido agarrada, percebendo a enorme vermelhidão, grotesca em sua forma. Seus olhos se arregalaram, e então, olhou para baixo.

Uma forte ventania soprou, levando toda a poeira como o som forçado daquele uivo, e revelou Cenia debruçada no chão, vomitando por cima da poça de sangue e terra, e a uns cinco metros da mesma, aquilo que todos temiam. Aquele era o mestre das calamidades. Com majestosos chifres de bode do tamanho de homens adultos, um corpo que alcançava facilmente os quatro metros de altura, todo revestido por uma pelugem dourada, mais concentrada em torno do pescoço, mas esta albina. Seu corpo ostentava de músculos fortes e tensos, notáveis por cima do couro que seria quase impenetrável por armas comuns, como o gládio que portavam. Mas o mais assustador, não foi apenas seu tamanho, e sua forma… Seus olhos eram vazio, brancos, exalando uma estranha fumaça negra que descia até o chão e ameaçava tomá-lo, antes de se dissipar. Suas mãos estavam ocupadas pela arma que causava terror na humanidade… Uma enorme foice de tom azulado, quase opaca, com um cabo tão longo quanto a criatura, na cor negra.

Uma passada. Uma única passada fez a terra tremer e o chão se estilhaçar, abrindo rachaduras que se estendiam por longas dezenas de metros. Por sorte, Cenia não era engolida por uma, mas Nero era forçado a saltar da colina para perto da garota, já que a montanha não mais existia.

— Duas oferendas, para mim? – Gritou com aquela voz que beirava o desespero da humanidade ao ser ouvida. Certamente, Cenia estava instável mentalmente, gritando e se debatendo, enquanto vomitava incessantemente. – Odin está tão bondoso. Hahahaha. – A risada grotesca fez tremer o ar, e outra passada vibrou a terra, abalando a postura de Nero que tentou se erguer, mas voltou a cair.

Transpirava por todos os poros que poderiam existir em seu corpo, ensopando suas vestes, e desejando que Seyren não tivesse ido embora tão apressadamente, mas seus olhos jamais desviaram do mestre das calamidades, que estava pronto a investir contra os aprendizes.

— N-não somos tuas oferendas, besta! – Gritou o ruivo, correndo com o ímpeto do vento, saltando de fenda em fenda cravada profundamente no chão, para afastar o mestre das calamidades da companheira.

A risada grotesca ecoou novamente pelo ar, como se Nero fosse apenas uma diversão antes do verdadeiro banquete. A corrida prosseguia, e quando o garoto achou estar tendo vantagem pela velocidade obtida por ser quase um gatuno, o demônio provou o contrário. O abalo tão forte como um relâmpago, com um som beirando o trovão, que fez o corpo do jovem se elevar no ar uns bons dois metros.

Quando voltou a abrir os olhos, os quais fechara para não entrar restos de poeira em sua visão, se viu a cinquenta metros de distância, com um rasgo na terra onde pousava, indicando que seu corpo havia sido projetado toda aquela distância. Em sua destra, portava o gládio por impulso, e seus olhos focaram a criatura que caminhava lentamente em sua direção, numa visão desesperadora. Mas quando foi tentar mover o próprio corpo, se viu inutilizado. Sua perna direita estava virada do avesso, juntamente ao braço esquerdo, e pela dor que sentia em suas costelas, que o fizeram contorcer, provavelmente teria algumas quebradas. Cerrou os dentes, os fazendo roçar um no outro, e acidentalmente mordendo o próprio lábio inferior.

— Está desesperado? Isso é o desespero que eu gosto. É o desespero que eu desejo, que me alimenta… Nada mais do que o medo, nada mais do que o doce gosto de ver essa sua face contorcida de dor e medo! – Parou ao lado do garoto, agachando o pesado corpo com o cabo da foice encostada em seu ombro. O pomo repousou sobre o peito de Nero, impedindo que o mesmo tentasse se erguer. Os olhos se encontraram, amedrontadores e vazios, comparados com o do ruivo. – Você me desafiou, garoto. E pagará por tal audácia.

Mas antes que pudesse sequer erguer o próprio corpo, algo perfurou com extrema facilidade o tronco do demônio, abrindo um buraco com aproximados dez centímetros de diâmetro no centro de seu peito. O objeto que provocou tal fenda, caiu ao lado da cabeça do rapaz, o qual percebeu que era o fragmento do estranho material que andava caindo da copa da árvore da vida. Certamente tinha sido Cenia, o que ficava evidente no segundo a seguir. Concluindo o golpe do cristal que caiu e cortou como deveria, a garota emergiu por trás da sombra da criatura, com uma corrida célere, e um golpe que acompanhou aquela velocidade, cortando a traseira da perna do mestre das calamidades com o gládio.

— Não fique especado olhando! Levanta! – Gritou a garota, correndo em volta da criatura que tinha sua postura abalada pelo corte que sofrera. A perna falhava, e seu corpo pendera para aquele lado, aproximando a cabeça o suficiente, para que Nero, no desespero, subisse o gládio com toda a sua força e destreza, cravando-o no focinho do monstro.

Urrou, tão alto quanto um trovão, tão intenso como uma cachoeira, com a foice que caiu na cólera, tentando atingir a aspirante a mestre espadachim. Esta desviou, num movimento tão cheio de graça e natural, que iluminada pela lua, a confundiriam facilmente por uma Valquíria.

— Pirralhos… - Falou em um tom mais brando, antes de desatar em risadas e debatendo o pesado corpo no chão, até por fim se erguer. Perdia totalmente o interesse em Nero. A grande mão, do tamanho de um homem adulto, agarrou o gládio e o esmagou por completo, sem qualquer sinal de esforço, provando que ferro nada faria contra si. – Eu vou devorar vossas famílias… Vou quebrar vossos ossos um a um, e os usar de palitos, usurpar de vossa carne à minha vontade! – E abriu a mão, deixando cair a lâmina em estilhaços que voaram ao vento, refletindo a luz do luar.

Era puro desespero. Os corpos estavam paralisados pela aura que o monstro emanava naquele momento. Não estava mais calmo, não se divertia mais… Pelo contrário. Sua voz tremeu novamente o ar, e agora a terra em seu urro de ódio, de euforia, e o medo por fim tomou os aprendizes. Nero permaneceu paralisado no chão, sentindo uma pressão imensa sobre seu corpo fraco. Cenia, o mesmo, se ajoelhando perante o mestre das calamidades de forma relutante, e iniciando um confuso vômito.

E por fim, quando tudo pareceu perdido. Quando o Mestre das Calamidades ergueu sua arma para ceifar a vida das crianças que almejavam a paz no futuro, um único sibilar findou a batalha. Um corte rápido e preciso, como a figura que emergiu como uma eufórica chama. Seus cabelos eram puro fogo, seus olhos emanavam a cólera de qualquer cavaleiro perante tal figura, e sua espada, tão reluzente em prata, com o fio gasto e banhado em sangue. Seu manto balançava ao vento, com uma postura heroica da forma como Nero a via, já que estava de costas para si, como acontecia nos contos de fada. Mais nenhum som foi ouvido, pois o pesado corpo não caiu, nem mesmo sua foice. Este pendeu na mesma posição por longos segundos, e então, se desmanchou em poeira negra que cobriu todo o local.

☙❧

Seus pulmões tragaram o ar desesperadamente, tossindo freneticamente após um arfar intenso. Seus olhos se arregalaram apressadamente, buscando à sua volta com a visão ainda turva, pela criatura, pela sua salvadora, e também, pela companheira aprendiza. Seu corpo pareceu leve, sem portar a armadura e a mochila em seu corpo. Piscando algumas vezes, percebeu a diferença de cenário, e também da hora. O fruto começava a iluminar as terras de Midgard, num belo alvorecer. Céu límpido e repleto das aves que voavam em bando, formando uma afiada seta no ar, com seus voos majestosos e ágeis, sempre com movimentos astuciosos, daqueles que eram livres no intenso azul. Algumas outras, preferiam se abrigar à sombra proporcionada pelas milhares de folhas nas copas das árvores próximas ao acampamento em que estava sentado, ou então, por cima da tenda maior, de onde Poya saía com total tranquilidade.

Só então olhou em volta por completo. Estava no acampamento para auxílio de aprendizes imposto pelo grupo Eden, com as costas encostadas num amontoado alto de caixas que lhe proporcionava uma sombra confortavelmente fresca com a temperatura que caia sobre o vale. O vento soprou, ameaçando arrancar debaixo das pedras, os amontoados de papéis, assim como arrancava das ramificações, as folhas mais velhas, as quais voavam ao vento, rodopiando e dançando com leveza.

— Continuará aí especado? – A voz forte se fez presente, da mulher que sempre ostentava da postura firme e altiva, o que provocou um susto no menor. Seus olhos que antes brilhavam no belo dourado, mudavam para o escarlate de imediato, pousando-se sobre os da mulher. – Já deu a manhã e ainda não se levantou. Virou um vegetal? – Continuou seus afazeres, mexendo no interior das caixas empilhadas, das quais algumas era possível ouvir o ferro batendo com ferro, como se mexesse em sucata.

O silêncio perdurou, senão pelo chilrear do casal de aves que pousou na caixa empilhada no topo, do amontado em que Nero se encostava. Seu olhar dançou do rubro para o dourado, à medida que focava no animal, antes deste alçar voo.

— Que horas são? – Perguntou por fim, levantando-se do chão sem se lembrar de que havia quebrado a perna e o braço.

Poya permaneceu estática, com os olhos arregalados e encarando o rapaz que se levantava como se nada tivesse acontecido com seu corpo na última noite. Suspirou, e olhou para o céu, e então, para as muralhas da capital.

— Por volta de nove da manhã. Ainda tem tempo. – E voltou-se para a tenda maior, encaminhando-se ao amontoado de papéis.

— Tempo?

— Não quer se tornar um espadachim? – Suspirou novamente, pegando uma única folha de papel.

Só então recobrou completamente os sentidos. Olhou exasperado em volta, em busca da garota que era tão animada, mas estava em falta. Engoliu em seco, e o suor lhe escorreu a testa num fio até o queixo, caindo como uma lágrima. Em sua mente, milhares de alternativas, desde a morte, à lesão, ao ferimento, ao simples fato de que nada lhe havia acontecido, doença, entre muitas outras, e por fim, terminando sua conclusão que talvez tivesse possuída e sendo neste exato momento sendo expurgada pelo clero.

— Calma. – Disse a comandante, se dirigindo ao garoto e lhe entregando o papel. Pela primeira vez, exibiu um sorriso. – Ela partiu um pouco antes do alvorecer para Isla. – Seus olhos que antes focavam os de Nero, agora se dirigiam além, para onde era possível ver uma grande ponte interligando aquele campo, a uma pequena ilha contendo a cidade costeira. – Neste momento, já deve ter terminado o teste de admissão.

— O teste de admissão… - Apertou suas mãos com força, quase rasgando a própria pele com as unhas, se não fosse os calos e cicatrizes tão rígidos como pedra, que impedissem tal. Seu olhar cabisbaixo, foi em direção ao papel, onde conseguiu ler com perfeição a palavra “Nero” e abaixo do texto, uma assinatura.

— Aqui. O seu diploma de aprendiz nível máximo. – Lhe entregava a folha delicadamente dobrada em três partes.

O rapaz a pegou, e sem nada dizer, abriu a dobra apenas para ler seu conteúdo.

Recobro a liberdade do aprendiz Nero Cyprianus, sob o regimento do Rei D. Tristan II, e sob a tutela de Poya, comandante de aprendizado da ordem Eden, de Veniah, para que escolha livremente seu caminho pós aprendizado.
Devido ao término do período letivo entre 11–05–250 e 11–07–251, o aprendiz pode agora usufruir de qualquer classe inicial, desde que cumpra o devido desafio e teste com rigor.

Abaixo assino -
Poya de Veniah

O sorriso se formou em seus lábios, expondo os caninos pontiagudos e diferentes, com uma tonalidade num intenso branco, apesar de não ser realmente um devorador fanático de doces para os manter assim.

— Vá, vá. Estou preparando o terreno para os próximos aprendizes. – Enxotou o rapaz como se fosse um cachorro, pelo gesto como balançava a mão. Era como se tivesse jogado a última porção de comida e chutava-o de sua porta antes que viesse pedir por mais.

Claro, sem alternativa, o rapaz deu de ombros, curvou o tronco numa vênia breve, e se dispôs a caminho.


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