Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 2
O plano do senhor dos mortos


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo era para ser dividido em dois, mas achei que ficaria pequeno, então decidi juntar e deixar assim mesmo
Espero que gostem!



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O plano do senhor dos mortos

Perséfone aspirou o ar profundamente, sentada entre os pedregulhos, brincando os pés na água corrente do riacho. Aquele era um dia de temperaturas amenas e havia no ar uma tranquilidade quase palpável.

O sol começava a sumir no horizonte, em todo seu esplendor, deixando o céu com tons variando entre o laranja, azul e vermelho. Naquele fim de tarde os músculos de seu corpo reclamavam do trabalho árduo feito mais cedo. Por algum motivo, Demetra fez questão de intimar a filha para acudi-la na estação das colheitas e é claro que a deusa da primavera aceitou sem pestanejar. Aquele seria seu terceiro dia no mundo dos mortais e ela não poderia estar mais feliz por passar um tempo longe da rotina.

O dia começou agitado. Mal amanheceu e já estava de pé, vestida em seu habitual traje – uma toga esbranquiçada que descia até os calcanhares, presa por fios de ouro que marcavam seus seios mais do que Deméter consideraria como apropriado. Começou ajudando uma vinícola, depois um campo de trigo e as plantações de abóboras da região. Por fim, após o almoço, se encarregou das oliveiras de uma fazenda situada nas proximidades da cabana que estavam hospedadas – uma coisinha de nada que sua mãe construiu para quando fossem passar um tempo prolongado no mundo dos mortais.

O dia foi árduo, mas cada segundo valeu a pena.  Demetra acabou se compadecendo do cansaço da filha e avisou que ela estava livre para aproveitar as horas restantes na floresta, desde que fosse acompanhada por ninfas de sua confiança. Jamais permitiria que a moça saísse sozinha por aí, com tantos perigos.

Perséfone não recordava a última vez que desfrutou de um momento como esse, tão longe do Monte Olimpo. Meses, anos. Embora estivesse no mundo dos mortais, dentro de si uma saudade queimava ardentemente. Saudade de estar em meio a natureza, em seu verdadeiro lar.

Não que estivesse reclamando. Não. Perséfone possuía tudo. Riquezas, amigos, família e não gostava de pensar em nada além disso; caso o fizesse, perceberia que levava uma vida mais vazia do que qualquer um dos olimpianos.

Afinal, por mais que vivesse cercada pelos luxos que a vida no Olimpo proporcionava, não passava de uma escrava das vontades da mãe. Nunca foi realmente independente.

Perséfone era um espírito livre ao mesmo tempo em que não passava de um pássaro preso ao chão, incapacitado de obedecer aos próprios instintos.

Incapacitada de, genuinamente, viver.

Ela tinha tudo ao mesmo tempo em que não tinha nada.

O que poderia fazer? Desobedecer a família? Jamais. Só desejava uma vida tranquila sem causar dor ou problemas para a mãe, que tanto se esforçava para mantê-la a salvo.

— Aconteceu algo, minha senhora? — Nayra, resignada a lhe proteger com unhas e dentes, questionou com a expressão preocupada, segurando uma tiara de flores. As outras ninfas se banhavam no riacho de água corrente adiante, as risadas ecoavam como som de liras e alguns pequenos animais observavam a cena, atraídos pelos espíritos da natureza, parados na margem. — Não parece muito bem.

— Não é nada. — forçou seu melhor sorriso. — Só estou pensando.

Como o esperado, a ninfa não pareceu convencida, mas acabou emudecendo e retornou a tecer a coroa de magnólias, cantarolando uma cantiga, também com os pés submergidos na água corrente. Ela mantinha uma distância segura da deusa.  

Perséfone sentiu pena das garotas. Por serem belíssimas, ninfas constantemente eram alvos da luxúria dos deuses e sátiros, sempre tratadas como meros objetos. Não compreendia como ousavam maltratar criaturas tão dóceis e amáveis.

— O que você acha dos deuses, Nayra?

A pergunta fez com que a náiade estancasse no lugar, não por estar assustada, mas pela pergunta ser feita tão diretamente, pegando-a de surpresa. Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e abaixou o olhar, perdida, sem saber ao certo como responder.   

— Não acho que seja adequado falarmos sobre isso, minha senhora.

—Nos conhecemos desde sempre, Nayra; não precisa ser tão formal. Somos amigas, não somos? 

A morena relaxou os ombros e assentiu com a cabeça.

— Os deuses, bem... — aspirou o ar, fitando um ponto do horizonte, pensativa. — alguns são cruéis conosco, não há como negar. Nos fazem passar por coisas horríveis, situações que não considero apropriado conversarmos agora... — as palavras saíram cautelosas —, mas nem todos são assim. Não sei ao certo como responder, minha senhora. Há aqueles que são horríveis, mas também há deuses educados e benevolentes, que nos respeitam, mesmo que sejamos apenas espíritos da natureza. 

— Compreendo. — Perséfone ajeitou o cabelo com a ponta dos dedos, pensando nas palavras da amiga. — Acho que vou colher algumas flores. — levantou-se, levando consigo a cesta de palha da ninfa, cheia de sementes que usariam para fazer um canteiro atrás da cabana onde passavam as noites com Demetra. — Há narcisos na região?

— Sim, minha senhora. Ao norte.

— Espere-me aqui. Não vou demorar.

Antes que a ninfa protestasse, Perséfone adentrou a floresta densa que cercava o rio. Começava a escurecer e era possível enxergar apenas o contorno das árvores destacando com azul cinzento do céu. A caminhada não durou muito. Em questão de minutos estavam em frente a um campo de narcisos que se estendia por uma longa faixa de terra, sumindo no horizonte estrelado.

Perséfone não gostava de pensar que queria as flores pelo fato delas trazerem a lembrança de Hades. Não fazia qualquer sentido, afinal, o único contato que tiveram foi uma curta conversa. Nada mais, nada menos. Conquanto, após uma semana, ainda não retirara o senhor dos mortos da cabeça. Parte disso por admiração já que não conheceu muitos cavalheiros tão educados. Outra parte por pura indignação, afinal, não entendia porque raios os deuses – incluindo Demetra – espalhavam fofocas tão indecorosas e grosseiras a respeito do pobre homem.

Imaginava quando o veria novamente.

Nunca, pensou. Ele jamais sairia dos próprios domínios sem um convite formal.

Lamentou internamente, retirando algumas flores. Hades, embora fosse um deus taciturno, pareceu ser um sujeito simpático.

Estava agachada, apalpando a terra úmida, quando enxergou, de relance, uma luz estranha vinda do oeste.

Ajeitando as flores na cesta e envolvida pela curiosidade, Perséfone caminhou rumo a luz até enxergar sua origem. 

Era um narciso brilhante, como uma vela em forma de flor. Surpresa, tocou a pétala e a ponta de seu dedo esquentou. Nunca vira algo como isso. Ansiosa para plantar a planta no canteiro da cabana, retirou a pá da cesta e incrustou na terra, tomando cuidado para não machucar a raiz da flor, que parecia sorrir para ela.

Assim que retirou, cuidadosamente, colocou-a em meio as outras e tratou de retornar ao riacho antes que escurecesse por completo, sem notar que, de longe, era observada por um par de olhos negros.

+

As coisas estavam diferentes no Mundo Inferior e isso não passou despercebido nem mesmo por Cérbero. O cão de três cabeças parecia mais agitado que o habitual e, da barca, enquanto navegava pelo Estige com os novos passageiros, Caronte fitou o céu negro imaginando que só havia um motivo capaz de fazer com que o caos reinasse no Submundo.

Seria eufemismo dizer que Hades estava com raiva. Não, não. Raiva nem passava perto do que sentia. O deus praticamente queimava em ódio. Sentado em uma das poltronas do escritório, tentava a todo custo manter-se em juízo perfeito enquanto lia um livro grosso.

O problema é que nem mesmo a leitura foi suficiente para acalma-lo. Os pensamentos sempre vagavam para a imagem de uma certa deusa e isso, definitivamente, o deixava infeliz. Lembrar-se do sorriso dela era um calmante para o mal humor, contudo, Hades não queria se acalmar.

Longe disso.

Histérico, deliberou que seria uma excelente ideia lançar as frustrações em algo e o pobre escolhido foi um cântaro de barro em cima da escrivaninha. Atirou o livro sem dó nem piedade, o objeto espatifou com o impacto e os estilhaços espalharam-se pelo chão do cômodo produzindo um tilintar desagradável. Afundou o corpo na poltrona e fechou os olhos, massageando as têmporas. O ódio o impedia de respirar.

— Maldito Eros. — murmurou, entredentes, sentindo-se melhor ao imaginar inúmeras situações em que o cupido morria engasgado com as próprias flechas.

Hades, o rei dos mortos, queria morrer. Seria cômico se não fosse tão trágico. Ele não sabia como agir e isso, definitivamente, era uma novidade já que sempre foi muito centrado. Ele era bom no que fazia, não se metia nos assuntos alheios nem era abelhudo como os outros deuses.

Então, porque tinha que acontecer justamente consigo? O que raios fez para merecer tamanho castigo?

Saiu do próprio pesar ao escutar outro barulho ecoar pela sala, dessa vez da maçaneta. Nyx atravessou a batente com a postura perfeitamente ereta e passos elegantes, mas logo desfez a pose ao ver o chão sujo pelo o que um dia foi um lindo vaso. Surpresa, arregalou os olhos púrpuras, levantando-os para o senhor dos mortos.

— O que você quer? — perguntou sem rodeios. Nyx respirou fundo e caminhou com cuidado entre os cacos, tentando evitar um futuro acidente.

— Vim ver como você está. — falou, apoiando-se na escrivaninha. Hades limitou-se a suspirar, sem qualquer ânimo para lidar com a deusa da noite. Só desejava quebrar o escritório em paz.

— Agora que viu já pode ir. — ralhou, mal-humorado, sabendo que a deusa não desistiria fácil.

— Não seja mal-educado, querido. Você sabe que estou aqui se precisar. — a voz maternal o fez sentir um gosto amargo na boca, a sensação de culpa. Odiou-se como nunca. Nyx não fez nada de errado, só estava preocupada e ele havia sido um arrogante e egoísta, despejando a raiva em alguém que nada tinha a ver com seus problemas.

Assim que ela se virou para partir, Hades se apressou antes que fosse consumido pelo remorso.

— Espera, Nyx. — sussurrou baixo, mas não o suficiente; os sentidos aguçados da mulher captaram o som e ela virou a cabeça por cima do ombro para encará-lo. Ele enterrou o rosto nas mãos e encolheu os ombros. Estava péssimo, ela conseguia sentir. — Me desculpe.

É claro que desculparia. Sempre o desculparia.

— Apenas diga o que está acontecendo, Hades. — exprimiu com preocupação. Apesar do comportamento dele ser explosivo ela, mais do que ninguém, sabia que por trás da máscara de rancor havia gentileza. Ele podia se fazer de durão, contudo, possuía um coração de ouro.  — Guardar para si só vai piorar as coisas. Quando você fica mal nem Cérbero se controla. Lá fora está um verdadeiro inferno.

— Que piada péssima. — sorriu embora estivesse aborrecido; Nyx gargalhou baixo e aproximou, cruzando os braços, fitando-o com expectativa. Hades apertou os lábios em uma linha reta, imaginando que ela o perturbaria pela eternidade caso não dissesse de uma vez. — Eros me flechou.

Ele o que?!

O rei do submundo, intrigado com a mudança no comportamento da deusa, arqueou uma sobrancelha. O grito dela reverberou pelo cômodo. Parecia em choque, ainda processando a informação jogada em seu colo.

— Escutou certo.

As palavras fizeram-na voltar para a realidade.

— Pelo Caos! — tapou a boca com as mãos de forma dramática. — Como isso aconteceu? 

— Assim que saí da festa de Zeus. Eros foi certeiro, dessa vez.

— E porque ele te flecharia?

Nyx enxergou um brilho raivoso nos orbes negros. Um trovão ecoou do lado de fora, por cima dos gritos das almas condenadas.

— Por puro capricho. — trincou os dentes. — Você sabe o que ele e Afrodite pensam sobre eu nunca me ligar a alguém.

Sim, na verdade, todos sabiam.

Porém, uma pergunta não queria calar.

— Quem foi a sortuda da vez? Alguma ninfa?

Hades riu sem humor, tombando a cabeça para o lado e mirando a parede em tom grafite, perdido em pensamentos.

— Perséfone. — revelou, ainda distante.

A deusa da noite arqueou as sobrancelhas negras, surpresa.

— A filha de Demeter? — a pergunta saiu sem que percebesse.

— A própria.

— Mas porque logo a Perséfone? — Não entendia os motivos do cupido, muito menos de Afrodite. Hades não mencionara, mas era óbvio que a deusa do amor tinha culpa; era conhecida por juntar os casais mais improváveis do mundo.

— Pelo o que entendi, no curto momento em que estivesse no baile, Demeter é superprotetora e não deixa a filha escolher um par. Você sabe o tanto que Afrodite abomina a castidade. — ao ver a amiga confirmar com a cabeça, continuou. — Eros também. Acho que quando nos viram conversando não pensaram duas vezes.

— Entendo, querido. — Nyx o cortou, compreensiva. Se aproximou e agachou ficando na altura do rosto do rapaz. — O amor pode ser doloroso, ainda mais no seu caso, sem poder subir ao mundo dos mortais.

Hades emudeceu. Nyx achou a atitude estranha e, quando uma sombra de compreensão se passou por seu rosto, arregalou os olhos.

— Hades! — repreendeu, abismada. — Não me diga que você...

Ele permaneceu quieto, esperando por um sermão, provavelmente gritos.

— Pelo Caos! Se Zeus descobrir que andou se esgueirando pelos domínios dele...

— Ele nunca descobrirá. — cortou-a com tanta convicção que ela sequer ousou retrucar. — E mesmo que descubra, não fará nada; estamos em paz agora e, de qualquer forma, foi mais forte do que eu.

Um suspiro atravessou os lábios femininos e ela passou a mão pelo cabelo sedoso. Hades não tinha jeito.

— E Perséfone já sabe sobre seus sentimentos?

— De forma alguma. — jogou a cabeça para, lembrando-se involuntariamente da deusa. Sentiu um calorzinho na altura do peito, um calor muito esquisito que vinha o assombrando todos os dias. — Ela não faz ideia de que a visitei todos os dias desde que saiu do Olimpo.

— E deseja conquistá-la? — recebeu um aceno de cabeça como resposta.

Sorriu ao imaginar Hades, o senhor dos mortos, temido por todos, tentando conquistar uma jovem deusa. Mal esperava para presentear algo dessa magnitude. Sem sombra de dúvidas, seria a fofoca do milênio.

— Como pretende? — sequer fez questão de esconder a curiosidade.  —Até entendo Zeus aturar suas idas e vindas aos domínios dele, mas Demeter não vai gostar nada quando souber que você anda rondando a filha dela.

Os olhos de Hades brilharam e Nyx enxergou algo muito travesso no fundo daquele negrume.

— Não se preocupe. — ele descansou os braços nas laterais da poltrona com o canto dos lábios repuxado em um sorriso. — Já tenho um plano.

Por algum motivo, Nyx sentiu uma sensação esquisita, algo como um arrepio na pele. Um pressentimento ruim, ela soube. Torceu para que fosse apenas intuição, não um aviso do destino.


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