Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 3
O rapto de Perséfone




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O rapto de Perséfone

Aquele era um dia bonito. O céu estava sem nuvens e a brisa era gélida. Perséfone sorriu diante da paisagem – um enorme milharal que sumia no horizonte, mesclando ao dourado do sol, que começava a nascer.

Ao seu lado, Nayra desembaraçava o cabelo com a ponta dos dedos, a feição sonolenta. Demetra vinha logo atrás carregando uma cesta grande que continha os materiais de jardinagem que utilizariam durante o dia.

— Como consegue ficar tão animada pela manhã, minha senhora? — Nayra bocejou, em seguida esfregou os olhos, piscando-os, ainda tentando acostumar com a luz forte vinda do horizonte. — Nem amanheceu.

— Como não ficar animada com uma paisagem como essa? — devolveu a pergunta, sorrindo, achando engraçado todo aquele mau humor. — Veja só, que vista!

— Milho, mato. Nada fora do comum.

— Não seja rabugenta. Vamos, me apresente a região.

As duas rondaram o local por um tempo, ambas sendo vigiadas pelo olhar atento da deusa da agricultura, que averiguava a área enquanto as garotas riam e conversavam. Havia uma fazenda nas proximidades e os humanos que ali residiam ainda dormiam, o que facilitaria bastante o trabalho delas.

— Tomem cuidado, meninas! — alertou. — É muito fácil se perder por aqui!

Elas acataram as ordens, mantendo-se mais próximas. Nayra conhecia a região como ninguém, mas seria imprudente de sua parte desobedecer a deusa maior.

— Como é ser filha do rei do Olimpo? — a ninfa questionou assim que Demetra se afastou para verificar algumas espigas. — Quer dizer, deve ser empolgante, não?

— Ah, não muito. Meu pai é sempre muito ocupado e depois de séculos a vida no Olimpo fica cansativa. Sempre as mesmas pessoas, as mesmas festas. Meus irmãos também não são uns santos, o que deixa minha mãe maluca. Apolo mesmo não larga do meu pé. — a informação arrancou uma gargalhada da outra. — Ele é bem legal, tentou me cortejar, mas...

— Entendi. — a outra sorriu pequeno. — Como os mortais dizem, “não é a pessoa certa”.

A deusa assentiu com a cabeça.

— Você já se apaixonou alguma vez?

— Não. — deu de ombros. — Mas imagino que seja uma droga. Quer dizer, muitos deuses e pessoas morrem por amor. Parece trágico e pouco inteligente.

Perséfone riu e as duas pararam ao verem a silhueta da deusa da agricultura aproximando. 

Demetra ensinou mais técnicas a filha, técnicas simples que poderiam mantê-la entretida até terminar o que tinha a fazer. Nayra limitou-se conter a expressão entediada e sonolenta pelas horas seguintes. Almoçaram por volta do meio dia, uma comida simples e humana, composta por carne de caça e folhagens.

— Quando retornaremos ao Olimpo? — Perséfone questionou enquanto recolhia os pratos da mesa com a ajuda da amiga. Demetra, que prendia o longo cabelo cacheado em um rabo de cavalo, levantou-se para lavar a louça.

— Amanhã, provavelmente. Nayra, minha flor, por gentileza, recolha as roupas estendidas no varal. — a jovem acenou com a cabeça e logo desapareceu. Demetra fitou, longamente, a filha, que agora carregava uma feição entristecida. — Não fique assim, querida.

— Posso ao menos passar o resto da tarde na floresta? — aspirou o ar profundamente, resignada, jogando a louça na pia improvisada ao lado da janela.

— Não acho que seja seguro. — encarou a mais nova de relance e segurou o ar. — Oras, não me olhe assim, Perséfone! Ajudamos os humanos e fizemos o que tínhamos a fazer. Não há motivos para ficarmos e temos muito a fazer aqui em casa até partirmos.

— É só um pouquinho. — tombou a cabeça. — Por favor, mamãe. 

Não me venha com mamãe. Conheço seus truques, querida, e sei muito bem quando quer me manipular.

— Eu juro que volto antes de escurecer.

Por mais que fosse dura e que fizesse vista grossa, Demeter não era uma mãe ruim. De fato, era superprotetora, um pouco enjoada, mas, ao contrário do que muitos imaginavam, havia um motivo para tudo isso. Sua filha era sua maior alegria, a única coisa realmente boa que saiu de seu relacionamento com Zeus. E ela não queria que sua pequena sofresse e, se para manter Perséfone protegida fosse necessário mantê-la presa como um animal de circo, que assim fosse.

Contudo, dentro de si havia culpa. Uma culpa que sempre a corroía em momentos como esse.

— Tudo bem. — respondeu, soltando o ar preso em seus pulmões. — Mas escute bem, mocinha, — a moça reprimiu uma careta. Odiava ser tratada como criança, todavia, Demetra era cabeça dura. Mesmo que a filha já fosse adulta feita, continuava a vê-la como uma menininha ingênua. — é para voltar antes do anoitecer. Antes. E nada de sair rondando por aí sem as meninas.

Perséfone soltou gritinhos de alegria e grudou no pescoço da outra, depositando um beijo estalado na bochecha dela.

Calçou as sandálias de tiras e correu até o quarto das ninfas. Era um cômodo espaçoso, com colchões de palha improvisados no chão. Não tiveram muito tempo para organizar algo mais confortável, mas as garotas aceitaram tudo de bom grado, agradecidas por toda a preocupação e cuidado.

Elas pararam a conversa subitamente ao vislumbrarem a deusa adentrar o quarto, eufórica.

— O que aconteceu, minha senhora? — Dapne, uma das garotas, levantou-se e Nayra, que guardava a trouxa de roupas limpas no guarda-roupa, se virou alarmada. As outras três limitaram-se a observar o desenrolar da cena.

— Mamãe liberou a tarde para nós.

Nada mais precisou ser dito. Em questão de minutos todas tagarelavam, alegres e gargalhando, enquanto adentravam a floresta. Apolo ainda brilhava no topo do céu. 

Elas se encaminharam até o mesmo rio do dia anterior e todas se assentaram em uma sequência de pedras, com os pés na água corrente, aproveitando a calmaria.

Só quando anoitecia que decidiram ser hora de retornar e, com muito pesar, Perséfone teve que segui-las sabendo que a mãe faria um escândalo caso contrariasse suas ordens.

Suspirando, levantou. Enquanto andava, viu que Dapne apontou para algo logo atrás de si com uma expressão estranha.

— O que é aquilo? — questionou, chamando atenção de todas.

— Acho melhor irmos embora. — Nayra segurou com firmeza no braço de Perséfone, puxando-a para mais perto. — Algo está errado. Estão sentindo? — todos os espíritos da natureza assentiram, apavoradas.

A deusa direcionou o rosto para onde as garotas fitavam e vislumbrou o brilho familiar. Sorriu, soltando-se do aperto, contudo, Nayra foi mais rápida e a segurou outra vez pelo pulso, encarando o brilho vindo do interior da floresta.

— Por favor, senhorita, não faça isso. — Repreendeu. Nenhuma das outras teria a mesma coragem.  — Não sabemos o que possa ser.

— Fique tranquila. — a empurrou gentilmente. Suas palavras não surtiram qualquer efeito. Nayra continuou preocupada, fitando os arredores, sentindo uma presença estranha. As outras também pareciam incomodadas. A única alheia a tudo era Perséfone. — É só uma flor brilhante, como a que te mostrei ontem. 

— Não é só a flor, minha senhora. Há algo estranho, posso sentir.

Ela virou, contudo, as mãos da ninfa agarraram sua toga com força.

— Senhorit -

— Apenas me solte, ok? — esbravejou, se afastando bruscamente, puxando o vestido. A ninfa encolheu os ombros e as outras fizeram o mesmo; Perséfone sentiu-se culpada. Ninfas temiam os deuses, fossem homens ou mulheres. Talvez estivesse exagerado, mas não voltaria atrás. De qualquer forma, não é como se fosse desaparecer, certo? — Me esperem aqui. Vou averiguar a área. Tenho certeza de que não é nada.

As outras nem tiveram tempo para processar as palavras. Rapidamente, Perséfone adentrou a floresta densa. Caminhou por alguns metros até enxergar o narciso, em meio ao escuro, incrustrado na terra fresca, brilhando como uma tocha.

Ela não enxergou nada suspeito como as ninfas. Na realidade, estava tudo tão pacífico que conseguia escutar o som da própria respiração. Deu de ombros. Talvez estivessem enganadas.

O céu não estava totalmente escuro, ainda dava para aproveitar um pouco antes de partir de vez. Agachou em frente a flor, esticou a mão e tocou a pétala macia, sentindo-a quente em sua pele.

Péssima ideia.

Assim que encostou o brilho diminuiu e a atmosfera mudou. Ficou densa, pesada e envolvida por uma escuridão assustadora. Ela levantou de uma vez, com o coração martelando no peito, o nó na garganta e um frio correndo pela espinha.  

Uma sensação horrível.

O que está acontecendo?

A brisa quente de verão virou um vendaval gélido e ela abraçou o próprio corpo para se proteger, os cachos esvoaçando na direção do vento. Embaixo de seus pés a grama, antes fresca e esverdeada, tornou-se marrom morto.

Assim que a respiração quente veio de encontro ao seu pescoço o choque foi tamanho que se viu incapacitada de gritar ou correr. As pernas não funcionavam, o corpo parecia inútil, sem movimentos.

Ela só notou que chorava de medo quando foi virada de frente para ele. Continuava imponente, segurando o elmo. A mão livre limpou as lágrimas que teimavam em escorrer por suas bochechas, em seguida desceu até a cintura, puxando-a para um abraço de ferro.

Estava convicta de que aquilo era um delírio até que os lábios quentes lhe beijaram o ombro desnudo.

— É muito bom revê-la, querida Perséfone. — Hades sussurrou. Os olhos de ébano brilhavam, ainda mais profundos que há algumas semanas, intensos de uma forma inexplicável. — A viagem não será muito agradável, mas ficarei ao seu lado. Para sempre, se assim desejar.

Então, tudo escureceu.


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