Backwards escrita por MH Lupi


Capítulo 1
CAPÍTULO I - Backwards.


Notas iniciais do capítulo

CARAMBA, faz muito tempo que eu não publico nada.
Anyways, este é apenas uma pequena parte de uma história maior, chamada Lago Luna, que ainda não está postada. Mas eu queria colocar algo no mundo, porque esses personagens são muito meus bebês.
Enfim, tudo que é útil está nas notas da história. Eu tenho que parar de enrolar.
Be Happy~



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Era uma daquelas noites para Elliot. Aquele tipo de noite que fazia parecer que ele não estava tão presente quanto todos ao seu redor. Como se ele fosse levemente menos sólido do que o resto do mundo.

Quando os ponteiros do relógio apontaram exatamente 23:00, Elliot estava deitado em uma cama que não era sua, em um quarto que não era seu. Sozinho, desta vez. Olhos fechados, costas na cabeceira da cama, braços cruzados sobre o peito. Do lado de fora, na festa para o qual ele havia sido especificamente convidado porém nunca esteve particularmente animado para participar, a música alta e os sons das conversas vazavam para dentro do quarto — pelas brechas da porta, através das paredes, o grave fazendo vibrar o chão. A música sempre encontrava um jeito de o achar.

Ele havia escapado de Elyse, a anfitriã daquela festa, dizendo que voltaria logo. Isso havia sido meia hora atrás. Nem ela, ou o irmão gêmeo dela, haviam ido procurar Elliot — o que parecia um bom sinal, porque Elliot já havia tido casos românticos e recorrentes com ambos, e, como aquela era uma daquelas noites, ele não estava a fim de lidar com algo tão complicado ou não-saudável como aquilo.

Felizmente, os Willems tinham uma casa enorme — do tipo desnecessariamente enorme —, então os casais mais desesperados por contato humano tinham outros quartos para escolher.

O seu celular estava ao seu lado. De vez em quando ele vibrava com uma mensagem de texto de uma das suas amigas, que, a cada dez minutos, o atualizava sobre a situação de uma segunda amiga (também estava na festa). Duas mensagens de texto atrás, Trixie havia começado uma conversa intensa com um garoto que tinha um piercing de lábio. A última mensagem dizia que Trixie estava destruindo ele no beer pong, então Elliot estava menos preocupado do que ele normalmente estaria.

Enquanto estava deitado lá, o celular vibrou outra vez. Mas Elliot adorava a música que estava tocando do lado de fora, e ele estava com os olhos fechados, e aquela era uma daquelas noites. Então ele não pegou o celular de imediato. Ao invés disso, apenas ficou ali. Metade deitado, completamente sozinho, existindo no mesmo mundo e, ao mesmo tempo, em um mundo diferente da festa acontecendo no resto da casa.

Então a porta se abriu. A música e os ruídos inundaram o quarto, bem mais altos em comparação. Eles só precisavam de uma abertura para se tornar seres vivos.

O garoto que abriu a porta parou na soleira, a mão na maçaneta alongada, a expressão confusa olhando para Elliot deitado na cama, sozinho, parecendo tão absurdamente confortável em um ambiente que era construído para condicionar o contrário. Ele tropeçou um pouco para o lado, mudando o peso de uma perna para outra, de um jeito não totalmente sóbrio. Não tinha idade o suficiente para beber; mas aquilo não parecia o impedir.

— Oi...? — Ele falou, o tom mais desconfiado do que confuso, uma única sobrancelha levantada.

Elliot abriu apenas um dos olhos. Viu o rosto do garoto, mesmo que apenas a voz fosse o suficiente para o reconhecer dentro uma multidão de milhões. Então Elliot fechou os olhos de novo.

John Miller tinha um daqueles rostos que pareciam ser feitos de mármore e sonhos. Como se ele não tivesse sido concebido, mas esculpido. Era o tipo de pessoa que se ficava encarando em filas de ônibus, e depois se desviava o olhar quando ele olhava de volta.

— Oi, John. — Elliot respondeu.

Aqui estava o breve resumo da relação conturbada entre Elliot e John: os pais dos dois eram quase família, o que significava que eles haviam crescido juntos, como verdadeiros melhores amigos, durante os dez primeiros anos das suas vidas. Então, algo aconteceu, ou algo deixou de acontecer, e, no ginásio, embora frequentassem a mesma escola, John e Elliot se separaram. Quando chegaram no ensino médio, frequentando de novo o mesmo colégio, eles não eram amigos, mas tinham uma relação amigável, porque os dois se viam em literalmente toda e qualquer reunião familiar. Em um ano, eles talvez falassem cinco frases genéricas um para o outro, ou convivessem três momentos de simpatia mutual. Coisas como John dizer “passe as batatas” no feriado de Ação de Graças. Ou, às vezes, um olhar de compreensão quando o pai de Elliot os fazia vestir suéteres horríveis no Natal, para poder tirar fotos que ficariam penduradas por anos na parede da sala. Aquilo sempre parecera suficiente para duas pessoas que eram amigáveis, e não amigos.

Adicionalmente, como se a história dos dois não fosse complicada o suficiente, John, sempre o atleta e sempre o Jogador Mais Valioso de 50% dos times da escola, havia namorado todas as três melhores amigas de Elliot (e terminado com cada uma (incluindo as duas que estavam no andar de baixo)). Então existia toda essa pressão para que Elliot o desprezasse — John Miller, o maior piranha do ensino médio de Vermont. Porém, embora Elliot realmente tentasse, nunca parecia dar certo.

Quando se tornou óbvio que Elliot estava sozinho, John fechou a porta atrás de si. A música ficou abafada de novo, mas ainda perfeitamente compreensível através das paredes.

— O que você está fazendo? — Ele perguntou, e olhou ao redor outra vez,s só para se certificar. Pareceu aliviado por não ter encontrado mais ninguém.

— Dando uma pausa. — Elliot respondeu, dessa vez abrindo os dois olhos. — E você?

O olhar levemente embriagado de John se fixou em uma porta branca na parede da direita. Ele deve ter ficado satisfeito com a sua achada, porque adotou um sorriso orgulhoso no rosto.

— Eu estava procurando um banheiro limpo. Mas talvez eu precise dar uma pausa também.

Elliot deu de ombros e bateu no espaço vazio da cama ao seu lado, como se dissesse: não está ocupado. John também deu de ombros, embora o seu gesto fosse mais deliberado pelo álcool e envolvesse todo o resto do corpo. Ele andou até a cama e se jogou de barriga para cima no colchão.

Ele era alto demais para a cama; ou, pelo menos, aquela posição não era adequada. Ele colocou um braço para cima, o outro ficou pendendo ao lado, a ponta dos dedos tocando o chão. Os seus dois pés ficaram para fora. Ele tossiu uma única vez.

— Eu entendo porque eu preciso de uma pausa. — Elliot falou, olhando de relance para John. Ele não queria olhar para a parte do seu abdômen que ficou exposta quando ele se jogou na cama. Mas Elliot olhou de qualquer modo, e, mentalmente, se odiou por ter o feito. Ele voltou a fechar os olhos, decepcionado consigo mesmo. — Mas quais são os seus demônios?

Ele ouviu John respirar fundo ao seu lado. Então soltar uma risada baixinha, mais para si mesmo do que para o mundo.

— O Kravinsky me fez tomar direto do barril de cerveja. — Ele riu de novo. Aquele tipo de risada que tentava se segurar enquanto contava uma história, mas sempre acabava escapando. John não havia sido construído como alguém que sentia vergonha do que fazia, o que explicava bastante quem ele era como pessoa. — Eu não posso fazer essas coisas. Eu nem gosto de cerveja. Mas é tipo. Divertido pra caramba. Você bebeu?

— Ah, não. Deus, não. Meus vícios são relacionados à cafeína. Eu já faço decisões ruins o suficiente enquanto sóbrio.

John riu outra vez. Ou porque ele entendia, ou porque ele já tinha ouvido falar sobre os erros de Elliot — sendo as duas opções igualmente possíveis, porque os erros de Elliot tinham nomes, datas, e sempre criavam assuntos por horas nos grupos de conversa.

— Os gêmeos são um des-ses er-ros? — John perguntou, e a frase saiu pausada, porque ele estava rindo. Para fora dessa vez; para Elliot. Quando Elliot olhou para ele outra vez, um dos braços estava sobre seus olhos, o outro tremendo na sua barriga enquanto ela subia e descia com as risadas. — É por- é por isso que você está aqui?

Elliot queria estar ofendido. Ele queria dizer que não era íntimo o suficiente para fazer piadas sobre sua vida amorosa com John. Mas ele estaria mentindo, porque os dois se conheciam fazia quase duas décadas (apenas três meses separavam seus nascimentos). Então, ao invés disso, Elliot sorriu junto.

— Olhe, é complicado.

— Você na— namorou gêmeos. A Elyse o Lawrence. Tipo, caramba.

— Todo mundo sabe disso?

— Cara, todo mundo sabe disso. Eu amo essa história. Chocou muita gente. Foi uma polêmica muito desnecessária porém bonita de se ouvir.

John virou o rosto para Elliot. E ele tinha esses olhos enfuriantemente verdes e dentes irritantemente perfeitos que faziam Elliot querer socá-lo no rosto. Mas Elliot engoliu aquele impulso em particular naquele momento em particular. O guardou para caso precisasse um dia.

— Mas sério, o que você está fazendo aqui? — John perguntou, ainda deitado, ainda levemente embriagado.

Elliot pensou na pergunta. Ela tinha várias respostas, se estivesse sendo sincero. Ele estava ali porque estava fugindo dos gêmeos. Ele estava ali porque estava cansado. Ele estava ali porque a outra única outra opção era não estar, e ela também não parecia muito melhor. Mas ele não estava se escondendo, dormindo ou incomodado; logo, nenhuma daquelas três coisas eram relevantes. Então, Elliot retribuiu o olhar de John e respondeu:

— Ouvindo a música. E as pessoas.

E aquela verdade pareceu suficiente. Porque ele adorava a música que estava tocando do lado de fora, e, quando ele se concentrava, os sons das conversas da festa quase se moviam no mesmo ritmo que ela.

It feels like I'm only going backwards, a letra dizia.

Every part of me says go ahead.

Ela sempre parecia acertar um dardo na sua vida, perfurar o alvo. Elliot não estava cantando, mas os dedos, familiares com as teclas de um piano, tamborilavam perfeitamente ao ritmo nos seus braços cruzados, sendo movidos mais pelas reações químicas que a música causava no seu cérebro do que por comandos conscientes.

— Mas você podia fazer isso do lado de fora, com o resto do mundo.

Elliot concordou — John não estava errado, ele realmente podia. Elliot ficou olhando para a porta que levava ao corredor, aquele limiar separando dois ambientes tão semelhantes, mas tão distintos. De vez em quando, algumas sombras passavam por baixo da fresta da porta, indo de um lado para o outro. Parecia mais um rio do que uma parte da casa.

— Eu sei. Mas escute a música e as vozes. Soa tão mais pacífico deste lado. Todos estão tão acostumados a falar como se só houvesse um mundo. Quando, na verdade, cada alguém é seu próprio universo. Eu nunca conheci uma pessoa que não fosse um paradoxo.

Ele olhou para John. John o olhou de volta com os olhos confusos, semiabertos. Elliot riu daquele olhar, mas também um pouco de si mesmo. Tendo aquela conversa com John Miller, de todas as pessoas. Quando Elliot pensava nele, era em quão diferentes haviam se tornado com o passar dos anos. As fantasias nunca envolviam conversas sobre pessoas e universos.

— Foi mal. Às vezes eu fico filosófico em festas.

John concordou embriagadamente com a cabeça e deu dois tapinhas na perna de Elliot. Um gesto que dizia cara, eu entendo.

— E você nem precisou beber. Ok, agora eu tenho que ir mijar.

E, com esforço, ele levantou da cama. Primeiro com o tronco, depois com as pernas. O chão do quarto rangeu de leve quando ele andou até a porta do banheiro. Lá de dentro, Elliot ouviu ele baixar o zíper da calça e falar:

— Sabe, talvez eu devesse, tipo, parar de seguir pessoas como Kravinsky quando eu tenho uma tolerância tão baixa a álcool.

Elliot olhou para a porta perigosamente entreaberta. Se alguma janela estivesse aberta, um vento que fosse até mesmo apenas levemente forte poderia a mover. Era um pensamento com alta probabilidade de aborrecimento, porque a última coisa que Elliot queria era se sentir atraído por John.

Por motivos de que 1 – John era hétero, e Elliot havia feito uma promessa a si mesmo de que não se envolveria romanticamente com aquele tipo de pessoa (ele não precisava dessa complicação na sua vida); e 2 – porque aquele hétero em particular era John Miller, e, às vezes, ele era mais erva-daninha do que era pessoa.

Então, naquele momento, com a música e as conversas abafadas, Elliot imaginou estar em um vestiário. Um vestiário de ensino médio, cheio de garotos escandalosos e hormonais. Do modo exato que ele odiava. O cheiro, as emoções, o calor; era tudo bastante insuportável. Logo, racionalmente, a sua mente fez a conexão: vestiário -> garotos de colegial -> John Miller, todos bastante insuportáveis e o oposto de atraente.

Elliot respirou aliviado.

— Quanto foi que você bebeu?

John saiu do banheiro; felizmente, completamente vestido e decente. Ele se apoiou na porta, cambaleou um pouco. Talvez estivesse exagerando de propósito. Talvez realmente fosse fraco daquele jeito. Não parecia provável, mas nenhum dos acontecimentos daqueles últimos minutos pareciam.

— Não o suficiente para isto estar acontecendo. Por isso que é tão irritante. — John respondeu, apontando para si todo. Ele voltou a andar na direção da saída do quarto, voltando à festa do outro lado. Ele colocou a mão na maçaneta. Mas, antes de sair, ele se virou para Elliot. — Sabe, El... só porque cada pessoa é um universo, não significa que você precisa ficar à parte deles. Você pode fazer parte deles, sabe?

Ele pensou por um minuto. Então, feliz consigo mesmo, balançou a cabeça em um sentido afirmativo.

— É. É. Isso fez sentido. Você ainda pode ser especial fazendo parte do mesmo mundo que todo mundo. — E ele balançou a cabeça de novo, porque sim, fazia sentido. Então, puxou a maçaneta, deu um passo na direção do corredor. Ele ficou ali no limiar dos dois mundos, sorrindo de verdade, porque ele adorava aquele lugar e aquela energia. John, um rei em uma terra de reis. Mas ele sempre brilhava um pouco mais. — Ah, e também, a Trixie está destruindo esse cara no beer pong, e você tem que ver.

Ele fechou a porta.

Elliot não teve certeza de qual exatamente foi a parte daqueles minutos que o deixou parado na cama, sem reação. Se foi ter uma conversa real com John, se foi aquele último conselho, se foi o fato que John o chamou de El — porque apenas ele o chamava assim quando eram crianças —, ou se era porque ele estava certo. Era algo tão absurdo que parecia estar acontecendo com outra pessoa, em uma outra noite, em um outro universo paralelo onde os dois não haviam vivido as vidas que eles haviam vivido.

A música continuava tocando do lado de fora. As vozes continuavam tendo conversas entre si. De vez em quando, o chão ainda vibrava com algum grave mais forte. O celular de Elliot piscava a tela sempre que Jody mandava alguma mensagem sobre a situação de Trixie.

Se a gravidade da Terra falhasse naquele momento, e todos os corpos flutuassem para cima, se perdendo no vácuo do espaço, as coisas pareceriam menos complicadas e fariam mais sentido do que o universo continuar o mesmo depois de todo aquele episódio dissociativo — mas, se cada pessoa era um universo, ele havia mudado. Porque as frases desconexas de John funcionaram. Elliot enfiou o celular no bolso, alongou os músculos, estalou os ossos que conseguiu estalar. Ele olhou para a porta. Nos seus pensamentos e fantasias, ela era quase um portal para um outro reino.

Elliot a atravessou.

.

.

Eram 2:57 quando John percebeu que, talvez, tivesse ficado o suficiente. As coisas começavam a ficar estranhas a partir daquele momento. Quando chegava às 3:00, a música ficava progressivamente menos alta e as playlists mais caóticas até que tudo parasse de tocar. Depois de um tempo, só o que restavam eram casais, pessoas bêbadas e/ou pessoas chapadas na sala da casa, jogados nos sofás, caídos ou adormecidos nos cantos. Alguma garota estaria chorando no banheiro enquanto outras garotas a davam conselhos e seguravam seu cabelo. Era incrível que ninguém tivesse arrumado uma briga.

John estava no jardim da casa junto com Bruce e Kravinsky, ambos que também eram do time de futebol americano e que também sabiam que haviam ficado tempo o suficiente naquela festa. Os dois tinham bebidas em copos vermelhos nas mãos, mas apenas Kravinsky ainda estava bebendo. O garoto estava com metade dos botões da camisa abertos, suando mesmo que fosse uma noite fria de outono, porque ele não parecia capaz de não dançar se alguma música estivesse tocando nos autofalantes.

Bruce só estava com o copo na mão em solidariedade a Kravinsky — apenas para fazê-lo companhia. Porque, enquanto Kravinsky era a personificação de incontáveis clichês americanos sobre jogadores dos times do colegial, Bruce era uma das pessoas mais coerentemente conscientes que John já havia conhecido. E ele também era um amigo inacreditável, então, por esses dois motivos, ele ficaria na festa até o final para ter certeza que Kravinsky não fosse, tipo, acabar morto em uma vala.

— Eu não posso dirigir. — John falou, colocando as mãos no bolso do casaco. — Quer dizer, eu me sinto melhor, mas, porque eu deixei o Kravinsky me influenciar por dois segundos, aqui estamos nós.

Kravinsky empurrou o punho no ombro de John. Não era algo violento como um soco, apenas um leve empurrar. Mas John teve que reencontrar seu equilíbrio quando deu um passo para trás. Porque Kravinsky era enorme, e autocontrole não era algo com o qual ele era particularmente íntimo quando bêbado. E Kravinsky absolutamente estava bêbado.

— Os meus cachorros podem aguentar álcool melhor que você, Miller. — Ele falou, e a voz saiu tão arrastada que Elliot precisou morder o lábio para se conter.

— A sua mãe tem dois Chihuahuas, Kravinsky.

— São Chihuahuas muito determinados.

Bruce deu um tapinha no peito de Kravinsky.

— Sim, sim, Vinsky. Todos nós sabemos que os seus cachorros são de uma natureza superior. — Então, para John, ele falou: — Eu pedi um Uber. Parecia a coisa mais responsável a se fazer. Você não quer vir? Talvez eu precise de ajuda para arrastar ele escada acima.

— Ele vai dormir na sua casa?

Kravinsky cambaleou para o lado. Bruce o segurou pelo quadril. O que era um esforço; porque sim, Kravinsky era uma grande pilha de altura e músculos e proteína, e, Bruce — que talvez atingisse 1,70 em um dia bom — embora fosse mais forte que a maioria, era um corredor e não um zagueiro, então os centros de massa e de gravidade não se encaixavam da melhor maneira entre os dois.

Bruce passou um dos braços de Kravinky ao redor do seu ombro, embora, agora, o garoto estivesse imóvel e de pé como uma rocha. Ele era um daqueles bêbados que podiam ser completamente funcionais em um segundo, e, no próximo, estarem no chão, sem rumo na vida.

— Ele não pode ir para casa nesse estado. Eu estou aqui para assegurar que ele fique vivo. Se a mãe dele o visse assim, Kravinsky seria enterrado como indulgente. Você está a fim? De dormir lá em casa, não de ser indulgente, claro. Eu tenho um colchão extra.

— Nah. Eu estou tranquilo. Se minha mãe perguntar, eu posso dizer que o Kravinsky derrubou cerveja em mim; o que realmente aconteceu, para ser justo.

— Ei. — Kravinsky falou do nada, e girou a cabeça para olhar ao redor. Ele segurou o ombro de Bruce. — Ei. Você ficou com a Emma? Ela queria ficar com você. Faz, tipo, meses, Parrish. Que eu não te vejo com uma garota.

Bruce deu atenção para Kravinsky por um segundo.

— É, sim. Com certeza, Vinsky. Emma, ficar e tal. Definitivamente fiz isso tudo. — Então ele se virou de volta para John. — Como você vai? Uber também?

E, como se estivesse esperando aquela deixa, Elliot saiu da casa. Com as mãos no casaco, ele desceu rapidamente os degraus da varanda, se esquivou dos dois garotos sentados neles (um muito bêbado e um muito sóbrio) e andou até as suas amigas, paradas na grama, não muito distantes. De longe, John o ouviu perguntar se elas iriam com ele. Em resposta, Trixie e Jody olharam uma para a outra, depois para os seus acompanhantes — os dois garotos que estudavam nos degraus —, então de volta uma para o outra. John nem precisou ouvir para entender o que elas haviam dito.

— O que você acha sobre essa noite, Trixie? — Uma delas falou.

— Eu acho que ela ainda não chegou ao fim, Jody. — Respondeu a outra.

— Ok. — John ouviu Elliot falar, ao longe. — Mas me liguem quando chegarem em casa. Não importa o quão tarde. E ligue, não mande só uma mensagem de texto.

— Ok, pai. — Uma das garotas respondeu, e o abraçou.

Elliot a beijou na testa. Depois, fez o mesmo com a outra. Ele acenou uma última vez para os dois garotos sentados na varanda, um deles com piercing de lábio. Era metade um tchau, e metade um eu sei seus rostos e seus nomes, então não tentem nada de engraçado. Mas aquilo era dificilmente necessário, porque John sabia que Jody carregava spray de pimenta (ela já havia o ameaçado com ele) e uma atitude. Então Elliot andou na direção do seu carro, a chave negra em mãos.

John bateu no braço de Bruce.

— Boa sorte, cara. Me avise no que deu quando chegar!

Kravinsky soltou um ruído bêbado que John imaginou ser uma despedida. Bruce acenou com o braço livre.

Elliot entrou no carro, ligou o motor. Quando as luzes se ligaram do lado de dentro e do lado de fora, John bateu com os nós dos dedos na janela. Elliot o olhou confuso por um segundo, mas baixou a janela do passageiro. John se apoiou na porta, o corpo dobrado para frente, sorriu o seu melhor sorriso. Aqueles que faziam as pessoas abrirem qualquer fechadura. A pose em que ele havia se colocado era uma pose que apenas mecânicos ou prostitutos estavam acostumados a fazer. Do lado de fora, sem contexto e às 3 da manhã, não dava para saber em qual opção John se encaixava: prostituto, mecânico, os dois ou nenhum.

— Você está indo para casa?

Elliot concordou com a cabeça, mais para si mesmo do que para John. Ele tinha entendido a razão daquela conversa. Apenas naquela noite, os dois tinham se falado mais do que em três meses.

— É uma das paradas, sim. Você quer uma carona?

John inclinou a cabeça. Aquela mudança de pose acentuou a parte prostituto mais do que a parte mecânico.

— E onde mais você está indo?

— Em algum lugar do mundo, existe uma lanchonete aberta. Eu vou comer nesta lanchonete.

— Eu estou faminto, cara.

Elliot destravou a porta.

— Se joga.

John deu duas batidinhas com os nós dos dedos no teto do carro. Abriu a porta, realmente se jogou no banco do passageiro. Era a primeira vez que ele se sentava em horas. Não tinha percebido o quanto precisava. Também não tinha percebido que estava com fome, mas, agora, ele podia sentir o estômago vazio.

John reclinou o banco para trás. Muito ousadamente, ele também apoiou um dos pés sobre o painel do carro. Elliot não levantou de volta as janelas, então John colocou um dos braços para fora. Talvez, se ele estivesse totalmente sóbrio, não estaria tão à vontade. Mas ele estava. E não fingiria o contrário.

O relacionamento entre John Miller e Elliot Villanueva era uma coisa complexa, cheia de curvas, pontas, becos sem saída e peças em movimento. Não amigos — amigáveis. Pelo menos, era isso que ele falava quando Bruce perguntava. Os dois eram, talvez, as duas pessoas mais semelhantemente diferentes que ele conhecia. Como o mesmo ser indo de um certo ponto a outro, porém apenas por caminhos diferentes. Eles conheciam as mesmas bandas, tinham os mesmos lanches favoritos, assistiam os mesmos filmes que faziam chorar. De vez em quando, eles brigavam. De vez em quando, nos feriados de família, os dois se falavam como se fossem melhores amigos. Na maioria das vezes, eles eram apenas indiferentes.

Antes daquela noite, a última vez que eles tinham se falado foi a cinco semanas atrás, quando Elliot havia pedido para que John não quebrasse o coração de Trixie. Não havia funcionado, porque John havia quebrado o coração de Trixie. Porém, mesmo assim, naquele momento, os dois pareciam ser as pessoas mais íntimas do universo. Então, sim — a relação dos dois era bastante complexa.

De fora do carro, Bruce se aproximou pelo lado do passageiro. Ele julgou John com o olhar por um segundo, mas também se curvou para poder ver pela janela. Diferente de John, ele tinha classe. Então, ao invés de se colocar na mesma posição altamente sugestiva, ele botou um dos braços sobre o teto do carro e dobrou o corpo para frente. O cabelo escuro ficou pendendo para baixo.

— Olá, garotos.

— Onde está o Kravinsky? — John perguntou, tirando o celular do bolso do casaco e o colocando entre as pernas por nenhum motivo real.

— Ele disse que precisava ir no banheiro.

Elliot colocou a mão no freio de mão, mas não o puxou de imediato. Antes, ele olhou para algum ponto através de Bruce. John não viu exatamente o que.

— Então ele foi vomitar? — Elliot perguntou, sorrindo.

— Ah, definitivamente. E eu sou um ótimo amigo, mas não desse jeito. Vocês vão juntos para casa? Fique de olho nele, Eli. Miller é escorregadio. Cuidado para que ele não te seduza.

— Você está com ciúmes, Bruce? — John perguntou, sorrindo enquanto a brisa fria arrastava os cheiros úmidos do outono de Vermont para dentro do carro.

Bruce levou o dedo indicador ao lábio inferior, como se pensasse sobre o assunto.

— Ciúmes de quem? — Ele falou. — De você ou do Eli? Porque apenas um de vocês é o meu tipo, e eu vou deixar no ar qual dos dois.

E eles riram de novo, embora, dessa vez, outras coisas além do humor borbulhassem sob a pele dos três.

— Você não serve nem para ser hétero, Bruce. — John falou, o que era bastante verdade.

Talvez fosse algo bom — o time de futebol ter um exemplo de masculinidade não-tóxica. Alguns garotos simplesmente pareciam presos na fase anterior da evolução humana. Mas alguns também pareciam as pessoas mais gays da história quando estavam perto uns dos outros. Garotos de ensino médio eram labirintos vivos.

Vindo do fim da rua, lentamente, um carro se aproximou do estacionamento da casa. Bruce olhou para trás, então para o celular, então para a porta da casa, sem nenhum sinal de Kravinsky.

— É claro que ele chega aqui agora. — Ele murmurou. — Kravinky, eu juro por Deus...

E, jogando os braços no ar, ele andou de volta para dentro da casa, provavelmente para buscar Kravinsky.

Elliot sorriu e balançou a cabeça. Então puxou o freio de mão e os pneus da caminhonete, lenta porém seguramente, rolaram para frente. John fechou os olhos naqueles primeiros segundos, sentindo a mudança na aceleração.

— Ei. Onde é que você vai, mesmo? — John perguntou, porque percebeu que havia se envolvido nos planos de Elliot sem saber quais planos eram. Elliot virou à direita no fim da rua, atencioso aos retrovisores. Se ele sequer arranhasse o carro do pai, não só se sentiria a pessoa mais inútil da galáxia, também seria um homem morto.

— A essa hora? Eu vou no Denny’s claro.

— Meu Deus. Lá no Sul? Aquele lugar é, tipo, tão mediocremente americano

Elliot sorriu. Aquele sorriso distraído de quando se estava dirigindo — voltado para a estrada, e não para outra pessoa. Ele deu seta mesmo que não houvesse ninguém para ver, e virou em uma outra rua.

— Não somos todos nós? — Ele respondeu, mais bem-humorado do que John esperava. — Onde mais eu iria, John?

John olhou para cima, para fora do carro, enquanto pensava. Se ele fosse sincero consigo mesmo, sabia que já estava abusando. Mas era essa coisa das fases com Elliot. Ou eles eram melhores amigos, ou estranhos sentados lado a lado em assentos de ônibus. Aquela noite parecia estar indo bem, então existia o potencial de que ou ela acabasse perfeita, ou em ruínas. De qualquer modo, ele decidiu arriscar.

— Ok. Me escute. Tem um lugar em Plattsburgh—

— Ai, meu Deus. Em Nova York?

— Não. Sério. Esse lugar é do caralho, El.

— John, é uma viagem de quarenta e cinco minutos. A gente teria que atravessar o lago. Eu não—

— Eu sei. Eu sei. Mas me escute. Os hambúrgueres de lá podiam curar o câncer.

— Eu não vou dirigir quarenta minutos por hambúrgueres.

— São hambúrgueres muito bons.

E teve esses dez segundos que os dois ficaram apenas olhando um para o outro, em um impasse, cada um assegurando a sua própria opinião. É claro, John sabia que a opinião final que importava era a de Elliot — já que ele não só estava dirigindo, mas também estava sóbrio — então John não estava no controle ali.

Mas isso não o impedia de tentar.

— John, pare de fazer essa cara. — Elliot disse, alternando o olhar entre John e a estrada. — Você namorou e terminou com minhas três melhores amigas. Eu te conheço toda minha vida. Você é bonitinho, mas eu diria que estou bastante imune aos seus charmes.

E, embora John quase ficasse ofendido por aquele pensamento — ninguém estava imune aos seus charmes, aquilo era um absurdo —, ele continuou em silêncio, apenas encarando. Felizmente, Elliot não havia desligado as luzes internas do carro. Então, de um jeito ou de outro, John ainda tinha um pouco de poder, mesmo que fosse minúsculo.

— El. Pense por um segundo. Eu só posso comer, tipo, um hambúrguer a cada quinze dias. Carboidratos e tal. Eu sou quase um especialista. Ouça o que eu estou falando.

Levou um pouco de tempo, mas, por fim, Elliot rolou seus olhos e, com um grunhido, virou o carro e entrou na via principal. John projetou suas mãos em punhos no ar, vitorioso. Elliot jogou seu celular no peito de John, não só parecendo decepcionado consigo mesmo, mas também de saco inteiramente cheio daquela situação. John esperava que fosse para um efeito cômico.

— Só coloque na merda do GPS. — Ele falou. — Eu te odeio.

Rindo, o peito e os ombros tremendo com o gesto, ele colocou um alfinete no mapa. O GPS mostrou o caminho em forma de uma linha azul. Ela ia para o leste, cruzava o enorme lago Champlain, então entrava na rodovia. Quarenta e cinco minutos de carro, o mapa disse. Bom. Muito bom. Aquela era uma daquelas noites sem prazo de validade. John fixou o celular no suporte colado no painel, onde Elliot o olhou e suspirou.

— É melhor que seja um hambúrguer bom para cacete. — Ele falou, em um tom intimidante, mas de um jeito bom, amigável. John ficou surpreso com o quanto aquilo o fez mais alegre.

— Eu juro. — John respondeu, e se deitou outra vez.

Ele colocou a mão direita para fora da janela de novo, abriu os dedos, sentiu o vento empurrar contra sua pele — ou sua pele empurrar contra o vento, dependendo de quem estivesse vendo. Física era toda construída sobre referenciais.

No banco, entre suas pernas, ele sentiu o celular vibrar. John se endireitou no assento com um pulo, bateu animadamente com a mão no porta-copos. Se fosse um carro com câmbio manual, ele provavelmente teria trocado a marcha por acidente.

— Puta merda. Você tem um cabo auxiliar?

Outra vez, Elliot olhou para ele como se John fosse alguém em necessidade urgente de uma intervenção.

— É claro que eu tenho um cabo auxiliar. Está no porta-luvas. O que você vai fazer?

John abriu o compartimento, enfiou a mão dentro dele, começou a procurar quase desesperadamente. Claro, se ele tivesse prestado atenção, teria visto que, antes, o cabo estava perfeitamente repousado bem no topo dos montes de coisas empilhadas lá. Mas agora, depois do Furacão John, ele realmente precisava procurar em meio a, tipo, duas toneladas de papel que haviam lá dentro.

— Cara, eu tenho que te mostrar essa música. E também, limpe suas coisas, El.

Elliot estapeou a mão de John para fora do porta-luvas. Ele procurou pelo cabo por dois segundos. E, sem esforço algum, o derrubou no colo de John.

— Eu tenho certeza que todos esses papéis são minimamente importantes para o meu pai.

John apanhou o cabo, começou o processo de tentar o desenrolar, o que era um tanto quando menos fácil quando se estava levemente embriagado dentro de um carro em movimento. E Elliot também tinha apagado a luz, certamente uma tática para dificultar sua vida

— Ou talvez seja tudo lixo. — John disse.

— Ou talvez seja tudo lixo. É. A probabilidade é igual, para ser sincero.

— Cinquenta por cento de chance. Ou talvez seja, tipo, os dois ao mesmo tempo.

— Ah, sim. Lixo com valor sentimental. É o melhor tipo de lixo.

John riu, plugou seu celular no rádio. Ele apertou o botão de ligar, e, de imediato, a tela ganhou vida em um brilho azul e vivo. Ele bateu de leve no ombro de Elliot, como se dissesse saca só isso, e deu play no celular.

A conversa no quarto havia, em algum nível, ficado com John. Porque, mesmo depois que ele tinha saído e deixado Elliot sozinho, a música ficou na sua cabeça. Metade porque ele amava aquela música, metade porque Elliot havia falado sobre cada pessoa ser seu próprio universo, e, para John, nada havia parecido tão certo quanto aquela frase.

No visor do rádio, letras brancas digitais que diziam CAGE THE ELEPHANT — COLD COLD COLD ficavam rolando de um lado para o outro, interminavelmente. Quando a música começou, John se deitou novamente e ficou olhando para o rosto de Elliot, esperando qualquer reação. Na verdade, esperando uma reação positiva — porque aquela era uma das músicas favoritas de John naquele momento.

Elliot sorriu. Talvez porque ele conhecesse a música e a banda, ou talvez só porque ele houvesse gostado dela. E foi nesse mesmo momento que eles passaram por outro carro na rodovia, e as luzes do farol iluminaram cada parte do seu rosto. E foi só por um segundo, mas John pôde ver cada pequeno pedaço, cada minúsculo traço. As sardas na pele oliva, uma pequena constelação. Os olhos claros e castanhos, como se tivessem sido congelados em âmbar. As linhas do seu rosto, acentuadas pelo sorriso.

E aquela visão trouxe à tona todo tipo de sentimento que John temia que ela trouxesse. Como se John não estivesse olhando para o rosto de Elliot, e sim para um espelho. Mas, ao invés de ver seu próprio reflexo, John podia ver todos os momentos decisivos da sua vida nos últimos oito anos. E aquela imagem o fazia perceber que apenas as suas escolhas de se afastar de Elliot tinham gosto de veneno.

Era triste pensar nelas, porque as escolhas haviam sido feitas. E era triste não pensar nelas, porque significava não tentar consertá-las.

John tinha que afogar a sensação de ter mariposas voando todo lugar do seu estômago. Então, quando a música terminou o primeiro refrão, John se juntou a ela. De um jeito alto e embriagadamente deliberado. Era uma música alegre, que o fazia querer dançar. Ele ficou se mexendo no banco reclinado no carro, com as mãos no ar batendo em baterias imaginárias, os olhos fechados como se estivesse sozinho no seu quarto.

Doctor can you help me cause I don't feel right, better make it fast befo— Vamos lá, El! Você conhece, não conhece? Better make it fast because there ain't much time!

E em algum momento da canção, a sua voz talvez tivesse se tornado mais um grito prolongado do que um cantar, mas ele continuou, porque as mariposas voltavam a dormir quando ele se concentrava na guitarra distorcida e no chocalho da música.

E, nas últimas estrofes, Elliot se juntou a ele. Porque é claro que ele já conhecia aquela música. Porque os dois tinham gostos assustadoramente parecidos. Na verdade, era possível que John houvesse descoberto aquela banda por causa dele. Batendo no volante ao ritmo da música, Elliot balançava para frente e para trás enquanto cantava, tão alto quanto John.

Well it's cold, cold, cold, cold inside

darker in the day than the dead of night

E John olhou para ele outra vez. E a luz dos postes iluminaram seu rosto. E ele estava sorrindo e cantando, o cabelo negro ganhando vida com o movimento e o vento frio. E, merda, ele era lindo. Lindo de um jeito inevitável, perigoso. Lindo como um cometa queimando na atmosfera, iluminando todo o céu, prestes a destruir a terra. Lindo como a visão de um trem em movimento quando se estava nos trilhos. Um segundo antes de tudo não existir mais.

Cold, cold, cold, cold inside

Doctor can you help me cause something don't feel right

As mariposas viraram fogos de artifício no estômago de John. Era uma coisa que cortava através dele. Estar ali, naquele momento, com Elliot, de todas as pessoas em todos os mundos. E, embora a música dissesse o contrário, não havia nada de frio dentro de John.

Qual era o oposto de cair em queda-livre? Voar, ou ficar ancorado no chão?

Ele estava queimando.

something just ain't right.

.

.

E, por vinte minutos, com as músicas de John como plano de fundo, os dois conversaram. De verdade. Não foram só duas palavras durante a aula, ou um abraço hesitante quando a contagem chegava ao zero e eles rompiam o ano novo. E, mesmo que eles nunca se falassem, era incrível o quanto um sabia sobre o outro.

Elliot contou para John como odiava pré-cálculo, sobre como as garotas o matariam se visse os dois juntos naquela noite, e que o trabalho de tocar piano em um restaurante era bem menos estressante do que todo o resto da sua vida. John contou para Elliot sobre como o time de futebol estava próximo de ganhar o título estadual, que uma das cordas do seu violão havia se partido no meio, e que a última vez que ele havia ido ao cinema tinha sido dois meses atrás, porque ele não tinha tempo de fazer absolutamente mais nada.

O visor do rádio dizia NOTHING BUT THIEVES — BAN ALL THE MUSIC. Quando a música começou, tudo que existia na rodovia eram as árvores dos dois lados e os postes de luzes claras que, embora estivessem parados, pareciam sempre estar correndo na direção de Elliot. Ele havia fechado as janelas, então o vento frio não apertava mais contra o lado do seu rosto.

Ao seu lado, John respirou fundo.

— Ok. Eu meio que tenho que te contar uma coisa.

Elliot olhou da estrada para ele por apenas um segundo; então, imediatamente de volta para rodovia.

— Mal posso esperar.

John tocou o celular, acendeu a tela, a apagou de novo, sem nenhuma razão aparente.

— Eu sei sobre você e o Bruce.

Aquilo com certeza chamou a atenção de Elliot. Ele levantou uma das sobrancelhas. Um corte frio riscou uma linha de cima a baixo no seu estômago — mais por surpresa do que por qualquer outra coisa.

— O que exatamente você sabe sobre Bruce e eu?

Com a voz baixa, John falou:

— Eu diria que sei bastante sobre Bruce e você.

Elliot assentiu com a cabeça, olhando fixamente para a estrada, os seus pensamentos girando, quebrando, batendo contra as paredes da sua mente como que em um liquidificador. E, nessa metáfora, John eram as lâminas. Ele podia querer dizer um milhão de coisas com aquela frase. Era difícil saber qual delas era o alvo ali.

— Certo. — Ele falou, devagar. — Bruce te contou? Eu pensei que ele não queria que ninguém soubesse. Foi meio que a razão que não deu certo.

Distraidamente mexendo com os controles da porta, John respondeu:

— Meio que sim. Mas também meio que foi você.

Elliot sugou o ar pelos dentes, estalou a língua. Ele apertou o volante com bastante convicção. Elliot tinha bastante certeza que não havia contado nada para John. Elliot já havia tido a sua cota de relacionamentos secretos, mas o problema principal ali era que aquele segredo não era seu. Ou, pelo menos, tão totalmente seu.

— Explique. — Ele disse.

John deve ter sentido o estresse potencial, porque ele dançou ao redor das palavras.

— Foi no... verão. Quando estávamos na casa do lago. Você pegou no sono no sofá, e deixou seu celular na mesinha do abajur. Aí você recebeu essas mensagens de texto...

— Você olhou minhas mensagens de texto? — Elliot sussurrou agressivamente, a voz realmente arranhando sua garganta.

— Não. Não! Eu juro. O seu celular simplesmente acendeu lá. E eu olhei de relance. E era uma foto muito indecente do Bruce. Do tipo que um cara não manda para outro cara se os dois não estiveres secretamente se beijando.

Vindo do lado oposto da estrada, um carro passou por eles, os faróis iluminando o interior da caminhonete. Elliot apertou o volante com um pouco menos de força. O frio na sua barriga lentamente começou a desaparecer.

— Certo. Bruce sabe que—

— Que eu sei? Não. Eu quero que ele me conte por si mesmo. Quer dizer, eu venho dado essas dicas, sabe? Mas ele não pegou nenhuma delas. Eu quero que ele confie em mim.

Elliot suspirou.

— Ele confia. Ele só não quer que nada mude. E ele sempre diz que a vida dele não é problema de ninguém. O que é compreensível. Você não falou para ele. Por que você contou para mim?

Ao lado de Elliot, John deu de ombros. Ele estava mexendo nervosamente em uma das suas pulseiras de couro — ele tinha umas quatro, exatamente iguais, todas no mesmo pulso —, ainda deitado no banco reclinado, tentando não fazer contato visual com Elliot.

— Eu não sei. Só pensei que você deveria saber. Você faz bem para ele, El. Bem, quando vocês terminaram pela primeira vez, ele ficou uma bagunça. Mas fora is— CARAMBA, EU AMO ESSA MÚSICA.

Elliot balançou a cabeça. John era alguém ridiculamente difícil de se colocar em uma caixa. Um geoide de quinhentos lados, complexo de entender em um nível subatômico. O que o painel do rádio dizia agora era THE BLACK KEYS — TIGHTEN UP. John aumentou o volume em alguns poucos níveis, assoviou no mesmo ritmo dos instrumentos. E, simplesmente assim, toda a tensão que Elliot havia construído dentro de si se dissipou. Ele queria socar John um pouco menos.

— Quanto tempo falta, John?

John olhou no celular, o brilho da tela se projetando até mesmo no teto. O mapa mostrava que mais que metade do caminho azul já havia sido percorrido.

— Quinze minutos.

— Caramba. Ainda?

Com a lateral do punho, John deu um soco animado no braço de Elliot.

— Isso é bom, El! Estamos nos conectando. Ainda temos todo esse tempo pela frente. Me conte sobre sua música. Qual estilo você toca? Clássico? Jazz? Eu gosto de Jazz.

Elliot sorriu. Ele sempre sorria quando falava da sua música. Se todos sorrissem como ele — deliberadamente, desavergonhadamente, de um jeito feito para todo o mundo ver — quando falassem das coisas que amavam, o planeta seria um lugar diferente — pelo menos, era o que sua mãe costumava dizer quando ele era menor. Quase dez anos depois, a frase havia crescido com Elliot. Ele não sabia se era uma verdade objetiva, mas funcionava para ele; então, era bom o suficiente.

— Eu não sei o que te dizer, John. Eu só gosto de, tipo, tocar piano. Se a música é boa, eu toco. Jazz. Beethoven. Blues. Às vezes, quando eu quero me exibir, Liszt. Para ser sincero, do que eu gosto mesmo é traduzir para o piano músicas que eu gosto mas que não são originalmente feitas para ele; ou, tipo, não totalmente para ele. É a melhor parte. Às vezes eu fico horas me estressando para escrever uma partitura. É ótimo. E você? Com as cordas?

John olhou para Elliot, e os dois estavam sorrindo. Elliot porque ele estava pensando em música; John, porque Elliot estava sorrindo, e era um daqueles sorrisos infecciosos, que podiam fechar acordos diplomáticos e construir dinastias.

— Bem. Eu nunca soltei meu violão depois que o meu pai me deu ele uns... cinco? Seis anos atrás. Mas ultimamente eu fiquei um pouco entediado e decidi que ia aprender o ukelele.

— Cale a boca. Sério? Um ukelele? Quem é a pobre garota que você está tentando seduzir?

John olhou para ele, exageradamente ofendido.

— Eu nunca faria isso. Porque, primeiro, é um absurdo. Segundo, porque eu gosto do instrumento. Terceiro, porque eu não preciso dessas táticas. E, também, quando foi a última vez que você olhou para alguém com um ukelele e pensou ah, ele é gostoso?

Elliot concordou com a cabeça. Ele sorriu. E, um segundo depois, o seu sorriso cresceu. Porque aquela era a ocasião perfeita para retribuir. John tinha esse amor incondicional com qualquer coisa que tivesse cordas que fizessem barulho. E Elliot tinha esse amor incondicional por ser eficientemente irritante.

— Ok. Isso é justo. — Ele disse. — Pelo menos é fofo. Alguém do seu tamanho com um instrumento que é só uma miniatura de um outro instrumento que é melhor e mais importante.

— Ok. Uau. Isso é ofensivo. O ukelele é um instrumento com um grande valor cultural—

— Eles são os mini-Schnauzers do mundo musical, John.

— —e... Como— como ousa? Sabia que ukeleles vieram de Portugal, depois foram para o Havaí?

— É desnecessário, John. Schnauzers já são pequenos. Porque eles precisam de mini-Schnauzers?

— Elliot, pare de comparar raças de cachorro com instrumentos musicais. Não é assim que o mundo funci— ah. Ah, ok. Eu caí. Cacete.

Elliot riu. A música no celular de John mudou de novo. BRIAN JONESTOWN MASSACRE — ANEMONE, avisava o visor. Caramba. Nada que havia acontecido naquela noite parecia real. Elliot estava tão pronto para, de repente, ver um meteoro caindo do céu diretamente na sua direção e boom! Ele abria os olhos no conforto da sua cama, porque tudo aquilo havia sido um sonho estranho induzido por horas incansáveis de estudos matemáticos enquanto ele ouvia a trilha sonora de La La Land nos fones de ouvido.

— E você insiste em dizer que eu sou a parte irritante deste relacionamento. — John falou, e olhou para a estrada. — Aqui. Aqui. Vire à direita.

— O mapa—

— Eu sei o que o mapa diz, Elliot. Mas você prefere ouvir esse pedaço de tecnologia que nunca te desapontou, ou um cara no qual você confia apenas levemente e está te arrastando para outro estado no meio da madrugada? Para mim, a resposta parece óbvia. Vire à direita.

Elliot trocou esse olhar duradouro com John. E o garoto tinha esse sorriso travesso que mostrava o dente canino direito, como um felino. Aquele rosto de mármore que parecia envolver umas cinco dimensões diferentes ao mesmo tempo. Elliot teve aquele impulso de o socar de novo, mas foi de um jeito um pouco menos prejudicial.

Ele não sabia se existia um jeito não-prejudicial de querer socar alguém, mas era isso que a pulsação nas suas veias dizia, então Elliot aceitou aquele sentimento.

E virou à direita, onde a rodovia se tornava estrada urbana, e as árvores se tornavam construções comerciais. Casas, lojas, um prédio abandonado que tinha um visual impressionantemente suspeito. Então, nos próximos sete exatos minutos, John guiou Elliot por ruas completamente desertas — porque nenhum membro ativo e valioso da sociedade estava acordado àquela hora da madrugada, até ver o brilho etéreo.

— Ali. Ali. Paraíso.

Elliot não sabia se o paraíso estava localizado em Plattsburgh, Nova York, no meio do nada. Mas aquela lanchonete parecia algo bastante próximo.

Era um daqueles lugares que pareciam congelados no tempo, mesmo do lado de fora. No estacionamento, a lanchonete tinha uma placa em neon rosa que dizia Rosie’s 24 hours Dinner. O neon também desenhava a silhueta de um bule lilás servindo café em uma xícara levemente mais lilás.

Elliot estacionou no lugar mais próximo à porta. Existiam outros dois carros nos espaços próximos — o que era impressionante, porque o resto do mundo não parecia estar ciente de que o planeta ainda existia algumas horas antes de o sol nascer. Talvez fossem de clientes, talvez dos proprietários. Não fazia diferença. Ele gostava da sensação de não estar sozinho.

Eram 3:48 da manhã. John bateu na coxa de Elliot enquanto ele desligava o carro, o motor estremecendo por um segundo antes de finalmente totalmente descansar. O rádio não desligou junto ao carro, então o visor avisava: THE POWERS — HEAVY estava tocando. O neon da placa iluminava a parte de dentro da cabine, brilhando em cores vivas, o painel mergulhado em um mar rosa. Ele recolheu o seu celular e sua carteira, ambos no compartimento entre os bancos da frente. Elliot olhou para John.

Ele também estava mergulhado naquelas cores. Os seus olhos claros ganhavam um brilho que o fazia parecer de outro sistema solar. O cabelo castanho havia virado roxo. Metade do seu rosto estava colorida, a outra metade no escuro. Eram visões como aquela que infestavam as mentes de artistas, Elliot pensou. Um alienígena que, na verdade, nunca estivera fora da Terra. As pessoas apenas nunca tinham visto nada igual

— Espere. — Elliot falou, e desbloqueou o celular. Abriu a câmera e aplicou seu filtro favorito, porque Jody, uma das três melhores amigas, o havia viciado em tirar fotos de coisas aleatórias que ele achasse que fossem bonitas. Naquele momento, John era uma delas. — Fique aí. É um monte de rosa, eu tenho que tirar essa foto.

— Na verdade, — ele respondeu, sorrindo para a câmera. E a transição de pessoa para modelo era inacreditavelmente fluida, porque ele estava a acostumado a viver toda a sua vida em frente às lentes, e não do outro lado. O John sempre havia sido o príncipe, nunca o sapo. Era enfuriante. — é fúcsia.

Elliot tentou o enquadrar do melhor modo possível.

— O quê?

— A cor. É fúcsia.

Elliot olhou para John através do celular, uma sobrancelha levantada por aquela conversa. Ele tentou não levar para o lado pretensioso, embora John tivesse uma inclinação implícita de realmente soar pretensioso — eventualmente, até mesmo um pouco condescendente. Na maior parte das vezes, não era a intenção. Ele realmente era alguém inteligente que estava acostumado a viver em multidões de gorilas levemente mais evoluídos porém menos interessantes em vestiários e convenções de esportes. Ele não podia soar tão esperto quanto era.

De qualquer modo, Elliot não conseguiu ignorar a palavra fúcsia sendo usada em uma conversa do dia-a-dia.

— Pare de tentar fazer fúcsia acontecer, John. Isso não é algo real. A cor é rosa.

Elliot, isso é como dizer que ciano é simplesmente azul.

— E é.

Elliot tirou a foto. Ele a observou por alguns segundos, a admirou. Ela estava perfeita. De um modo técnico. De um modo estético. A maldita Monalisa das fotos neon tiradas de dentro de carros. John a olhou também, e seu sorriso cresceu como as fases da lua.

— Eu adorei. — Ele falou. — Cara, mande para mim.

— Ficou perfeita. — Elliot disse. — Jody vai literalmente morrer se eu mostrar para ela. Isso está indo para o Instagram.

— Ok, El. Vamos para dentro. Acredite, é melhor lá.

Então, desplugou o celular do rádio, o desligou, e saiu confiantemente do carro, batendo a porta atrás de si. Elliot respirou fundo uma última vez o ar quase morno dentro do carro. E saiu pela porta, diretamente para o frio da madrugada de outono de Vermont. Ele correu para alcançar John, e os dois entraram na lanchonete.

E, de algum modo, talvez através de alguma magia negra, a lanchonete tinha cheiro de verão.

Não deveria ser possível que algo tivesse o cheiro e a sensação de uma estação. Mas aquela lanchonete fazia aquilo. Era algo sobre o ar quente, talvez fosse o cheiro de café e waffles. Existia alguma coisa que o lembrava de acordar depois das 11, sentir o sol nas costas, pular em um lago. De qualquer modo, John entrou na lanchonete como se estivesse lá em uma frequência diária, acenou para a única garçonete próxima ao balcão, escolheu uma mesa próxima à janela.

Ele se sentou em uma extremidade da cabine. Elliot se sentou na outra, diretamente em frente. Os dois tiraram os casacos, os jogaram no lugar mais conveniente. Naquele lugar, próximos à janela, o neon ainda brilhava sobre eles. A garçonete se aproximou pelo lado, tirou dois cardápios do avental quadriculado rosa e branco (que combinava com as toalhas de mesa), um para cada um. Enquanto ela distraidamente os dava boas-vindas com um sorriso simpático no rosto — e Elliot tinha que lhe dar crédito, porque o sorriso parecia 100% genuíno mesmo que fossem literalmente quase quatro horas da manhã —, as mãos repousando nos bolsos do avental, John simplesmente retirou o cardápio das mãos de Elliot e os juntou na sua frente.

Sem falar nenhuma palavra, porque a garçonete estava contando sobre os especiais da lanchonete e nenhum dos dois queria ser rude e interromper, Elliot teve uma pequena discussão mental com John, trocada totalmente através de olhares, movimentos de sobrancelhas e torcer de bocas. Algo nas linhas de mas que porra é essa?, cuja resposta era eu sei o que eu estou fazendo. No fim, quando a garçonete parou de falar, John se virou cordialmente para ela, a entregou de volta os cardápios, e disse:

— Boa noite, Katherine. É Katherine, certo?

— Certamente é. — Ela respondeu, a voz alegre.

— Bem, Katherine. Hoje, nós vamos optar por dois dos seus melhores Big Burgers, com queijo cheddar duplo e bacon extra, porque nós merecemos, e dois milk-shakes. Um de baunilha, um de morango. Ah, e também uma cesta de batatas fritas, porque eu estou de bom humor. Nada light, por favor.

A garçonete ou deve ter firmemente adorado aquele monólogo, ou deve ter odiado do fundo do seu coração (nunca se podia ter certeza quando se falava de garçons), porque ela mostrou esse sorriso enorme, assentiu para John, então virou as costas e voltou diretamente para o balcão de atendimento.

— Eu não a acredito que você estava flertando com a garçonete. — Elliot disse.

— Eu não estava flertando. Se chama ser gentil.

— Se você está dizendo. Sabe, isso é um monte de carboidratos.

— Com certeza. — John respondeu.

— Eu espero que o milk-shake de morango seja meu, John. — Elliot falou, enquanto colocava seu celular sobre a mesa. — Porque eu venho construído um preconceito quase completamente irracional contra baunilha pelos últimos quatro anos da minha vida que eu não estou a fim de quebrar no momento.

— Sim, Elliot, o de mor—

Então o celular de John tocou sobre a mesa. E, de imediato, a foto da mãe de John — austera, de cabelo castanhos e olhos que te julgavam por fazer decisões ruins — apareceu na tela. John parou de respirar. Elliot viu a expressão de puro terror e arrependimento no seu olhar. Mil coisas estavam passando pela sua cabeça, e Elliot tinha certeza que ele podia ver sua própria lápide lá no fundo dos pensamentos.

— Ai não. — John falou, e, hesitantemente, segurou o celular na mão. — Ai, não. Eu esqueci.

— Que você tem pais?

John olhou profundamente nos olhos de Elliot, como um homem no corredor da morte. Se Patrícia Miller pudesse estapear alguém através de um sinal de celular, aquele seria o momento.

— Você tem que falar com ela. A minha mãe nunca fica com raiva de você.

John empurrou o celular no peito de Elliot. Ele podia o sentir vibrar na pele sob a camisa. Era desconcertante ter a imagem da mãe de John tão próxima do seu mamilo esquerdo.

— É a sua mãe.

— Exatamente. Ela vai me...

Elliot deslizou o dedo na tela. O botão verde criou uma onda no celular.

Foi instantâneo. Elliot conseguiu ouvir a voz da mulher sem que precisasse colocar no viva-voz.

— JOHN MILLER, — Patrícia gritou. — SÃO QUATRO HORAS DA MALDIT—

John cobriu o autofalante do celular com a mão.

Por que você faria isso? — Ele sussurrou agressivamente, se curvando para frente. Ele tinha esse misto de raiva, vergonha e traição no olhar que, sinceramente, fazia Elliot se sentir vivo.

— Eu queria ver sua mãe gritando com você. — Elliot respondeu, simplesmente. — Bote no viva-voz.

E John colocou. Mas teve que baixar o volume de imediato, porque, do outro lado, Patricia continuava gritando com uma convicção implacável. Elliot não entendeu a maior parte das palavras, porque a mulher tinha sangue americano e lituânio, e, quando ela ficava com raiva, os seus gritos misturavam as duas línguas. Mas, de qualquer modo, não pareciam ser palavras boas de se ouvir. John parecia prestes a derreter os bancos em que estava sentado e cair infinitamente na direção do núcleo da Terra.

— O que ela está dizendo? — Elliot perguntou baixinho.

— Um monte de coisas. Tentando não falar palavrões. Ela não está indo tão bem quanto pensa. Você tem que falar com ela, El. Você é o meu único amigo que ela não odeia.

— É isso que nós somos?

— Essa noite, sim!

Elliot riu, mas ficou olhando para a foto de Patricia no celular. Ela parecia meio capaz de assassinato mesmo através de uma foto em que ela estava sorrindo (de leve). Quando a mulher finalmente parou de gritar, John ficou um segundo em silêncio, apenas olhando para Elliot. Em pânico.

John? — Patrícia falou no celular. — É melhor que você responda, John.

— Mãe—

VOCÊ SABE O QUÃO PREOCUPADA EU ESTOU?

— Mãe. Eu estou bem. Eu não estou morto em uma vala.

E ONDE EXATAMENTE VOCÊ ESTÁ?

— Mãe— Mãe, eu— eu estou com o Elliot.

E John jogou o seu celular para ele. Elliot apenas o segurou por instinto, um reflexo desenvolvido depois de anos de convivência com aparelhos eletrônicos que tinham esse caráter quebrável.

Ah, por favor, John. De todas as coisas que você podia ter f a l a d o, você tentou mesmo usar Elliot como álibi? Você percebe que isso é simplesmente estúpido? Você percebe que não funcionou da última vez que você tentou?

Elliot levantou as sobrancelhas. Última vez que tentou significava que John havia usado seu nome como desculpa para não ter chegado em casa. O que era, de um modo bastante paradoxal, igualmente insultante e lisonjeador.

— Oi tia Patty. — Elliot falou, colocando a mão no rosto. — Oi. Sou eu. De verdade dessa vez.

Do outro lado da linha, a mãe de John ficou em silencio por alguns segundos.

Eli?

Sim. É minha culpa, tia. Nós estamos comendo em uma lanchonete. Foi mal.

Ah, querido. Está tudo bem. Eu entendo.

E a mudança na voz dela foi quase algo tangível. De serial killer para professora da escola dominical. O seu tom subiu pelo menos dois oitavos, suave como algodão. Parecia que não existia uma pessoa mais tranquila que ela no resto do mundo. John gesticulou fervorosamente na direção do celular. EU DISSE, NÃO DISSE?!. Elliot deu de ombros. Não era sua responsabilidade que a mãe de John confiava nele mais do que no filho.

Não é culpa sua, querido. Então a festa já acabou?

— Já, já. John está comigo, tia. Eu juro que ele vai chegar inteiro em casa.

Do outro lado da linha, ela suspirou.

Certo. Certo. Eu confio em você, Elliot.

John continuou gesticulando. Ela nunca falou isso nem para mim, ele sussurrou, baixinho o suficiente para não ser capitado pelo celular.

— Ok, tia. Nós estamos bem. Eu vou deixar ele aí quando terminarmos aqui.

Tudo bem. Você pode passar de volta para o John? Ah, e também, me tire do viva-voz, ou eu vou matar ele quando chegar em casa.

John pegou o celular de volta. Pelos próximos segundos, ele simplesmente ficou concordando com a cabeça, sem realmente falar nada além de ok, certo, tudo bem, legal. Quando ele finalmente desligou o celular, John parecia exausto. Ele soltou esse longo suspiro.

— Os seus pais também são assim com você?

— Você avisou que ia sair para uma festa hoje?

— Eu posso ter mencionado ocasionalmente. É melhor pedir perdão do que permissão, El.

— É. Meus pais não são assim comigo porque eu falo se for ficar fora até o nascer do sol.

Os olhos de John cresceram de um jeito alarmante. Ele parecia alguém prestes a ter a melhor ideia da sua vida. Mas, antes que pudesse falar, a garçonete se aproximou com uma bandeja apoiada na palma da mão.

— Aqui está. — Ela disse, e começou a transferir as cestinhas que continham os hambúrgueres e as batatas fritas para a mesa. — Eu vou trazer...

— Katherine! Por favor, coloque os milk-shakes em copos para viagem.

— John. — Elliot chamou.

— E também... quer saber? Porque eu não vou com você até o balcão, Kath? Posso te chamar de Kath?

John.

— Claro. — Katherine respondeu, e colocou a bandeja sob o braço. — Venha comigo.

Ele deslizou para o lado da cabine, tentou se levantar. Elliot segurou seu pulso.

— O que você está fazendo? — Elliot sussurrou agressivamente. Ele parecia fazer aquilo bastante na sua vida.

— Elliot. — John respondeu, sorrindo de leve. — El. Você confiou em mim essa noite, certo? Confie mais uma vez.

— São quatro da manhã.

— Confie mais uma vez.

Os dois ficaram se encarando por um segundo, talvez um pouco mais longo que o necessário. John olhou para o seu pulso. Elliot o soltou. Então, confiantemente, ele seguiu Katherine até o balcão.

— Não toque nesse hambúrguer, Elliot! — Ele disse, de costas. — Essa noite não acabou ainda.

Elliot afundou no seu banco. Ele olhou para o hambúrguer bem à sua frente. Ele era grande, tinha um cheiro ótimo. O bacon meio que saltava para fora. As batatas fritas estavam praticamente chamando o seu nome. Aquilo era a definição de tortura.

Elliot pegou seu celular. Tinha uma mensagem de texto das garotas dizendo Casa. Dormir. Bjs., o que não era exatamente o que Elliot havia pedido, mas era o que ele receberia. O seu celular dizia que eram literalmente 4:00 da manhã de um sábado. Elliot suspirou. Os seus pais nunca o deixariam dormir depois que o relógio transformasse o AM em PM.

Mas a coisa era que, embora cada pedaço dele quisesse estar fatalmente incomodado com toda aquela situação, existia essa voz no fundo da sua mente que sabia que, em alguns anos, Elliot iria acordar depois de uma noite de sono, e aquela memória, por algum motivo, estaria na sua cabeça. E, ao invés de lembrar de como John era alguém vibrantemente irritante, ele lembraria de olhar para o lado de fora da lanchonete, através da janela, e ver o jeito que o estacionamento estava banhando pelo neon. E ele lembraria que John tinha chamado de fúcsia, o que era completamente pretensioso. E o relógio marcava exatamente quatro horas da manhã, e o céu estava super escuro, porque a lua não estava em lugar nenhum a ser vista.

Era uma noite enfuriantemente agradável.

Alguns minutos depois, John voltou para a mesa. Enquanto Elliot o observava e o julgava com os olhos, John colocou cada hambúrguer em uma pequena caixa, depois as batatas fritas, e revelou que os dois milk-shakes haviam virado quatro milk-shakes, todos em copos de plástico, com canudos grossos, postos em um suporte de papelão.

— O seu pai guarda lençóis na caminhonete, certo? — John perguntou, ignorando o olhar de Elliot.

— Ele é paranoico. Então, sim.

— Então vamos.

Elliot suspirou.

— E para onde nós estamos indo, John?

— Só. Confie. Em mim.

Elliot também se levantou. Ele empilhou as caixinhas na mão esquerda e entregou o celular de John de volta para ele com a mão direita.

— Você continua dizendo isso, John. Mas são quatro da manhã, está congelando lá fora, eu estou morrendo de fome, e você está bêbado.

— Vai valer à pena. Agora cale a boca e venha comigo.

— Uau, é isso que você diz a todas as garotas para as convencer de te namorar?

John se virou, ficou parado por alguns segundos, sem ter certeza do que responder. No final, ele decidiu não responder, então apenas se virou e saiu da lanchonete. Elliot jogou o casaco sobre o ombro. E o seguiu para a noite.

.

.

Eram 4:23 da manhã. John fez Elliot estacionar na beira de uma estrada deserta, árvores dos dois lados, nenhum poste ou luz a ser vista em quilômetros. O visor do rádio mostrava ELECTRIC GUEST — ZERO. John ficou olhando para Elliot, esperando uma reação. Ele tinha tomado metade do seu primeiro milk-shake, mas John o havia proibido de tocar no seu hambúrguer, então ele estava metade muito irritado e metade muito satisfeito.

Em um mundo perfeito, as duas emoções se anulariam, e deixariam Elliot em um meio-termo saudável e neutro. Mas, no mundo real, só significava que ele estava irritado, e, ao mesmo tempo, satisfeito. Porque paradoxos eram possíveis quando se falava do consciente humano.

— Por favor, diga que a gente não vai fazer uma trilha agora. — Ele disse, e desligou o motor do carro. O seu braço alcançou atrás do banco, puxou um lençol dobrado de estampa flanela. É claro que o pai do Elliot tinha um lençol no carro. Ele estava naquele limite da paranoia entre ser cuidadoso e insano. John achava fofo.

— Não. Não. Confie em mim.

Elliot tomou um gole do seu milk-shake. Começou a encher as mãos com as caixinhas dos hambúrgueres.

— Você continua dizendo isso, John. Mas eu continuo com fome.

— Ai meu Deus, El.

John pegou o resto das caixas. Abriu a porta do carro, pulou para fora, os sapatos pousando diretamente na grama. O vento frio o envolveu de imediato — feito ainda mais frio e úmido porque John e Elliot não só estavam no meio de um bosque, os dois também estavam em Isle de Motte, uma ilha que estava localizada sobre o enorme lago Champlain. A noite estava densamente escura, então John acendeu a lanterna do celular à sua frente. Nenhum mosquito brilhou na luz. Felizmente, estava frio o suficiente para qualquer inseto mais irritante estar acordado, então existia aquele pequeno bônus.

— Sério que nós vamos entrar no mato? — Elliot perguntou, batendo a porta do motorista.

— É uma fazendo, El.

John começou a andar na direção que ele tinha quase certeza que era a certa. Ele estava seguindo a silhueta mais escura e mais alta que conseguia achar. Isle de Motte tinha, talvez, uma população de 500 pessoas (em um dia bom), e a maior parte da ilha era uma planície, que havia sido transformada ou em fazendas, ou plantações, ou reservas ambientais. Mas existia aquela pequena colina que ficava próxima à margem, onde a ilha encontrava o lago, que lutava contra as expectativas.

— Espere. Nós estamos invadindo propriedade privada? — Elliot perguntou de novo, e ativou o alarme do carro.

— O quê? Não. Talvez. Ok, sim. Mas só um pouco.

John

John se virou, brilhou a lanterna na direção do rosto de Elliot. Ele estava ali, parado, do lado do carro. Claramente hesitante, porque não estava acostumado a quebrar a lei. Era algo bastante nobre, claro. Em qualquer outra situação, John o chamaria de exemplo a ser seguido. Naquele momento, era apenas importuno.

— Eu tenho permissão, — John disse. — está tudo bem.

— Se a gente tivesse permissão, não seria invasão.

John se virou de volta para a trilha.

— El, se você vai me seguir, me siga. Mas se você me abandonar aqui, eu vou ficar muito desapon...

Mas ele não precisou terminar de falar, porque Elliot já estava do seu lado, com a própria lanterna ligada. Ele tomou mais um gole do milk-shake, nenhum dos dois se importando que já estava frio. John assentiu para si mesmo. Então o treinador estava certo — ele era, sim, um líder. Só que de um jeito meio perturbado. John apontou o celular para cima, para o topo dos galhos. Não sabia bem o que estava esperando ver. Era apenas um monte de folhas. Algumas verdes, algumas amarronzadas. O outono de Vermont não era sútil. Era um monte de chuva, e, depois, um monte de neve. Em alguns meses, John sentiria saudades do sol, do calor, de não ver sua respiração à frente do rosto.

John e Elliot andaram lado a lado, escalaram a pequena colina. Eles chegaram no topo.

Elliot soltou um suspiro. Olhou para cima.

— Ok. Isso é lindo.

Outra vez: Isle de Motte tinha, talvez, 500 pessoas. A ilha era feita de fazendas e plantações, com uma cidade construída ao redor da estrada que levava de um lado do Lago Champlain para o outro. As luzes estavam concentradas daquele lado.

Então, quando John olhou para cima, as estrelas estavam todas lá. Brilhando no céu. E era algo tão comum; mas, quando se morava em uma cidade, o céu parecia um como, e não um mar infinito. E então, haviam momentos como aqueles, onde existia a água para baixo, a noite escura para cima, e, ao longe, o modo que as luzes da cidade se projetavam como um holofote através da névoa do lago. E o céu estava cintilando, como se a própria Via Láctea abraçasse aquele pequeno pedaço da Terra.

— Como que você achou esse lugar? — Elliot perguntou, andando até o meio da clareira no topo da colina.

— Eu conheço alguém que tem uma fazenda aqui perto.

Elliot deu uma ponta do lençol para John.

— Alguém?

Eles se afastaram. O lençol se desdobrou. John tentou o estender o melhor que pôde no chão.

— Ok. Eu namorei uma garota que vinha para cá nos verões.

Elliot deu de ombros, ajeitou o lençol sobre a grama. Então se deixou cair em uma das extremidades. John caiu na outra, colocou a caixa de batata-frita e os milshakes entre eles.

John decidiu não pensar em como aquilo era literalmente o que 90% do mundo imaginava quando ouvia as palavras picnic romântico, porque a relação entre Elliot e ele certamente não precisava de mais complicações. Era como um quebra-cabeças que sempre estava faltando uma peça. Ou duas. Mais provavelmente quinze, se ele estivesse sendo sincero consigo mesmo.

John se deitou no seu lugar. Olhou para cima, para as estrelas. Aquele lugar — aquela clareira — era quase algo terapêutico para ele. Algumas vezes o resto do mundo estava ocupado demais, ou compreensivo de menos, e então, nos últimos meses, quando ele precisava respirar (e não havia nenhum amigo e/ou namoradas disponíveis), John dirigia até aquela colina, deitava na grama, colocava música e olhava para as estrelas. Às vezes, por horas. Às vezes, até que não houvessem mais estrelas para se ver.

Ele sentiu Elliot também se deitar no seu lugar. Ele abriu a caixinha do seu hambúrguer. Finalmente o mordeu, mesmo deitado. Ele soltou esse som de puro prazer. John riu para si mesmo, tomou um gole do seu milk-shake.

Cada acontecimento daquela noite era um em um milhão. Coisas que pessoas fantasiavam em seus diários.

— Seu celular ainda tem carga? Coloque algo para tocar. — Elliot falou, a boca ainda um pouco cheia com a mistura completamente saudável de hambúrguer e fritas. — Não é como se esta noite pudesse ficar menos homoerótica.

John riu outra vez, mas os fogos de artifício pipocaram no seu estômago, fortes como bombas, em milhares de cores como um arco-íris. Ele quase podia vê-los à sua frente, no céu, junto às estrelas. Um TRÁ, e então todas aquelas linhas brilhantes riscando o fundo negro.

John colocou o seu celular entre ele e Elliot. Apertou próximo na playlist, esperou que o celular escolhesse uma música. O resultado foi ARCTIC MONKEYS — DO I WANNA KNOW. John tomou um gole nervoso do seu milk-shake. Elliot continuou olhando para as estrelas.

— Homoerótico — Ele falou. — Eu disse, não disse?

— É o que acontece depois das três da manhã.

Eles continuaram conversando e comendo durante cinco músicas, e as estrelas continuaram girando no céu (ou, para ser mais cientificamente exato, o céu continuou girando em relação às estrelas), antes que os primeiros sinais do nascer-do-sol surgissem no horizonte.

Eram momentos como aquele em que John entendia o que significava perder o fôlego. Quando os primeiros raios de sol surgiam ao longe, e o céu se tornava aquele painel em tons de azul, lilás, laranja, rosa. Como se o sol não fosse uma estrela, fosse um pincel. Como se as nuvens não fossem essas massas de água condensada, mas telas molhadas em branco.

— Às vezes, — John falou. — eu não sei o que responder quando as pessoas me perguntam qual é minha cor favorita.

Elliot estava olhando para o nascer-do-sol. Ele assentiu, como se entendesse onde John estava indo.

— Por que? — Ele perguntou; não porque não sabia, mas porque ele queria ouvir John dizer.

— Porque eles esperam uma cor, sabe? Eles esperam que eu diga algo simples, tipo roxo ou fúcsia. Mas não é só uma cor. É um momento. É isto. — Ele apontou para frente, para o horizonte, onde o sol começava a surgir sobre a silhueta das cidades do Sul de Nova York, onde tudo era plano, os prédios não eram tão altos e as luzes não eram tão fortes. — Minha cor favorita é o nascer-do-sol. O que talvez soe um pouco pretensioso, mas isso não faz ser menos verdade.

John olhou para Elliot. Ele estava sorrindo.

— Se ajudar, — Elliot disse. — eu não acho pretensioso.

O celular de John estava tocando CAGE THE ELEPHANT — TOO LATE TO SAY GOODBYE. O estômago de John parecia a noite de ano-novo. Fogos de artifício. Explosões. Era o jeito que aquela letra gritava com ele.

Now I’m under your spell

Trapped in a lie

Shouldn’t have stood that close to the fire

Ele queria gritar. Ele tinha tantas músicas disponíveis. É claro que aquela ficaria naquele momento.

— É lindo. — Elliot disse, e tirou uma foto do céu.

— Sim, é. — John respondeu.

Mas ele não estava olhando para o nascer do sol. Ele estava olhando para o maldito rosto de Elliot.

No turning back. Nowhere to hide. It’s too late to say goodbye.

Era aquele o ponto crítico. O ponto de se fazer uma escolha. Elliot estava lá, sentado no lençol. E o seu rosto estava banhado por aqueles primeiros raios de sol. E a visão fazia John entender, de verdade, cada pequena parte daquela música. Wish we could go back to the start. But oh my god, is this real?

Era tarde demais para dizer adeus. Os olhos âmbar brilhando na luz da manhã. Se fosse qualquer garota, aquele seria o momento em que John a beijaria, e, de repente, só existiriam eles dois no mundo. Aquele seria o momento que provaria que magia era algo real. Porque esta era a coisa complicada sobre a magia. Quantas formas ela podia tomar?

Às vezes, magia era comer um hambúrguer às 5 da manhã, assistindo o sol surgir sobre um lago, acompanhado por alguém que costumava ser seu melhor amigo. Às vezes, magia era ouvir os pássaros cantando com os primeiros raios da manhã, acordando junto ao resto do mundo, enquanto sua música favorita tocava no seu celular. Às vezes, magia era perceber que você estava irreversivelmente apaixonado pelo garoto sentado ao seu lado, não importava o quanto você tentasse fugir.

Oito anos. Oito anos correndo da verdade. E lá estava ela. A razão pela qual John não podia segurar um relacionamento por mais de três semanas. A razão pela qual ele havia namorado, talvez, um quinto da população feminina da sua escola. A razão pela qual ele olhava para o seu passado e via ácido corroendo quem ele era por dentro.

Por causa de Elliot. Sempre fora por causa de Elliot.

Ele olhou para o nascer-do-sol, fechou os olhos, deixou que a luz tocasse seu rosto. Era como um sonho do qual ele não podia acordar. Talvez porque o sonho fosse forte demais. Talvez porque ele não quisesse acordar.

O seu celular avançou na playlist. TWO FEET — I FEEL LIKE I’M DROWNING . O que era ridículo, porque não só aquela música era tão perigosa quanto a outra, ela também eram tão perfeitamente apropriada. John estava se afogando dentro de si mesmo.

John olhou para Elliot de novo. Em algum momento, também tinha fechado os olhos. Ele parecia tão feliz. Em paz. Com um quase-sorriso nos lábios que já haviam sido alvos dos sonhos de John. Ele era alguém que sabia quem era, que nunca precisou esconder. John já havia tentado o odiar, puramente por motivos egoístas. Nunca havia funcionado no passado

Era provável que nunca funcionasse no futuro.

Certamente, não estava funcionando no presente.

John se deitou no lençol outra vez. Olhou diretamente para cima, para o gradiente no céu. E ele tentou se convencer que o motivo pelo qual ele estava tonto era porque a Terra estava girando, e não apenas sua cabeça. Se fossem algumas horas antes, ele podia culpar o álcool. Culpar Kravinsky. Culpar barris e festas. Mas não mais. Não durante o nascer do sol.

Ele nunca esteve tão sóbrio antes.

.

.

Eram 6:07 da manhã. As luzes dos postes já haviam se apagado. O céu estava claro outra vez. Enquanto Elliot dirigia de volta para Burlington, para casa, o celular de John — que aparentemente deveria ter a melhor bateria da Centro-oeste americano — não havia parado de continuar na sua playlist.

Eles haviam conversado menos durante o caminho de volta, embora as histórias ainda estivesse lá. De vez em quando, Elliot olhava para o lado, e John estava com os olhos fechados no banco reclinado — ele não tinha certeza se o garoto estava dormindo ou pensando. Mas então, a música mudava no rádio e ele movia as mãos como se estivesse tocando uma bateria invisível. Ele parecia estar acertando o ritmo da música, mas Elliot era um pianista, e não um baterista, então ele nunca saberia com certeza.

Elliot estava dividido entre finalmente chegar em casa, se jogar na sua cama, e estender aquele momento tanto quanto pudesse. Havia sido uma ótima noite. O tipo que não se vivia duas vezes. O tipo que ele lembraria cada vez que visse o rosto de John do outro lado do refeitório da escola.— e seria uma memória feliz, porque Elliot havia a vivido de verdade, com tudo que ele tinha. Mas também seria uma memória melancólica, porque, no momento em que os dois se separassem, eles voltariam a ser estranhos.

Eles nunca falariam sobre aquela noite outra vez.

Quando Elliot virou à direita em uma rua que, fatalmente, o levaria até o seu bairro, o visor do rádio mudou de CAGE THE ELEPHANT — CIGARETTE DAYDREAMS para TAME IMPALA — EVENTUALLY. E ambas eram daqueles tipos de música para se terminar a noite. No caso de John e Elliot, o fim da noite também era, coincidentemente, o início da manhã.

Com as nuvens lentamente voltando a se mover no céu azul, Elliot entrou na rua de casa. John se ajeitou no branco, passou a mão no rosto, se espreguiçou. Elliot subiu a rampa da garagem, parou o carro, puxou o freio de mão.

E tinha algo sobre aquele barulho. O som serrilhado do freio de mão. Porque ele sempre tinha um significado, acompanhava um sentimento. Ele sempre marcava um início ou um final. Elliot ficou olhando para a alavanca por alguns segundos. Ele estava sendo lento porque estava tentando prolongar aquele momento, ou porque ele havia não havia dormido fazia 22 horas?

Ele tinha que fingir, tanto para si mesmo quanto para John, que aquilo — tudo aquilo, toda aquela noite que havia virado dia — não tinha sido um encontro. Porque era dolorosamente inconcebível. O universo tinha que estar morrendo de rir dele naquele momento. Era tão ridículo. Elliot respirou fundo.

— Eu precisava disso. — Elliot falou.

— De hambúrgueres?

Elliot sorriu, recostou a cabeça contra o assento.

— Do nascer-do-sol. As coisas começaram a ficar caóticas de novo. Quer dizer, elas não estão caóticas ainda, mas com certeza vão ficar. Eu conheço os sinais. Foi bom ter esses momentos de... paz. Mesmo que seja só por hoje.

E um ponto final. John assentiu. Ele entendeu a mensagem que estava entre as linhas. Aquele era o jeito de Elliot de dizer que estava tudo bem que aquilo fosse tudo. Que aquela noite terminasse ali. Que, no momento em que fechassem os olhos, não tinha problema que fosse um fim, que eles voltassem a ser aqueles seres diferentes, que não se encaixavam. Quando se tratava de Elliot, John sempre entendia o que estava entre as linhas. Ele colocou a mão sobre o botão para abrir a porta, mas não a abriu. Não de imediato. Ao invés disso, apenas abriu a janela, deixou que o ar da manhã de outono circulasse no carro.

Quando Elliot olhou para ele, John tinha esse sorriso melancólico no rosto. Estava olhando para a sua casa, separada da de Elliot por uma única rua. Sempre que estavam nos seus quartos, eles podiam se ver pelas janelas.

Quando eram crianças, muitos anos atrás, os dois sonhavam em ter essa ponte de cordas que levava de uma janela à outra. Claro, sendo filhos de pais responsáveis, aquilo nunca se concretizou, porque era inimaginavelmente perigoso. Mas eles falavam que, quando crescessem e ganhassem dinheiro trabalhando durante o verão, eles mesmos comprariam a ponte de cordas para que pudessem visitar um ao outro a qualquer hora do dia. E seus pais não iam poder impedir, porque eles não teriam mais oito anos.

O plano não havia se concretizado. Mas a memória ainda estava lá. E, no presente, naquele momento dentro do carro que tinha gosto de outono, a lembrança estava viva, queimando sob a pele dos dois.

— Foi uma ótima noite. De verdade. — John disse, com a voz em um tom calmo e grave, que ele raramente usava. — Essa é a parte onde a gente se beija?

— No primeiro encontro? Eu sou melhor que isso.

John riu. Ele balançou a cabeça para si mesmo.

— Essa é a maior mentira que você já contou — Ele desligou o rádio, desplugou o celular. Ele se virou para Elliot, estendeu a mão livre, deu dois tapinhas de leve na sua bochecha. — Tenha bons sonhos, El.

E ele saiu do carro. Rápido, como se arrancasse um band-aid.

E talvez fosse a memória de quando eles eram crianças, talvez fosse o sono, talvez fosse o fato de que aquela havia sido umas das noites mais honestas que ele havia tido nos últimos anos, mas, através da janela aberta, Elliot respondeu:

— Bons sonhos, Jay.

O que causou um calafrio que percorreu toda a sua coluna vertebral. John parou no lugar, se virou nos calcanhares. Elliot não havia se referido a ele por aquele nome fazia oito anos. Ninguém havia se referido a ele por aquele nome fazia oito anos. Era algo dos dois, exclusivo para os dois.

Todos chamavam Elliot de Eli, exceto John, que o chamava de El. Todos chamavam John de John, menos Elliot, que o chamava de Jay. Pelo menos, costumava ser assim quando os dois eram crianças.

John jogou os braços para o lado, como se estivesse esperando por aquilo.

— Sério? — Ele falou. — Agora? Eu venho te chamado de El a noite toda.

Elliot deu de ombros.

— Era para ter um efeito dramático.

John sorriu, deixou seus braços caírem, baterem de volta no corpo.

— Inacreditável.

Então, se virou outra vez, atravessou a rua, pisou sobre a grama do Jardim, subiu até sua varanda. Ele trocou um último olhar com Elliot quando alcançou a porta de casa, acenou para dar adeus. E desapareceu lá dentro.

Elliot mordeu a parte interna da bochecha. A mesma bochecha na qual John havia tocado. Ele nunca admitia para qualquer pessoa as capacidades daquele toque.

Ele tirou a chave da ignição. Recolheu o lençol amassado que havia deixado atrás do banco. Lá dentro também estavam todas as caixas e copos do picnic calórico e improvisado durante o nascer do sol.

Algumas noites eram feitas para se tornar lembranças. Um Polaroid pendurado em um barbante, ou colado na parede. Não um momento no qual alguém poderia viver para sempre, ou um momento que deixaria Elliot acordado à noite, pensando em como ele preferiria estar lá. Sempre seria um momento que ele estaria alegre por ter acontecido.

Nostalgia também podia ser feliz.

Elliot saiu do carro. Apertou o botão de travar no controle. A buzina avisou uma vez que havia recebido o comando, a janela aberta subiu de volta até se fechar. Elliot subiu os dois degraus que levavam até a sua varanda. Bateu os sapatos no tapete de boas-vindas. E entrou em casa, deixando o vento frio do outono para trás.

Com um silêncio cuidadoso, ele pisou nos degraus que ele sabia que não rangiam. Entrou no seu quarto. Jogou o lençol ao lado da escrivaninha, e, então, fez o mesmo com o seu casaco.

As persianas abertas deixavam a luz do sol entrar no quarto. Ele foi até a janela.

E lá, do outro lado, estava John. Se preparando para dormir, se livrando das roupas que cheiravam a álcool, porque Kravinsky havia esbarrando nele quando tinha um copo cheio de cerveja na mão. E aquela deveria ser a parte em que o coração de Elliot relaxava, parava de bater tão forte, porque ele havia chegado em casa, e agora podia descansar. Mas, ao invés disso, ele viu John do outro lado, e seu pulso acelerou. O que estava lá em cima na lista de coisas mais estúpida que aquele órgão já havia feito durante os dezoito anos em que estava batendo.

O universo definitivamente deveria estar morrendo de rir em algum lugar ali perto.

John se virou antes que pudesse tirar um número irreversível de peças de roupa. Ele viu Elliot o olhando do outro lado da rua e também se colocou em frente à janela. Ele ficou parado ali, mas Elliot não podia o questionar, porque estava fazendo o mesmo.

Enfuriante. Aquela era a palavra. Tudo sobre ele era enfuriante para Elliot. John era enfuriantemente complexo. Enfuriantemente distante. Enfuriantemente bonito. Olhos verdes, cachos castanhos, músculos que criavam linhas na pele. Enfuriante.

Elliot desviou o olhar. Fechou as persianas.

A noite havia acabado. Era o momento onde eles fechavam os olhos e se tornavam estranhos de novo, embora eles nunca tivessem sido estranhos para começo de conversa. Não importava o quanto os dois tentavam fingir que sim.

Na escrivaninha, Elliot tinha esse retrato dos dois. Eles estavam todos na casa do lago que visitavam nos verões. Elliot, John, seus pais e suas mães. Juntos, em frente ao Lago Luna, e todos estavam molhados porque haviam acabado de mergulhar nas águas que sempre estavam frias, não importava quanto sol estivesse fazendo. Eles eram inocentes e suas almas eram leves na época. Aquela era outra memória que sempre estaria lá.

Elliot escovou os dentes. E, embora não fosse o plano original, ele se enfiou debaixo do chuveiro gelado, porque a sua pele insistia em segurar a sensação de estar ao lado de alguém, ao lado de John, e Elliot precisava a limpar, precisava a deixar para trás, se quisesse que a paz continuasse como paz. Então, quando finalmente acabou, se jogou na cama.

Estava na hora de fechar os olhos.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado.

Se houve algum erro, perdão. Uma grande parte do texto foi escrita no celular à caminho, ou de volta, da faculdade.

Quando eu estiver pronto para postar a história completa, juro que vai ter bem mais. E vai ser SAUDÁVEL.
Existe um pequeno preview no site que eu criei para mim, na aba "Histórias". Não é muito, mas é bom pra dar aquele gostinho na parte direita da ponta da língua.



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