Os filhos do tigre escrita por Anaruaa


Capítulo 18
A viagem - Kamala




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Quando eu decidi partir em uma viagem pela Índia, eu não imaginava que isto fosse me mudar tanto quanto mudou.

Minha família era muito rica. Os Rajaram descendiam de reis e eu estava ciente que fazíamos parte de uma minoria.

Minha família sempre teve responsabilidade social, meus pais doavam dinheiro para uma infinidade de projetos, financiavam ONGs, doavam dinheiro para universidades. As Indústrias Rajaram preocupavam-se com o bem estar de seus funcionários e procuravam garantir uma boa remuneração a todos.

O que me preocupava nos últimos tempos, era o fato de que a nova direção da empresa, com Robert e Sohan à frente dos negócios, as prioridades da empresa mudassem e os lucros passassem a ser a base de tudo, desconsiderando as pessoas. E depois da viagem, esta preocupação tornou-se maior.

Eu sempre tive consciência dos meus privilégios por ser uma pessoa rica e sabia que a maioria das pessoas não tinham tudo o que eu tinha. Eu sabia que grande parte da população indiana era extremamente pobre. O que eu não sabia, era o significado de "extremamente pobre".

Viajei por quase toda a Índia e outros países asiáticos, indo às vilas e lugarejos mais pobres. Tive contato com os cenários mais desoladores que um pessoa poderia encontrar. Conheci pessoas que não tinham o que comer ou o que vestir. Eu vi mulheres grávidas ou com bebês no colo fazendo trabalhos pesados e degradantes, crianças que dormiam no chão de suas casas e acordavam cedo para trabalhar, descalços e com as mesmas roupas sujas do dia anterior, pessoas de todas as idades comendo um pedaço de pão ou uma pequena porção de arroz depois de um dia inteiro de trabalho.

Eu vi como as pessoas moravam no meio do lixo, do esgoto a céu aberto, sem água limpa até para beber. Crianças doentes sem receber tratamento, pessoas com defeitos congênitos que eu nunca imaginei existirem, mulheres vítimas de violência, que ao invés de serem cuidadas, eram tratadas como malditas. Crianças abandonadas ou vendidas pelos próprios pais se prostituindo em troca de comida. Meninas vestidas como mulheres em prostíbulos, submetendo-se às mais diversas formas de humilhação a qual um ser humano pode suportar.

Fiquei profundamente tocada por tudo o que eu vi. Percebi que as pessoas, por mais pobres e sofridas que sejam, a grande maioria delas ainda mantêm a fé nos deuses. Vi pequenos altares em muitas residências. Muitos indianos cultuavam seus deuses e faziam sua orações com fé, crendo que seu Deus lhe garantiria as bênçãos nesta vida ou em outra. Todos os pobres mantinham sua fé, seja em Ganesh, Durga, Shiva, Krishna, Alá ou Jesus.

Comecei a questionar esta religiosidade e a fé das pessoas. Como elas podiam continuar acreditando nesses deuses, se eles lhes abandonaram e lhes viraram as costas? Se estes deuses existem, se eles têm o poder de mudar as coisas, porque não o fazem?

Pensei em meu irmão e sua esposa, tão religiosos e cheios de fé. Para eles era fácil, pois, mesmo adotando um estilo de vida mais simples, Anik era rico e nada nunca lhe faltou. Então pensei em Radha.

Minha cunhada não era rica. Ela nasceu em um daqueles vilarejos que eu visitei, nasceu pobre e foi vendida pelo pai. O destino de Radha poderia ter sido muito diferente, se alguém bom e justo não a tivesse resgatado. Radha poderia ter se tornado uma daquelas prostitutas que eu conheci em minha viagem, ela poderia ser uma daquelas mulheres doentes, agredidas, queimadas por ácido, não fosse a bondade de um homem. Então eu entendi.

Talvez exista um Deus, ou vários deuses. Mas a responsabilidade de cuidar do outro é nossa, das pessoas. Comecei a ler um pouco sobre os deuses do hinduísmo e percebi o quanto eles eram humanos e concluí que os deuses eram apenas pessoas, seres humanos como eu, mas que não se calaram diante das injustiças, que não se aquietaram diante da maldade e lutaram para libertar as pessoas do mal. E o mal, este também vinha dos humanos, e era este mal que eu precisava combater.

Se existem deuses ou demônios, eles estão dentro de nós. Alguns escolhem ser um Deus, outros escolhem ser um demônio. Eu escolhi ser uma deusa.


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