Adele escrita por Camélia Bardon


Capítulo 3
II. Escritas e leituras


Notas iniciais do capítulo

Boa tarde, boa noite ou bom dia! Tudo bem com vocês? Espero que sim! ♥
Mais uma vez agradeço à vocês por todo o apoio e carinho que estão dando para mim e para essa história.
Hoje dou uma dica misteriosa: sugiro que prestem atenção aos detalhes do capítulo, eles podem indicar o futuro da nossa Adele.



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Ficou-se decidido de que Lady Hérault – Hérault, ensinou-me, devido à propriedade. Quando estivéssemos a sós, poderia contentar-se com Lady Chevalier ou apenas senhora— e Sienna passariam as próximas semanas, fora o tempo necessário para completar o trajeto, em Paris. Remy levá-las-ia até a Casa Moreau, e não estava nem um pouco empolgado com a perspectiva dos doze dias de viagem. Ao menos, contou Remy, a comida era boa.

Remy apreciava a Casa Chevalier, e me segredou que não se agradava nem um pouco de srta. Lilian. Segundo ele, a definição para srta. Lilian era viciada em fumo – um hábito realmente desagradável para uma mocinha de sua idade, veja só!—, dada a escândalos e pseudointelectual.

Arqueei a sobrancelha para Sienna, que apenas deu de ombros e abriu um sorriso maldoso.

— Em certos casos, é preferível o silêncio. Vou à vida boêmia, cara Adele, e não à casa de Lilian. Esta é somente um teto para dormir.

Durante as semanas ausentes, Thierry me ensinaria a assimilar os sons que sempre ouvi com as letras, as temidas letras. Nossa primeira aula na biblioteca fora cheia de expectativa. Se por um lado eu estava exultante com a ideia de minha independência literária, por outro encontrava-me apreensiva com a provável frustração de Thierry quanto à minha inabilidade. Afinal, esta era sua especialidade. A biblioteca era seu habitat natural, bem como o meu era a lavanderia.

Thierry abriu o caderno que me dera e rabiscou o alfabeto, uma letra maiúscula e outra minúscula ao seu lado. Me fitou com olhar cúmplice quando terminou e mostrou-o a mim.

— Sabe de alguma?

— Claro! — sorri, contente. — A. De Adele.

— A de Adele. E que letras compõem o nome Adele?

— A-D-E-L-E — apontei cada uma com o dedo conforme falava.

— Muito bem, então temos os sons de A, D, E, e L. Pode me dizer palavras que tenham esses sons?

— Hum... — pensei um pouco. — Demain¹. Ettore. Lilian.

Thierry franziu o nariz com a palavra. Me contentei com um risinho, que fez Thierry resmungar. Então observei o que fazia: ia anotando as palavras que eu lhe dizia. Fomos de Adele, baguette e Chevalier até xylophone, yeux e zoologique². O problema não eram as palavras pequenas, eram as expressões, simplificações e acentos, tais como s’il vous plaît e j’fais³. Thierry mostrava-se sempre paciente, e teorizava que, por eu já conhecer os sons que elas possuíam. Era mais fácil apenas identificar que palavras possuíam determinados sons.

Por fim, lemos a carta que a Irmã D’Mathieu enviara da Basílica de Saint Pierre. Meus olhos brilhavam como duas avelãs ao poder, finalmente, ao menos por poucos minutos, deixar de ser apenas a expectadora.

Minha queridíssima Adele,

Estes dias estive sonhando com quando eras apenas uma pequena bebê em nossos braços. Uma garotinha franzina, com olhinhos inteligentes e nariz arrebitado. Pensamos até que fosse uma princesa. Sempre será, para nós.

Como contei em nossa correspondência anterior, agora sou a Abadessa Josephine. Abadessa Josephine, consegue acreditar na admiração deste título, Adele? Está certo que não se mudam muitas coisas, entretanto para mim é uma pedra a mais em minha coroa celestial. Espero que possas visitar-me em breve, porquanto já me encontro velha e ainda me lembro de ti. As Irmãs, como sempre, mandam seu amor aqui de Avignon.

Já visitastes a Torre Eiffel? Aqui somos da opinião de que não durará tanto tempo. Imagine, umas vigas de metal para estragar a beleza de nossa Paris...

Ah, além de visitar a esta velha caduca, passou aqui na Basílica um senhor um tanto engraçado, com seus trinta anos, perguntando-nos se tínhamos conhecimento de alguém que mexesse com calor ou ferros de passar. Respondemos que entraríamos em contato contigo. Ele confirmou e saiu tão rápido quanto entrou. Dê-nos a resposta assim que possível.

Esperamos que gostes dos velhos-novos vestidos. Desculpamo-nos, como de praxe, pelas cores frias e escuras. Sabemos que, se pudesse, usaria tons mais vivos e coloridos. Um dia, Adele. Um dia. Sempre será nossa menininha.

Afetuosamente,

De todas suas madrinhas em Avignon.”

Funguei e enxuguei os olhos discretamente. Ah, saudade que doía e comprimia o peito... Thierry tratou-se de fechar a carta e entregá-la a mim. Fez menção de comentar algo, porém nossa breve primeira aula foi interrompida por Bertoli. Este caminhou até a mesa de centro e pigarreou.

— Com licença, senhor, mas Lorde Hérault gostaria de tê-lo em seu escritório.

— A respeito de quê?

— Pelo que entendi, senhor, acerca de negócios com Lorde Claude de Lozère.

Thierry suspirou pesadamente, não escondendo sua frustração. Thierry repudiava ser o primeiro herdeiro e ter de contribuir com os negócios da família. A seu ver – e ao meu também – Sienna lidaria melhor com as questões diplomáticas.

Quer saber dos segredos dos senhores da casa? Consulte a criadagem.

Por fim, Thierry cedeu e voltou-se para mim ao levantar-se.

— Perdoe-me, Adele. Continuamos outro dia, sim?

Assenti com a cabeça e observei-o deixar o cômodo. Sei que eu poderia permanecer ali por anos a fio, e acumular raízes e teias de aranha. Desde que Thierry voltasse, teriam passado apenas segundos para mim.

 

Após oito anos no interminável ciclo de lavar-secar-passar-dobrar-guardar/estender, tinha (e ainda tenho) calos nas mãos e incontáveis queimaduras nos dedos e braços do ferro de passar. Meus braços, antes delicados e esguios, agora encontravam-se cheios de músculos de acionar a alavanca da máquina de espremer roupas. Enxuguei o suor do rosto ao observar os pesados vestidos de inverno de Melina e as roupas sujas de lama de Ettore.

Eu sabia de cor e salteado como seria meu dia. Lorde Victor acordaria cedo, tomaria um dos cavalos – muito provavelmente Coronel – para ir ao escritório comercial de Languedoc-Roussilon, eu acordaria com o cheiro do café-da-manhã generoso de Melina antes de Lorde Victor partir. E então recolheria as roupas sujas – estes dois meses, deixaria de lado meu trabalho extra como dama de companhia – e lavaria-secaria-passaria-dobraria-guardaria/estenderia. Minhas recompensas eram os jardins, os cozidos de Melina, as notícias diárias lidas por Thierry e as piadas de Ettore durante o jantar. Subiríamos para nossos quartos (em meu caso e de Melina) ou voltaríamos para nossas esposas e lares (no caso de Remy, Ettore e Bertoli) e esperaríamos pelo próximo raiar de sol.

Languedoc-Roussilon sustentava-se, além da diplomacia, pela agricultura e cultivo de flores. Tínhamos várias mudas de íris – assim como toda a França –, narcisos, rosas, lírios, lavandas e jasmins. Sienna contava-me que as cidades Metz e Nancy, ao nordeste na região de Lorena, eram encantadoras donas de jardins. Contudo, passear pelo jardim e apreciar o belo trabalho de Ettore era um paraíso particular.

Ettore passava o dia na fazenda vizinha, e ao retornar, cuidava do jardim dos Chevalier. Diferia de seu irmão, Bertoli, radicalmente na personalidade. Ao passo que Bertoli era sério, resoluto e perspicaz, Ettore era brincalhão, insolente e divergente ao quesito opinião geral. Se perguntassem se ele preferia rosas a peônias, na segunda-feira responderia rosas e, na quarta-feira, peônias.

Naquela primeira semana, entretanto, o clima da Casa Chevalier, na ausência de Sienna e sua mãe, encontrava-se tragicamente parado. Melina não ouvia elogios por sua comida, eu não possuía tanta serventia, Remy não contribuía com seus galanteios, Bertoli e Ettore... bem, estes são casos especiais. Lorde Victor e Thierry jantavam no Salão Azul, o salão de jantar, e nós, na cozinha.

— E então, ouçam — dizia Ettore. — Eu estava na cidade fazendo a entrega das flores, quando ouço uma menininha apontar para uma daquelas embarcações novas, os iates. E então ela diz para o pai “papa, papa! Um barco!”. O pai a corrige: “não é um barco, minha queridinha. É um yacht4”. A filha fica toda séria e pergunta “papa, como se escreve yacht?” E o pai — ele ri antes de terminar a piada, um costume que fazia-nos rir igualmente. — O pai, confuso, diz “tem razão, meu bem. É um barco”.

Todos na mesa riram, menos eu. Afinal, eu também não sabia como se escrevia yacht. Apesar disso, dou meu riso sem graça. Subitamente, minhas unhas parecem interessantíssimas. Bertoli nota meu desconforto e oferece um sorriso gentil. Retribuo-o com um dar de ombros.

— Falando em escrita, um passarinho contou-me que nossa Adele está aprendendo a ler escrever — Bertoli oferece apoio.

— Estou — confirmei, timidamente. — Não quero mais importunar o senhor Thierry com minhas cartas.

— Justo — aprovou Melina. — Não é como se importunasse alguém, Adele. Temo de ter de implorar-te para fazer algum som enquanto se movimenta, pois todos nós levamos sustos com seus silêncios.

Outra rodada de risos. Senti minhas bochechas esquentarem. Entretanto, a sensação era melhor que o desconforto anterior.

— Brincadeiras à parte, estamos todos orgulhosos, Adele — Ettore piscou e ergueu um polegar. — Remy diria très bien, ma chère!

— Sinto-me exultante — finalizei, enquanto a conversa prosseguia.

Terminamos o jantar, eu e Melina despedimo-nos dos rapazes e recolhemos a nossa louça e a de Lorde Victor e Thierry. Quando voltávamos para a cozinha, pude ouvir Lorde Victor ralhar com o filho:

— ... Perder tempo com a criadagem, Thierry. Ao invés de cuidar dos negócios! Ponha-se em seu devido lugar. Mulheres precisam saber cozinhar, passar e costurar, e não a ler e escrever! Principalmente camareiras. Ora essa, onde já...

Meu coração provavelmente quebrou-se em um milhão com as palavras de Lorde Victor. Melina me amparou pelos ombros e levou-me para meus aposentos. Procurei lágrimas em meu estoque, mas acabei por não as encontrar.

— Não se deixe levar pelas palavras de um carrancudo, minha querida — ela me aninhou em seus braços. — Thierry não vai ceder a esse pedido maldoso. Ora, se fosse comigo eu não sei o que faria.

— Não faria nada, pois também és a governanta, Melina. Tão mulher e limitada quanto eu.

— Mulher e limitada? — Melina soltou um riso irônico. — Anote minhas palavras, Adele. Daqui a alguns anos, nós, mulheres, conquistaremos nosso lugar de direito. Teremos reconhecimento. Não seremos máquinas de cozinha e costura. Seremos rainhas, cientistas e revolucionárias. Talvez eu não veja este tempo chegar, pois já estou velha, mas quanto a ti — e fez um delicado afago em meu cabelo, desprendendo a trança que eu fizera mais cedo. — Verá este sonho tornando-se realidade. Melhor ainda: fará parte dele.

— Assim espero — soltei um muxoxo. — Obrigada, Melina. Tenho a ti como uma mãe postiça.

Melina pareceu emocionar-se com o comentário. Há alguns anos, contou-me que era estéril. Dissera-me que se contentara em ser governanta quando tornou-se viúva, pois assim cuidaria dos filhos das patroas enquanto essas estivessem nas festas convencionais. Questionei-a se essa decisão não mostrar-se-ia contrária à pretensão, entretanto Melina apenas suspirou. Admitiu que, além de Thierry e Sienna, eu estava inclusa na prole postiça.

A governanta deixou-me a sós, fitando o vazio e a chama de minha vela, que crepitava solícita.

Ponderei acerca do que Melina e Irmã Josephine contaram-me naquela noite, enquanto minhas pálpebras pesavam.

 

Aos meus 25 anos, é claro que eu nem sequer sonhava com nosso papel no mundo.

Comecei a duvidar de minha religiosidade ao notar o papel da mulher na Sagrada. Ao passo que os homens sempre foram os profetas, percursores, realizadores de milagres, as mulheres contentaram-se como pilares “sábios”, pacientes e generosos dos profetas, percursores e realizadores de milagres. Importantes a seu modo? Sim, no entanto não extraordinárias.

O termo agnosticismo teve sua popularidade anos mais tarde. É um termo de cunho filosófico que explica que seus adeptos não vêm explicação lógica em justificar tanto a existência quanto a não-existência de Deus. Então abrem-se as vertentes do agnóstico ateísta e do agnóstico teísta. Eu me encaixei neste segundo subconjunto.

Se algum dia me perguntassem o que eu pensava sobre Deus, eu responderia que se diz que fomos feitos à sua imagem e semelhança. Entretanto, nós o moldamos conforme a nossa imagem e semelhança. Eu não conseguia teorizar Deus como o Deus punidor. O Deus “me obedeça, caso contrário você irá para o inferno”. Eu via e sentia Deus na natureza, no ar, na bondade e em meu coração. E, acredite em mim quando digo que humanos podem ser cruéis. Muito, muito cruéis. Não sei a que época a que você, leitor, está situado; contudo, já deve ter vivenciado uma pequena parcela dessa crueldade. Os humanos sempre tendem a fazer o que é pior para eles próprios.

De qualquer maneira, naquele dia, contraditoriamente, eu orei. Mas não a Deus. Orei ao Universo, grande e vasto, e para todos os nossos endereços cósmicos – desde a Terra, ao Aglomerado de Virgem e, indo mais além, ao Universo Observável. Dentre centenas de bilhões de galáxias, pedi ao Universo que me concedesse uma chance de tornar-me uma parte extraordinária dele.

E o Universo, majestoso e imponente, mostrou-se gentil para comigo. Tínhamos forjado uma aliança de valor inenarrável. Entretanto, por ora, eu ainda me encontrava sujeita a suas brincadeiras sádicas.


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Notas finais do capítulo

Traduções:
¹Demain: Amanhã.
²Xylophone/Yeux/Zoologique: Xilofone/Olhos/Zoológico.
³S’il vous plaît/J’fais: Por favor/Estou fazendo
4- Yacht: iate.
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Nota importante: não tenho nada contra e nem julgo nenhuma religião. Apenas inseri esse pensamento dela porque é realmente importante para a história.
Espero que tenham gostado ♥ Alguma teoria? Muahahahaha
Até o próximo!