Adele escrita por Camélia Bardon


Capítulo 2
I. Chegadas e retornos


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoinhas ♥ vim aqui avisar que os capítulos sairão mesmo uma vez por semana, entre sextas-feiras e domingos. Um beijão no coração de vocês, e muito obrigada para quem está acompanhando e comentando, vocês fazem o meu dia.



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Quando fui deixada sob as escadas da pequenina Basílica de Saint Pierre, as freiras se sobressaltaram. Como um pai ou uma mãe que se prezasse poderia abrir mão uma vida inocente, uma indefesa recém-nascida? Que Deus vigiasse pelas vidas de pais tão pobres – tratando-se tanto de posses materiais quanto por parte da pobreza de espírito.

Chamaram-me Adele. A tradução deste meu nome compreende “nobreza”. Freiras, criaturinhas do espécime mais cruel! Ora, onde já se viu? Dar a uma órfã o título de nobreza... um lembrete constante e atroz de seu corriqueiro lugar no mundo. Ou, ao menos, na grande França.

Com o tempo, aprendia amar Avignon com afinco. Esta, a quem chamam de Cidade dos Papas – por motivos de abrigar por longos anos, séculos antes, sete papas ao todo – enfeitiçou-me com sua singularidade. Quanto às freiras, quatro regiam a Basílica de Saint Pierre: a Irmã Caron, Irmã Lefèvre, Irmã D’Mathieu e Irmã Guyot. Bem assim sob regência havia o padre Étienne, embora só os visse aos domingos nas missas. Embora eu não fosse nenhuma religiosa fervorosa, o padre era gentil e seus sermões eram igualmente gentis.

Carinhosamente, apelidei as freiras – que bem podia chamar de madrinhas – de forças da natureza, porquanto cada uma me parecia ter personalidade condizente com um dos quatro elementos. A Irmã Lefèvre certamente era a terra: impulsiva, enérgica e prática, parecia ter um plano alternativo para todos os eventos. A Irmã Guyot, por sua vez, era empenhada em sua paixão por Cristo, semelhante ao fogo. A Irmã Caron sempre foi para mim um mistério de tamanho inenarrável, tal como o ar. Gostava de debates sociológicos, frequentava discursos de fidalgos e sempre estava passeando. Minha teoria é de que ela secretamente ansiava por outro destino, além da obra à Cristo. Já a Irmã D’Mathieu, como torrentes d’água, carregava tristeza em seu âmago e passado. Seu coração altruísta não cabia na Basílica, por isso assumiu-se como minha tutora e mudamo-nos para Montpellier quando eu era da idade de treze anos.

A Irmã D’Mathieu – para mim, Josephine D’Mathieu – não julgava necessário meu ingresso à escola. Ela própria lia-me trechos da Sagrada Escritura (tendo como base argumentativa o texto de Provérbios, onde pode encontrar-se o conselho de “ensina a criança no caminho que deve trilhar, e mesmo na velhice não desviar-se-á dele”), todavia recusou-se veementemente a ler e escrever. Ensinou-me meu nome, mesmo que eu não compreendesse quaisquer estruturas gramaticais. Ensinou-me também a contar meus aniversários em primaveras.

Nunca visitamos Paris. E não voltamos a Avignon, por mais que eu insistisse. Irmã Josephine dizia que a Catedral de Montpellier lhe era mais adequada. Mandava cartas regularmente à Avignon, hábito que eu admirava e almejava um dia.

Com dezoito anos, pedi à irmã Josephine para deixar o convento da Catedral de Montpellier e trabalhar como doméstica em alguma casa nobre da cidade. A princípio, relutou, mas eu exigia alguma liberdade social. Então, contatou Lady Chevalier, frequentadora assídua das missas na Catedral. Esta, por coincidência ou destino (e para meu deleite), procurava por uma camareira para ela e a filha. Serviço simples, mas que demandava energia, disposição e tempo. Lady Chevalier gracejava com seus últimos anos como nobre, porquanto a república já se instalara na França e dissipava aos poucos os fidalgos.

Após cinco anos afastada de Avignon, a Irmã D’Mathieu regressou à companhia de suas velhas amigas. E eu, após cinco anos afastada de Avignon, Montpellier chegou a mim em todo seu esplendor.

Fui apresentada à Casa Chevalier pouco depois de meu aniversário. Situado à região de Languedoc-Roussillon, delimitado a Hérault – fazendo assim Lorde Victor ser Lorde Hérault – a mansão era composta em tons creme e azul-céu. Contei sete janelas à altura do segundo andar, todas emolduradas por um arco em “o” de madeira, bem como a porta principal, esculpida em mogno. Topiarias circulares enfeitavam a frente junto a jasmins brancos e amarelos. Tudo me pareceu encantador, visto aos poucos ambientes sofisticados que havia observado.

Da carruagem onde eu e Lady Chevalier estávamos, esta teve a bondade e humildade de esperar a carruagem contornar os fundos e acompanhar-me, muito provavelmente para não errar o trajeto da próxima vez que o fizesse. Quando a carruagem parou, Lady Chevalier ofereceu-me um sorriso amigável. O cocheiro desceu de seu posto e abriu a porta ao lado de Lady Chevalier. Estendeu a mão para auxiliá-la na descida, como a etiqueta exigia. Quando descia, espiou para dentro da carruagem com um olhar curioso.

— Temos companhia, senhora?

Também espiei para fora. Tratava-se de um homem por volta dos seus 35 a 40 anos, cabelos encaracolados e costeletas. Trajava camisa social e sobretudo preto. Suas feições indicavam-me simpatia automática.

— Sim, Remy. Nossa nova camareira, Adele — Remy também estendeu sua mão para mim, e quando retribuí o gesto, levou minha mão à sua boca e ali depositou um beijo delicado por cima de minha luva gasta. Também desci da carruagem, e minhas botas ecoaram ao bater no caminho de pedras.

Enchanté, mademoiselle. Tenho certeza de que Cheyenne e Champagne também estão encantados em conhecê-la — e apontou com a cabeça para a égua e o cavalo que conduziram nosso caminho.

— É um prazer conhecê-lo, senhor — fiz uma simples mesura e voltei-me para os cavalos, arriscando presenteá-los com um carinho no focinho. — E a vocês também, é claro.

Depois de nossa breve apresentação, Remy tomou rumo dos estábulos. Lady Chevalier contou-me que, além de Cheyenne e Champagne, contavam com Coronel e Campeão. Ri comigo mesma de tal obsessão por nomes iniciados em C.

Caminhamos pelos caminhos de pedra até a porta dos fundos da mansão. Notei um jardim aos fundos, e incluí um lembrete mental de visitá-lo mais tarde. Encaminhamo-nos para a cozinha, onde a governanta preparava o almoço. O cheiro de cozido de batatas tentou-me a derreter ali mesmo. Ao notar a patroa, a governanta parou de mexer o cozido. Era uma senhora de cinquenta e poucos anos, sardenta e com aparência carrancuda.

— Não esperava que voltasse tão cedo, madame. O almoço ficará pronto dentro de meia hora.

— Deixe as preocupações de lado, Melina. Assim assustará a camareira. Não sou esse monstro todo — Lady Chevalier gracejou.

— Muito prazer, senhora — acrescentei, solícita.

— Ah, é claro, a camareira. Havia me esquecido. Perdão, senhora. Esta é Adele, então. Muito prazer, mocinha. Sou Melina, a governanta e cozinheira. Mostrará a ela os aposentos, senhora?

— Sim. Fique tranquila, pode terminar o almoço.

— Ah, senhora. O patrão pediu para avisar que saiu para dar uma volta com as crianças pela propriedade dos Moreau. Deve estar aqui em breve.

Lady Chevalier assentiu com a cabeça e murmurou um obrigada. O tour pela mansão continuou. A senhora mostrou-me os dois andares, os quartos das crianças, o quarto do casal, o quarto de piano e de hóspedes, meu quarto... céus, o lugar era enorme. Em seguida, deixou-me em meu quarto antes que o marido e os filhos chegassem.

— Fique à vontade, Adele. A casa é sua. Temos papel de carta caso queira mandar alguma para a Irmã Josephine, e temos livros na biblioteca no quarto do piano. Pode sair sempre quando não estiver sendo requisitada ou para ir à missa, peça a Remy e ele a levará onde desejar.

— Obrigada, senhora.

Permaneci pensativa por alguns minutos. Papel de carta e livros. Úteis se eu soubesse como usá-los.

Suspirei e troquei minhas botas por um par de sapatos de salto baixo. Fitei-me no espelho de meu pequenino quarto. Vestido branco amarrotado. Poderia fazer uma trança. Uma cama, um criado-mudo, um espelho e uma das sete janelas que notei ao chegar.

Ali eu seria feliz. Ou ao menos me esforçaria ao máximo.

 

Hérault, Languedoc-Roussillon, setembro de 1899

 

Não me recordo das aparências de Sienna e Thierry quando mais novos. Sei bem que, como aos vinte e cinco, seus rostos estavam intactos.

Enquanto auxiliava Sienna com os botões do vestido, comentei:

— Milady está estonteante hoje.

E, de fato, estava. Possuía os mesmos cabelos castanho-claro do pai, que caíam em cachos pelos ombros. Não era nem tão alta, como a mãe, nem tão baixa, como eu. Naquele dia trajava um vestido cor de amora-silvestre. O espartilho marcava sua cintura fina, e os babados no pescoço davam-lhe um ar gracioso. Como o clima frio assolava Montpellier, sugeri botas longas por baixo do vestido.

— Obrigada, Adele. Não é sempre que se comemoram os dezoito. Você está fazendo um trabalho impecável, e lhe agradeço por isso.

Ao passo que eu completava primaveras, Sienna completava outonos. E sempre ia a Paris para comemorá-los com as amigas parisienses. Fugia de casamentos e não tinha medo de dizer que aos dezoito permanecia solteira. Sienna era desinibida e encantadora.

Terminei os botões, e busquei os grampos de cabelo em sua penteadeira. Espiei pela janela e notei que Remy chegava com a carruagem.

— Esperamos visitas, senhorita? — franzi a testa.

Sienna também conferiu a janela. Igualmente, parecia-me confusa.

— Creio que não. Mamãe não me disse nada — Sienna permaneceu sentada enquanto eu pedia-lhe para segurar as tranças do coque. Fiz duas laterais, que se juntavam à cascata de fios claros e terminavam num coque elegante. Mostrei o resultado com o espelho, e Sienna soltou um gritinho de felicidade. — Oh, mas você tem mãos mágicas, Adele. O que seria de mim sem você?

— Uma menina bonita sem penteados bonitos, senhorita — brinquei.

Lady Chevalier dizia a mim que Sienna via-me como uma irmã mais velha. O clima descontraído que os Chevalier me permitiam era encorajador. Não apenas comigo, a mesma gentileza que tinham para comigo, demonstravam com Melina, Remy e agora para os gêmeos italianos – o jardineiro, Ettore, e o mordomo, Bertoli. Tudo era a mais perfeita harmonia.

— Tens razão, Adele. Eu adoraria ter seu auxílio em Paris.

— Quem sabe um dia, senhorita. Montpellier é meu lar.

— Eu sei, eu sei — ela balançava os pés, impaciente. Quando finalmente terminei de arrumá-la, levantou-se como um furacão. Questionei-a por olhar. — Verei quem chegou. Com licença.

Tão rápido quanto se levantou, ouvi seus sapatos castigando a escada. Ri sozinha e comecei a dobrar a roupa de cama. Também me atentei aos sons no andar de baixo. Em poucos minutos ouço Sienna festejar com a chegada... ah, de seu irmão.

Thierry estivera em Paris para a feira científica. Thierry era um homem inteligente, e sempre escrevia minhas cartas para a Irmã D’Mathieu em Avignon. Diferia da irmã nos cabelos lisos e mais claros, e com grande frequência encontrava-se enfiado em livros ou tocando alguma nova sinfonia no piano de cauda. Amava o chá que eu preparava e era paciente e bondoso.

Assim que completasse seus vinte e um anos, mudar-se-ia para Paris definitivamente e desposar-se-ia de uma tal srta. Lilian Moreau. Caso não estivesse enganada, esta senhorita, junto aos pais e avós, era vizinha dos Chevalier na infância, até quando fui contratada. Os pais decidiram que Paris lhe era mais confortável – eles tinham muito dinheiro a gastar, por que não viver na capital, ora?

Thierry repudiava casamentos arranjados, como bem já me havia comentado. Entretanto, Lorde Victor ainda era vivo, e Thierry ainda não atingira a maioridade, portanto o pai respondia por seus atos. Thierry possuía uma alma triste, e eu me compadecia grandemente dele.

Depois de finalizar as roupas de cama, dirigi-me ao andar de baixo para a lavanderia. Para tanto, precisaria passar pela sala de piano. Eu não poderia reunir-me com a família, entretanto poderia oferecer um olá. Quando tentava passar-me desapercebida, ouvi o grito de Sienna do quarto ao lado.

— Adele! Thierry chegou! Venha cumprimentá-lo!

Dei meia volta. Com a trouxa de roupas.

Não negava que Thierry era muito atraente. Não que eu tivesse visto muitos homens em minha vida, mas ele certamente era. Quando me viu, abriu um sorriso inenarrável.

— Seja bem-vindo de volta, senhor — devolvi o sorriso.

— Estou feliz por estar de volta — ele fez um gesto para me aproximar, retirou a trouxa de minhas mãos e deixou-a de lado. Tomou minhas mãos e beijou-as. — Temos assuntos a tratar.

— Claro, senhor. Estarei aqui. Gostaria de um chá?

— O que eu faria sem você, Adele? — peguei as trouxas novamente e ri com uma pitada de ironia.

— Assim como respondo à senhorita Sienna, serias um menino bonito sem uma xícara de chá.

Thierry riu atrás de mim, sentando-se para tocar seu tão amado piano. Ouço seus dedos passearem com paixão pelas teclas, numa melodia que Thierry identificou-me como Chopin.

Com um sorriso leviano nos lábios, retirei-me para a cozinha.

Em dias que Thierry contentava-se em ficar em casa, sem ir atrás de algum mercador ou inventor maluco, eu aproveitava de sua companhia. Eu observava-o adicionando leite ao chá, costume que ele havia adquirido de algum amigo inglês.

— Então, já é chegada a hora de sua carta, estou certo?

Todo semestre eu redigia uma carta para Avignon, assim como as freiras, e todo semestre Thierry lia-as para mim.

— Sim, senhor. Completei vinte e cinco.

— Pois bem. Tenho uma proposta a fazer, e quero que a ouça bem.

Thierry pigarreou e tirou de sua bolsa à tiracolo um caderno costurado à mão e um pacote de papéis de carta. Entregou-os a mim, e minha reação foi apenas franzir a testa.

— São seus — explicou ele.

— Não... creio que eu tenha entendido, senhor.

— São seus. A partir de um tempo, você mesma redigirá suas cartas.

— Queira me perdoar, senhor, mas... com todo o respeito, esta é uma brincadeira?

Thierry riu com minha ignorância.

— Senhorita Adele D’Avignon — e em seguida, perdi o fôlego por alguns segundos por ser tratada por senhorita —, eu, Thierry Chevalier de Hérault, comprometo-me a ensiná-la o idioma francês em sua mais correta forma gramatical. Não posso concedê-la independência, mas posso conceder imaginação para fazê-lo.

Senti lágrimas acumularem-se em meus olhos. Assenti com a cabeça e repeti várias vezes obrigada.

Mal se apercebia ele que, tomando esta posição, estaria abrindo os portões e meu coração naquele exato momento. E meu coração, travesso como sempre foi, acolheu esse novo sentimento como a um amigo estimado.


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Notas finais do capítulo

O que estão achando dos personagens? Comentem para eu saber a opinião de vocês ^u^
Até semana que vem! ♥