Adele escrita por Camélia Bardon


Capítulo 4
III. Leituras e cartas


Notas iniciais do capítulo

Olá, nenês ♥ tudo bem com vocês? Espero que sim!
Boas-vindas aos novos leitores, amo interagir com vocês! E aos fantasminhas também. Afinal, são vocês que movem a história.
O capítulo hoje é um cadinho mais curto e pode parecer um monte de informação jogadas de qualquer jeito, mas depois vocês vão entender o porquê. Já já a treta come solta, risos.
Boa leitura!



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Languedoc-Roussilon, outubro de 1899

 

A primeira frase que li por completo foi do Le Monde, acerca do Caso Dreyfus*.

— “A Alfred Dreyfus, julgado culpado por espionagem e traição à República Francesa, foi oferecida uma oportunidade de anistia política que tem previsão de revisão e julgamento até o próximo ano.”

Très bien, Adele! Magnifique! — Thierry exultou, retirando os óculos. Notei o brilho em seus olhos e senti o rubor percorrendo minhas bochechas. — Posso já considerar-me um professor. Mal posso conter minha felicidade.

— Pois então não a contenha, senhor — sorri, gentilmente.

Faltando uma semana para Lady Anneliese e Sienna retornarem à Montpellier, após um mês e meio e sua estadia, eu e Thierry concluímos as aulas de gramática e literatura. Thierry liberara-me para consultar quaisquer livros do acervo da Casa Chevalier, e eu encantara-me com o Princípio Elétrico, de Michael Faraday. É claro que eu não lia com a mesma facilidade que a de Thierry, mas a leitura tinha se mostrado tão prazerosa quanto prometia em todos meus anos de vida. Eu preferia os estudos de Thierry às ficções de Sienna, por mais que sempre escondesse isso.

Ademais, quando se deixava Thierry confortável para uma conversa, não havia alma viva que o calasse.

— Eu não sei, Adele. O que pensa de toda essa história?

Thierry sempre perguntava minha opinião, por mais que soubesse que eu não possuía nenhum conhecimento político. Todo conhecimento que eu acumulava me era contado por Thierry, e este sempre era imparcial em suas decisões, então eu diria que tive um professor excepcional.

— O que eu penso? Bem, o senhor Dreyfus é judeu, estou certa?

— Sim. Prossiga — Thierry apoiou os cotovelos nas coxas, interessado.

— Acabamos de sair de uma guerra. O último presidente foi assassinado. Há rumores de uma possível guerra, agora que os impérios alemão e austro-húngaro declararam como pública sua aliança. E o senhor Dreyfus sempre se mostrou muito... quieto para um capitão das Forças Armadas. E há preconceito visível para com j-judeus, senhor — gaguejei. — Há a recém-fundada Ação Francesa, que cunha maldade pura.

— Um judeu vendendo informações para alemães? — ele franziu a testa. — De certa forma é contraditório. Mas contrário à opinião pública.

— É o que penso, senhor — torci a barra do avental, nervosa.

— O que mais sugere?

— Bem, eu creio que haja algo por trás disso. Mas não sei o que, exatamente.

— Você tem uma ótima memória, Adele. Estou muito, muito surpreso. Creio que se tivesse nascido homem eu até poderia... — e a esta altura Thierry interrompeu-se e por pouco não engasgou.

— Desculpe, senhor? — franzi o cenho de volta, preocupada.

— N-não é nada, Adele. Está dispensada. Muito obrigado por hoje.

Assenti com a cabeça e deixei a sala com uma mesura.

Automaticamente, minhas engrenagens começaram a maquinar com fervor. A o que Thierry referia-se? Ora, mulheres – e ainda mais as de minha classe – não possuíam o direito de voto e participação de cargos políticos. Já me era arriscadíssimo oferecer opiniões, mas Thierry era gentil em tudo. Era curioso que me dispensasse assim.

Dando de ombros para mim mesma, subi as escadas da Casa Chevalier com o intuito de dar uma resposta decente para a Irmã Josephine, que ficara quase dois meses em espera de um pronunciamento meu. Anexo aqui o mais aproximado da carta:

 

“Querida madrinha Josephine,

Pela primeira vez escrevo por minhas mãos uma carta a vós. Peço que me perdoe antecipadamente pela gramática iniciante, no entanto dei o meu melhor.

Quanto à minha visita a Avignon: farei o possível para estar junto de ti o mais breve. Como bem sabes, minhas visitas são limitadas para duas vezes ao ano, e no momento o cocheiro da família está ausente. Lady Anneliese e a senhorita Sienna estão passando a curta temporada em Paris. Paris, esta, como bem comentou, que vi apenas nas páginas do Le Monde. Creio que eu só vá poder expressar minha opinião a respeito da Torre Eiffel quando estiver frente a frente com ela. Ademais, mantenho-me neutra. Vivemos la belle époque, madrinha. Talvez Paris precise modernizar-se.

Abadessa, hein? Espantar-me-ia em saber que não recebestes o título ainda. Mando minhas sinceras felicitações de Montpellier.

Por favor, madrinha, assim que possível dai-me mais informações sobre este homem que falaste na carta anterior. Bem sabes como sou ansiosa. Diga-lhe que se preferir escrever diretamente a mim, pode fornecer-lhe o endereço de correspondência.

Como sempre, os vestidos me foram úteis. Guardo o azul, o verde e o branco para os raros passeios na cidade. Entretanto, por mais simples que sejam, ainda assim fico imensamente agradecida pela consideração.

De sua menina, Adele.”

 

Selei a carta com os lábios e suspiro, levando-a junto ao meu coração. Devo ter demorado quase uma hora ao todo para escrevê-la e obter uma caligrafia aceitável e legível. Eu mal podia esperar para contar à Sienna o mais novo feito de seu irmão. Me senti como um experimento bem-sucedido? É claro. Contudo, eu não daria a mim esse gostinho.

Estava saboreando a mais nova sensação de conquista.

Mal sabia eu que essa conquista me levaria mais longe do que eu já mais havia ido.

 

Thierry convidou-me para um passeio na cidade, o mais discreto que pôde. Já fazia algum tempo que eu não passeava por Montpellier e suas ruas enlameadas. Pensando bem, ficar na Casa Chevalier com sua calçada de pedras não era nenhuma má ideia de vez em quando.

Vesti meu melhor vestido – azul de mangas longas e um sutil babado em renda no pescoço – e o único chapéu que possuía, dado por Sienna, já gasto. Tratava-se de um simples chapéu de abas largas, branco e igualmente rendado, enfeitado com uma bela faixa anil.

E, é claro, as botinas. Eu nunca me desfazia delas.

Na ausência de Remy, Thierry era responsável pelos cavalos. Desta vez, Coronel e Campeão nos acompanhavam.

Ao ver-me, Thierry fez uma reverência um tanto exagerada, que me provocou uma crise de risos.

— O que a bela senhorita faz perdida em minha propriedade? Já nos conhecemos, mademoiselle? — brincou ele, me auxiliando a subir na carruagem reserva.

— Ora, senhor — cobri meu rosto com a carta. — Quem dera se dissessem-me tais coisas.

Thierry apenas sorriu gentilmente e recolocou a cartola.

Ao longo de todo o caminho, belisquei minhas bochechas para ficarem com um tom mais vivo e vez ou outra assoviei uma de minhas melodias desconhecidas-conhecidas de Chopin.

Já na cidade, a onda de modernidade atingiu-me como uma bofetada. Um novo tipo de veículo de metal com duas rodas era a nova moda. Agarrei-me em Thierry e apontei para os veículos.

— O que são essas... coisas?

Thierry riu de meu horror. O encarei, auspiciosa.

— Chamam-se bicicletas, Adele. Pense nelas como uma carruagem individual.

— Céus... e como funcionam?

— Bem... — Thierry fez um pequeno esforço para encontrar as palavras corretas. Era um poeta, não um cientista. — Os pedais, que são aquelas pequenas plataformas de pisar, são ligadas à roda traseira por aquela correia. E o guidão, que é a maquinaria da frente, é ligado à roda dianteira. Isso dá equilíbrio, embora eu tenha ouvido dizer que é necessária prática incessante e alguns tombos.

— Curioso. E muito interessante.

Thierry assentiu com a cabeça e esforçou-se para acompanhar o passo de minhas pernas curtas. A cada um passo seu, eram dois meus. Passamos pelo gigantesco Museu Fabre – onde expunham-se obras novas de um tal senhor Claude Monet – e contornamos a Rue de l'Ancien Courrier. Nela localizavam-se o correio, um bistrô tão singelo quanto a rua e a boutique de Madame Lisavieta.

Eu e Thierry limpamos o solado no limpador de barro e adentramos o correio.

O estabelecimento parecia ser menor por fora, entretanto por dentro contava com dois andares e dezenas de pessoas circulavam com os mais diversos tipos de encomendas e correspondências: manuscritos a serem publicados, roupas, ferramentas, entre outros.

Logo no térreo, o setor de cartas nos abrigou. O velho senhor Cluzet, dono de uma linda pele cor de avelã, amava seu trabalho. E, é claro, nós o amávamos também. Fomos recebidos por um sorriso de orelha a orelha.

Bonjour, bonjour, mes chers amis — cantarolou ele.

Bonjour, monsieur Cluzet — respondemos eu e Thierry em uníssono.

— O que os trazem aqui hoje?

— Uma carta de Adele para Avignon. Pretendemos que ela seja entregue o quanto antes — Thierry se adiantou.

— Avignon... por sorte, a entrega para lá será logo amanhã, deve chegar em uma semana — suspirei com o alívio. — Desculpe-me em ser mequetrefe, mas por que a pressa, mademoiselle Adele?

— Ah, eu... fui eu quem escreveu.

O senhor Cluzet também conhecia minhas limitações. Aliás, creio que ele sabia de tudo. Novamente abriu um sorriso enorme, maior que o anterior, e agitou os punhos no ar em comemoração.

— Ora, mas isso é uma notícia excelente!

— O senhor Thierry ensinou-me — sorri gentilmente em sua direção, e notei seu olhar contente em resposta. — Um ótimo professor, devo dizer.

— Diferente do pai — murmurou Thierry.

Senhor Cluzet contribuiu com a lamúria com um riso de escárnio. Despedimo-nos e ambos, Thierry e eu, parecíamos cúmplices de um crime com as expressões misteriosas.

— Adele?

— Sim, senhor?

— Falta algo, não acha?

— E o que seria?

— Croissants de canela acompanhados de uma xícara de chá inglês.

Minha barriga roncou em concordância, o que fez Thierry rir e oferecer-me o braço.

— Concordo plenamente, senhor.


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Notas finais do capítulo

Sim, teve um pequeno pulinho temporal. Se eu focasse só nas aulas achei que ia ficar muito repetitivo.

*Caso Dreyfus: "Em 1894, o capitão do exército francês, especialista em artilharia, Alfred Dreyfus, foi acusado de espionagem por um tribunal militar do país. (...) A acusação, no entanto, não tinha fundamento. Baseava-se apenas em um pedaço de papel manuscrito que foi encontrado pela empregada do major Max von Schwartzkoppen – um agregado militar alemão em Paris. (...) Dreyfus foi condenado à prisão perpétua e exilado para a Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. A imprensa antissemita manobrava os fatos e incitava a população a acusar o judeu. Desse modo, o veredicto foi confirmado pelo povo durante um julgamento público."
Para mais informações do caso completo: https://www.estudopratico.com.br/o-caso-dreyfus/

p.s.: quarta, dia 11, é meu aniversário, quero bolo!